quarta-feira, novembro 30, 2005

Ribeira encantada

Ao poeta Nicodemos Araújo Saudável ribeira, mel agreste sumo de orvalho e essências matinais trago no olhar o linho das nuvens e na boca sabores de luar. Vem, poeta, até este pomar vislumbrar este rio, este mar e o fogo que aqui irrompe no verão e o homem que em sua lida faz o lavrar do chão trabalho rústico de enxada e mão esforço e riqueza da nação. Esta ribeira é para nós um país de sonhos tão belo, tão diverso, original plantemos o companheirismo como árvores ao longo deste rio e assim seremos incomparáveis imbatíveis. Ribeira minha encantada gama de verde carnaubal em distante extensão murmúrios do vento celestial acariciando o coqueiral. Acaraú, meu Rio das Garças osso e carne em mim feito estrela – Sangue e Vida desta Ribeira.

Poemeto para Bela Cruz

– Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: serás semente, adubo, colheita. João Cabral de Melo Neto Contemplando teus campos naturais Pólens, pingos de orvalho – na úmida várzea – Teu aniversário ouso hoje comemorar E novamente canto teu cenário silvestre: Espessos pomares Casinhas modestas Quintais pastoris Com ruídos de vila e senzala. Teus pequenos fatos anônimos Hoje queremos cantar, Com amor mais ardente Com zelo mais forte. Desta verde paisagem ribeirinha Jamais olvidamos Genoveva, a primeira habitante Capitão Diogo Lopes, o médico João Damasceno, o poeta Joca Lopes, o músico... – Onde estão todos eles? Sobre as margens deste rio encantador Permanecem. Tua gente tem a face curtida por sóis luzentes E sabe avançar recuar resistir defender-se. Tua história contém tudo: Corpos almas significados Amores belezas paixões Orgulho delicadezas canções Esperanças benefícios doações Experiências resultados conclusões... (Deleites da terra; lida enfadonha...) – Onde a gente de bem trabalha e sonha! _________ 1. Com este poema, o autor obteve o 3º lugar, no II Festival Nacional Literário – 1999, promovido pela ABRACE, Rio de Janeiro.

Lição de cavalaria

Amigo Francisco: Lendo seu monólogo, ou melhor, seu diálogo consigo mesmo, sobre lição de cavalaria, me senti, de repente, encantado, ou seja, de início, achei mesmo que eu não passava de um cavalo, depois estive meditando, e, como cavalo não medita, acho, cheguei à conclusão que sou, no mínimo, um centauro; afinal, todos nós temos um pouco de centauro, não é mesmo? E já que estamos comemorando os quatrocentos anos do D. Quixote. E como D. Quixote é, na verdade, um centauro, pois não existe D. Quixote sem parte de homem e parte de cavalo, assim como não existe D. Quixote sem Sancho Pança. Mas antes da personagem genial de Cervantes vamos matutar um pouco sobre os centauros...
Na mitologia grega, eram eles a personificação das forças naturais. Centauro era um animal fabuloso que habitava as planícies da Arcádia e da Tessália. Seu mito foi, possivelmente, inspirado nas tribos semi-selvagens das zonas agrestes da Grécia. Segundo a lenda, era filho de Ixíon e de Nefele, deusa das nuvens, ou então de Apolo e Hebe. A estória mitológica dos centauros está quase sempre associada a episódios de barbárie. Convidados para o casamento de Piritus, rei dos lápitas, os centauros, enlouquecidos pelo vinho, tentaram raptar a noiva Hipodâmia, desencadeando-se ali uma terrível batalha. O episódio está retratado nos frisos do Partenon e foi um motivo freqüente nas obras de arte pagãs e renascentistas. Os centauros também teriam lutado contra Hércules que os teria expulsado do cabo Mália. Contudo, nem todos os centauros apareciam caracterizados como selvagens. Um deles, Quirão, foi instrutor e professor de Aquiles, Heráclito, Jasão e outros heróis, entre os quais Esculápio. Entretanto, enquanto grupo, foram eles notórias personificações da violência, como se vê em Sófocles.
Já os cavalos, quando de carne e osso, não têm nada de mitológicos. Mas existem cavalos para todos os gostos, inclusive cavalo de pau – o de Tróia – como consta n’A Ilíada, um dos épicos de Homero, e que narra a guerra que causou a destruição da cidade, um dos mais ricos e extensos sítios arqueológicos do mundo antigo. A lenda do conflito entre aqueus e troianos pela posse da cidade forneceu o argumento da Ilíada e obras posteriores. No século IV d.C., desapareceram completamente os vestígios históricos de Tróia. Páris, filho do rei Príamo, raptara Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, famosa por sua beleza. Para se vingar, Menelau formou um poderoso exército comandado por Agamenon, no qual se destacaram Aquiles e Ulisses. O cerco de Tróia foi marcado por feitos heróicos de ambos os lados, até que, sob inspiração de Ulisses, os gregos construíram um gigantesco cavalo de madeira e o abandonaram nas portas de Tróia. Apesar dos presságios de Cassandra, os troianos levaram para dentro dos muros da cidade o cavalo, que trazia em seu interior os guerreiros de Ulisses. Abertas as portas, os gregos saquearam e destruíram Tróia. O herói troiano Enéias, filho de Vênus, escapou com alguns partidários e, depois de muitas aventuras, se instalou no Lácio. Os descendentes desse grupo deram origem ao povo romano. É quase certo que a lenda tenha um núcleo de verdade, mas é impossível provar-lhe a historicidade. Uma interpretação de documentos favoreceu a hipótese de que os aqueus fossem um povo pré-helênico originário da Europa. Na época de Tróia, os aqueus, teriam se espalhado pelo Egeu e formado colônias de micenianos, de onde mais tarde saíram conquistadores de Tróia. O cavalo de madeira teria sido uma invenção de Odisseu, o guerreiro mais sagaz da Ilíada e personagem da Odisséia.
Quanto a D. Quixote e seu cavalo Rocinante, Cervantes criou, na verdade, com seu engenhoso Fidalgo de La Mancha, o embrião do romance moderno, uma das personagens mais populares da história da literatura e ainda deu vazão ao surgimento do termo, de uso universal, "quixotesco" que define o comportamento de alguém como sonhador, ingênuo, romântico e trapalhão. Aclamado como a maior obra de ficção de todos os tempos, numa eleição promovida pelo Instituto Nobel da Noruega – tido, inicialmente, como uma sátira às novelas de cavalaria – o livro tornou-se, com o passar dos séculos, uma das obras mais significativas da literatura universal, reveladora de sentimentos, paixões, fraquezas e grandezas do ser humano.
A invasão de novas edições de D. Quixote, talvez se justifique, como uma espécie de comemoração dos 400 anos do livro, publicado em 1605. Nos Estados Unidos, acabou de sair vasta biografia de Cervantes, que, ao contrário de seu famoso contemporâneo Shakespeare – pastorador de cavalos – é bem mais conhecido. Cervantes nasceu em Alcalá de Henares, na Espanha, em 1547, filho d’um cirurgião e uma nobre empobrecida. Na adolescência, trabalhou como camareiro para o cardeal italiano Acquaviva. Ainda jovem alistou-se nas tropas pontifícias para lutar contra os turcos que ameaçavam a Europa, o que lhe custou a perda da mão esquerda. Tempos depois, durante viagem de retorno ao território espanhol, foi capturado por turcos e passou cinco anos preso na Argélia. Saindo da prisão e desiludido da vida militar, retorna à Espanha e se dedica com afinco à literatura. Para sobreviver, assume o cargo de comissário de abastecimento e depois passa a trabalhar como coletor de impostos. Acusado injustamente de desviar verbas, é levado à prisão em Sevilha, onde escreve a primeira parte de D. Quixote.
A crítica de Cervantes às histórias da época, surge envolta com humor e compaixão pela figura do cavaleiro, que se atirava às cegas à propaganda da cavalaria. No prefácio da obra, o autor conversa com seus leitores e até justifica sua personagem: "Acontece, muitas vezes, ter um pai um filho feio e desengraçado, mas o amor paternal lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as próprias deficiências, antes, as julgue como discrições e lindezas, e fique sempre a contá-las aos amigos, como agudezas e donaires. Porém eu, que ainda não pareço pai, não sou contudo senão padrasto de D. Quixote". Um escritor que tem confessado inspiração – que ele chama "obsessão" – em Cervantes e seu D. Quixote é Ariano Suassuna. Quaderna, figura principal de A Pedra do Reino, foi comparado a personagem do Miguel. Em um dos seus depoimentos, Suassuna, no entanto, ressaltou que há semelhanças, sim, mas a principal diferença entre sua criatura e a do escritor espanhol está em uma certa lucidez na hora de sonhar:
"Eu noto uma diferença entre D. Quixote e Quaderna, diz Ariano. É que D. Quixote enlouquece lendo os livros de cavalaria e acredita neles. Quaderna, não. A personagem apresenta bem claramente a diferença – "Minha vida cinzenta, feia e mesquinha de menino sertanejo, reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da fazenda do pai". Quer dizer, ele sabe que a vida é triste, dura, feia, áspera, e lança mão do folheto e dos espetáculos populares como defesa. Mas tudo lucidamente. O mesmo não se pode dizer em relação a D. Quixote". Veja, Francisco, lendo sua lição de cavalaria, passei a sonhar com cavalos, centauros e D. Quixotes. Afinal, D. Quixote é um homem de todas as épocas e de todas as regiões do mundo, e cada qual o identifica e entende, logo se aperceba de que o drama do pobre cavaleiro louco é o drama de todos os homens que sabem o que é um sonho ou alguma vez o acalentaram. É que todos nós temos um pouco de centauros, cavalos e D. Quixotes... Será ? Grande e fraterno abraço do seu leitor VICENTE FREITAS VICENTE FREITAS, licenciado em História e Geografia, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. É autor de vários livros e escreve ensaios e artigos para jornais e internet.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Clero, nobreza e povo de Sobral

Esta resenha é espaço por demais diminuto para colocar a grandeza de Lustosa da Costa, o cronista, o jornalista e o romancista, e dizer da sua vida e da sua obra, e falar do primor e do encanto de sua prosa. Só agora chega-me às mãos o exemplar do seu belo livro "Clero, nobreza e povo de Sobral", acompanhado de generosa dedicatória que fica creditada à sua indulgente bondade.Lustosa é colunista do "Diário do Nordeste", em Brasília. Foi Editor Chefe de "Unitário" e "Correio do Ceará". Em fins de 1974 passou a residir na Capital da República onde militou, por muitos anos, na sucursal de "O Estado de São Paulo" e escreveu crônicas no "Correio Braziliense". Em 2000 elegeu-se para a Academia Brasiliense de Letras e ganhou o Prêmio Ideal de Literatura, com o livro de crônicas "Rache o Procópio". Lançou em 2002, na Embaixada do Brasil em Lisboa, a edição portuguesa de seu romance "Vida, paixão e morte de Etelvino Soares", versão romanceada da atormentada trajetória do jornalista Deolindo Barreto.A obra de Lustosa da Costa representa um marco da nossa tradição literária moderna e a seu respeito já se manifestou a crítica favoravelmente, me parecendo justo destacar o que escreveu o poeta e ensaísta José Alcides Pinto: "O material com que trabalha é o mesmo da ficção – a ficção de vanguarda, a de um Gabriel Garcia Marquez, por exemplo, ou de outros grandes vultos da literatura latino-americana. A caracterização dos personagens é perfeita, e em seu registro história e memorialística se juntam numa grandeza meridional e abrangente".Sobre sua obra ensaios e artigos importantes vêm sendo publicados no correr do tempo, tais aqueles redigidos por Evaristo Linhares, Moreira Campos, Adelto Gonçalves e Paulo Elpídio de Menezes Neto. Segundo Milton Dias, "Lustosa da Costa se inscreve na lista dos melhores cronistas brasileiros – nome respeitado, estimado, admirado; freqüentador diário da imprensa, conseguiu um público numeroso e atento que corre ao jornal diariamente, fiel à sua colaboração de todo dia".Acabo de ler seu livro e chego à conclusão de que ele – brasileiro a valer nestas crônicas, feitas da mesma composição de seu rincão à beira do Acaraú – se nos apresenta o mais cáustico demolidor de fatuidades e carunchadas reputações, e – o incrível – faz tudo isso envolvido do mais puro senso de humor. Sua capacidade de encadear figuras e fatos em sucessão é o mérito maior do criador de tantos personagens divertidos, às vezes, turbulentos, que lembram as excentricidades dos heróis cômicos de Dickens. Não que seus personagens de carne e osso fossem cômicos – mas que assim nos são apresentados – na recriação fabulosa do cronista que une a psicologia ao estilo numa gota de tinta, com veneno e luz, caricatura da vida urbana-cotidiana da pequena cidade de Sobral, do início do século passado.Sobral é cidade de filhos ilustres – ou que se tornaram interessantes mesmo depois da morte. Terra do filósofo Visconde de Sabóia, Domingos Olímpio, Padre Ibiapina, Dom Jerônimo, Dom José Lourenço, Dom José Tupinambá da Frota, Vicente Loiola, José Sabóia, Cordeiro de Andrade, Deolindo Barreto, que veio de Crateús para viver, lutar e morrer ali. Uma galeria interminável de padres, políticos, jornalistas, escritores e poetas de boa cepa. E tudo começou com uma fazenda de nome Caiçara, de propriedade do Capitão Antônio Rodrigues Magalhães, cujo nome está ligado à história da cidade pela doação feita ao patrimônio da Matriz.Ao redor da Igreja surgiram as primeiras casas da povoação, quase sempre de tijolos – cobertas de telhas – pertencentes a pessoas de boa linhagem, das quais descende grande parte das famílias sobralenses. Depois do Capitão Antônio Rodrigues Magalhães, outros sesmeiros vieram ali se estabelecer – Manoel Madeira de Matos, Manoel Vaz de Carrasco, pai das sete irmãs, progenitoras das principais famílias do Vale do Acaraú [estabelecido no atual município de Bela Cruz], Jerônimo Machado Freire, Capitão-mor José de Xerez Furna Uchoa, Antônio Alves Linhares, Capitão-mor José de Araújo Costa, meu pentavô, português [estabelecido também em Bela Cruz, casado com d. Brites de Vasconcelos, uma das sete irmãs], Ignácio Gomes Parente, Gonçalo Ferreira da Ponte e, logo em seguida, os Frotas, os Coelhos, os Holandas Cavalcantes, os Rodrigues Limas, os Ferreiras Gomes, os Mendes Vasconcelos, os Paulas Pessoas, os Ximenes de Aragão e tantos outros que adquiriram sesmarias no Vale do Acaraú. Vieram das capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e até mesmo de Portugal. E ali ficaram encantados ou encantoados com as águas do Rio Conoribon, Conoribo, Coruybe, Rio dos Torrões Pretos, Rio das Garças, segundo as diversas denominações que lhe deram seus primitivos habitantes. E foi ali, à beira do rio, que nasceram [viveram suas proezas e escaramuças] as personagens de Lustosa da Costa.Ao encerrar essa desataviada prosa, quero dizer ao ilustre escritor que tive muito prazer em escrevê-la, assim como também experimentei ao ler o seu livro. E o prazer maior é fechá-la com chave de ouro, lembrando o impávido jornalista Deolindo Barreto: "Conte-se o caso como o caso foi, o cão é cão e o boi é boi". Vicente Freitas