quarta-feira, outubro 08, 2014

LIÇÃO DE CAVALARIA

Dom Quixote visita propriedade de Vincent van Gogh
Colagem de Vicente Freitas
Amigo Francisco: Lendo seu monólogo, ou melhor, seu diálogo consigo mesmo, sobre lição de cavalaria, me senti, de repente, encantado, ou seja, de início, achei mesmo que eu não passava de um cavalo, depois estive meditando, e, como cavalo não medita, acho, cheguei à conclusão que sou, no mínimo, um centauro; afinal, todos nós temos um pouco de centauro, não é mesmo?
E já que estamos comemorando os quatrocentos anos do D. Quixote. E como D. Quixote é, na verdade, um centauro, pois não existe D. Quixote sem parte de homem e parte de cavalo, assim como não existe D. Quixote sem Sancho Pança. Mas antes da personagem genial de Cervantes vamos matutar um pouco sobre os centauros...
Na mitologia grega, eram eles a personificação das forças naturais. Centauro era um animal fabuloso que habitava as planícies da Arcádia e da Tessália. Seu mito foi, possivelmente, inspirado nas tribos semi-selvagens das zonas agrestes da Grécia. Segundo a lenda, era filho de Ixíon e de Nefele, deusa das nuvens, ou então de Apolo e Hebe. A estória mitológica dos centauros está quase sempre associada a episódios de barbárie. Convidados para o casamento de Pirito, rei dos lápitas, os centauros, enlouquecidos pelo vinho, tentaram raptar a noiva, desencadeando-se ali uma terrível batalha. O episódio está retratado nos frisos do Partenon e foi um motivo freqüente nas obras de arte pagãs e renascentistas. Os centauros também teriam lutado contra Hércules que os teria expulsado do cabo Mália. Contudo, nem todos os centauros apareciam caracterizados como selvagens. Um deles, Quirão, foi instrutor e professor de Aquiles, Heráclito, Jasão e outros heróis, entre os quais Esculápio. Entretanto, enquanto grupo, foram eles notórias personificações da violência, como se vê em Sófocles.
Já os cavalos, quando de carne e osso, não têm nada de mitológicos. Mas existem cavalos para todos os gostos, inclusive cavalo de pau – o de Tróia – como consta n’A Ilíada, um dos épicos de Homero, e que narra a guerra que causou a destruição da cidade, um dos mais ricos e extensos sítios arqueológicos do mundo antigo. A lenda do conflito entre aqueus e troianos pela posse da cidade forneceu o argumento da Ilíada e obras posteriores. No século IV d.C., desapareceram completamente os vestígios históricos de Tróia. Páris, filho do rei Príamo, raptara Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, famosa por sua beleza. Para se vingar, Menelau formou um poderoso exército comandado por Agamenon, no qual se destacaram Aquiles e Ulisses. O cerco de Tróia foi marcado por feitos heróicos de ambos os lados, até que, sob inspiração de Ulisses, os gregos construíram um gigantesco cavalo de madeira e o abandonaram nas portas de Tróia. Apesar dos presságios de Cassandra, os troianos levaram para dentro dos muros da cidade o cavalo, que trazia em seu interior os guerreiros de Ulisses. Abertas as portas, os gregos saquearam e destruíram Tróia. O herói troiano Enéias, filho de Vênus, escapou com alguns partidários e, depois de muitas aventuras, se instalou no Lácio. Os descendentes desse grupo deram origem ao povo romano. É quase certo que a lenda tenha um núcleo de verdade, mas é impossível provar-lhe a historicidade. Uma interpretação de documentos favoreceu a hipótese de que os aqueus fossem um povo pré-helênico originário da Europa. Na época de Tróia, os aqueus, teriam se espalhado pelo Egeu e formado colônias de micenianos, de onde mais tarde saíram conquistadores de Tróia. O cavalo de madeira teria sido uma invenção de Odisseu, o guerreiro mais sagaz da Ilíada e personagem da Odisséia.
Quanto a D. Quixote e seu cavalo Rocinante, Cervantes criou, na verdade, com seu engenhoso Fidalgo de La Mancha, o embrião do romance moderno, uma das personagens mais populares da história da literatura e ainda deu vazão ao surgimento do termo, de uso universal, “quixotesco” que define o comportamento de alguém como sonhador, ingênuo, romântico e trapalhão. Aclamado como a maior obra de ficção de todos os tempos, numa eleição promovida pelo Instituto Nobel da Noruega  tido, inicialmente, como uma sátira às novelas de cavalaria  o livro tornou-se, com o passar dos séculos, uma das obras mais significativas da literatura universal, reveladora de sentimentos, paixões, fraquezas e grandezas do ser humano.
A invasão de novas edições de D. Quixote, talvez se justifique, como uma espécie de comemoração dos 400 anos do livro, publicado em 1605. Nos Estados Unidos, acabou de sair vasta biografia de Cervantes, que, ao contrário de seu famoso contemporâneo Shakespeare — pastorarador de cavalos  é bem mais conhecido. Cervantes nasceu em Alcalá de Henares, na Espanha, em 1547, filho d’um cirurgião e uma nobre empobrecida. Na adolescência, trabalhou como camareiro para o cardeal italiano Acquaviva. Ainda jovem alistou-se nas tropas pontifícias para lutar contra os turcos que ameaçavam a Europa, o que lhe custou a perda da mão esquerda. Tempos depois, durante viagem de retorno ao território espanhol, foi capturado por turcos e passou cinco anos preso na Argélia. Saindo da prisão e desiludido da vida militar, retorna à Espanha e se dedica com afinco à literatura. Para sobreviver, assume o cargo de comissário de abastecimento e depois passa a trabalhar como coletor de impostos. Acusado injustamente de desviar verbas, é levado à prisão em Sevilha, onde escreve a primeira parte de D. Quixote.
A crítica de Cervantes às histórias da época, surge envolta com humor e compaixão pela figura do cavaleiro, que se atirava às cegas à propaganda da cavalaria. No prefácio da obra, o autor conversa com seus leitores e até justifica sua personagem:
"Acontece, muitas vezes, ter um pai um filho feio e desengraçado, mas o amor paternal lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as próprias deficiências, antes, as julgue como discrições e lindezas, e fique sempre a contá-las aos amigos, como agudezas e donaires. Porém eu, que ainda não pareço pai, não sou contudo senão padrasto de D. Quixote”.
Um escritor que tem confessado inspiração  que ele chama “obsessão”  em Cervantes e seu D. Quixote é Ariano Suassuna. Quaderna, figura principal de A Pedra do Reino, foi comparado a personagem do Miguel. Em um dos seus depoimentos, Suassuna, no entanto, ressaltou que há semelhanças, sim, mas a principal diferença entre sua criatura e a do escritor espanhol está em uma certa lucidez na hora de sonhar: "Eu noto uma diferença entre D. Quixote e Quaderna, diz Ariano. É que D. Quixote enlouquece lendo os livros de cavalaria e acredita neles. Quaderna, não. A personagem apresenta bem claramente a diferença  “Minha vida cinzenta, feia e mesquinha de menino sertanejo, reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da fazenda do pai”. Quer dizer, ele sabe que a vida é triste, dura, feia, áspera, e lança mão do folheto e dos espetáculos populares como defesa. Mas tudo lucidamente. O mesmo não se pode dizer em relação a D. Quixote”.
Veja, Francisco, lendo sua lição de cavalaria, passei a sonhar com cavalos, centauros e D. Quixotes. Afinal, D. Quixote é um homem de todas as épocas e de todas as regiões do mundo, e cada qual o identifica e entende, logo se aperceba de que o drama do pobre cavaleiro louco é o drama de todos os homens que sabem o que é um sonho ou alguma vez o acalentaram. É que todos nós temos um pouco de centauros, cavalos e Quixotes... Será?
Grande e fraterno abraço do amigo leitor.

VICENTE FREITAS