domingo, abril 24, 2011

Silenciofobia

"Num mundo em que as juras não tem nenhum valor, em que fazer um juramento nada significa, em que as promessas são feitas para serem quebradas, seria agradável ver as palavras de volta ao poder."
Andrea Trompczynski
(Chuck Palahniuk)

As noites mais felizes da infância eram aquelas em que faltava luz. Ficávamos na cozinha ouvindo o estalar dos pinhões na chapa do fogão à lenha, à luz de velas ou de um velho lampião de meu pai. Minha mãe sempre dizia: "é tão bom quando falta luz, nós conversamos". Quando a energia voltava e podíamos enxergar melhor nossas próprias caras de alegria, era constrangedor e cada um voltava para seu lugar, sua televisão ou seu aparelho de som. Com vergonha de ter demonstrado que não era tão independente, vergonha de ter sentido a falta uns dos outros tanto assim. Voltávamos todos para nossos barulhos favoritos.

Imagino como deve ter sido um tempo em que ouvir uma música ou uma apresentação musical era algo esperado por toda a semana ou todo o mês. Vestiam a melhor roupa, era um acontecimento. Se música é arte, é preciso ouví-la todos os dias o dia todo? Você carrega uma escultura no seu carro para poder tocá-la todo o tempo?

O silêncio aterroriza e tentam preenchê-lo com uma "trilha sonora" do mundo todo o tempo. Vivendo em uma língua diferente, percebi o quanto 9 de 10 palavras são desnecessárias. Por ser obrigada a pensar antes de falar, acabo falando muito pouco. E tem sido muito bom. Por ter que trabalhar ouvindo música 8 horas por dia, tenho dado uma importância divina ao silêncio. Mas o melhor não é apenas não fazer comentários idiotas mas o mais total silêncio. Não somente coisas como a temperatura do ar ou o novo corte de cabelo de alguém são desnecessárias, mas todo aquele discurso igual. Vou me tornar uma velha muito chata que fura bolas de futebol que caem no quintal, sei disso. Mas me recuso a falar coisas que não servem para nada. As pessoas estranham o silêncio. Sentem-se incomodadas com ele, fazem de tudo para escapar dele, ligam tevês e rádios e computadores, dizem que agora precisam ir. O silêncio é mais aterrador que palavras duras. Abrem revistas e jornais e dizem em voz alta que Jennifer Lopez casou de novo. Tudo, menos o silêncio. Qualquer coisa.

Nesse estado de espírito (prazerosíssimo, experimentem) li o último livro de Chuck Palahniuk (autor de Clube da Luta), com aquele humor-negro dele, cinismo deslavado e anti-heróis. Cantiga de Ninar é um thiller de suspense sim. Um jornalista às voltas com poder que uma canção indiana tem de matar quem quer que a ouça. Como um vírus que se pega pelos ouvidos. Imaginem isso. Todo o barulho seria policiado, monitorado ou abolido. E a canção, apenas pensada em direção ao seu alvo pode matar quem você quiser. Mas a história é um pretexto para ler os pensamentos de Carl Streator, o jornalista, sobre todo o lixo que ouvimos todos os dias. Sobre a necessidade doentia de não pensar e não silenciar. O mundo todo está viciado em barulho, não se pode ficar sem isso mais. E dá-lhe telas maiores e mais volume. "Pessoas que jamais jogariam lixo na rua passam de carro por nós com o rádio aos berros. Pessoas que jamais soprariam fumaça de charutos em nós num restaurante lotado gritam ao telefone celular. Urram umas para as outras, separadas apenas pela mesa de jantar. Não se trata de qualidade, trata-se de volume".

Mas recomendado somente para velhos resmungões como eu.

Me dá um cigarro
Coffee and Cigarets, de Jim Jarmusch é só para fumantes e grandes tomadores de café. São onze histórias curtas, onde o cigarro é o prazer meio proibido, meio vergonhoso, mas irresistível. O elenco é imenso: Roberto Benigni, Alfred Molina, Cate Blanchet, Iggy Pop, Tom Waits, Steve Buscemi, Steve Coogan, e ele, ele, o melhor de todos, Bill Murray. Os pigarros, as longas tragadas, aquele olhar de desprezo por cima da sua fumaça ao resto da humanidade. Recomendo a quem parou que não veja este filme se quiser continuar assim.

Saint Reagan
O Ronald Reagan morreu e virou santo aqui. Ele sim era bom, era um comunicador, era um grande ator, o melhor presidente de todos os tempos. Todo mundo morto é tão bonzinho de repente.

Bom dia, com licença e obrigado
É impressão minha ou nas cidades grandes do Brasil eu nunca vi as pessoas sorrirem umas para as outras (desconhecidos) na rua e se cumprimentarem? Porque aqui eles fazem isso, demorei para me acostumar. No começo pensava: "ih, está querendo alguma coisa" ou "está tentando se aproximar". Não, é gentileza mesmo. Nunca tinha visto, não. Sem segundas intenções e de graça.

Liberdade, liberdade, abre as asas
Nada de axé-music na praia, nada de verão de três músicas se repetindoad nauseam. As praias aqui podem estar cheias, mas, acreditem, não tem uma musiquinha. Um dia passou um hindu cantando baixinho e o vento trouxe até meus ouvidos por acaso. Nada de axé-bahia, nada. Nada de Tcham, nada de reggaes de duzentos anos em meus ouvidos. Sinto-me flutuando.

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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros. 

segunda-feira, abril 18, 2011

Carta de MÁRIO QUINTANA a um POETA

Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? – perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade.” E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos!

Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as digressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: “O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escreve os seus poemas?” A poesia é dessas coisas que a gente faz, mas não diz.

A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.

Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abençoes”. Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.

Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.

Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que, no entanto, me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.

Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Mario Quintana

domingo, abril 17, 2011

Bendito Nelson Rodrigues

Andrea Trompczynski
"Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos."
Nelson Rodrigues

Meu livro de cabeceira tem sido, há muitos anos, A Cabra Vadia, de Nelson Rodrigues. Alguns têm a Bíblia, outros, Guerra e Paz, eu possuo este, que leio como lêem os crentes os "Salmos de Davi" e digo os mesmos "améns", a cada nova leitura, mais maravilhada.

Todas as noites quando o abro penso que Nelson Rodrigues já disse tudo e muitos não sabem. Para quê tanto escrevemos, para quem falamos, ele já disse tudo. Tentam nos enganar com opiniões aparentemente novas, que, mal sabemos, já eram velhíssimas opiniões do maldito Nelson.

Lia, dia desses, um novo e polêmico escritor tentando balançar as estruturas – perdoem-me a expressão, mas era isto que o jovem escritor tentava fazer, tentava balançar as estruturas – dizendo que as virtudes deveriam ser dissimuladas, que era deselegante as expor. Ah, opinião velha do Nelson, que afirmava os íntegros estarem a toda hora nos atropelando com sua integridade e que não havia uma bondade sem impudor: era preciso escondê-la como a um crime, a virtude nem aos padres de confessionário se deve dizer.

O Arnaldo Jabor, então, coitado. Suga o cadáver de Nelson Rodrigues quando fala do palavrão e de muitos outros assuntos. Nelson já falou, Jabor. Nelson já disse que o palavrão é a doença infantil dos adultos e contou da menina que morreu, e a mãe, que poderia ter rezado, poderia ter gemido, poderia ter chorado, mas se esganiçou em palavras pornográficas, numa época em que o cinema de Jabor ainda não havia feito do palavrão um lugar-comum.

Gritamos contra o racismo, e volta e meia estão as notícias nos jornais, das coisas que, aqui e ali, acontecem sobre este assunto. Mas Nelson percebia e falava naquela época: "Onde estão os negros do Itamaraty? Procurei em vão um negro de casaca ou uma negra de vestido de baile. O Itamaraty é uma paisagem sem negros." Saímos a procurar psicólogos e educadores para pôr rédeas em filhos que a cada dia mais dominam os pais, e Nelson já sabia: "Aquela mãe era capaz de dar razão à surra que tomou do filho. Ela existe aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e em todos os idiomas. É a própria família que atira pela janela todos os seus valores". E seguimos achando bonito as crianças que metem a mão na cara da mãe, do pai, dos avós: "a bofetada da garotinha estalou na cara materna. – Coitadinha, coitadinha!, tias se arremessavam. A menina passou de colo em colo. Numa das vezes chutou o seio de uma tia; meteu a mão na cara da seguinte; e, na imediata, cuspiu na boca. Foi um horror."

Os jovens pensadores e críticos de hoje – ah, os jovens, eis minha "flor de obsessão", aquilo que, segundo Nelson, repetimos à exaustão – dizem que ele era um imoral, um revolucionário, um pornográfico. Soubessem eles que Nelson era um conservador – um conservador! –, que se chocava com coisas tais como a educação sexual nas escolas e com a moda de estarem saindo os padres sem batina a fazerem passeatas, dizia ser um horror a Igreja estar indo "para a frente". E, uma vez, indignou-se por ver artistas segurando cartazes escritos muerte, onde, além de traírem a própria língua, traíam também o humanismo, do qual todo artista deveria ser escravo.

Perguntará um idiota da objetividade: "que é a cabra vadia?". Eu respondo: Nelson descobriu, depois de 42 anos de jornalismo, que todas as entrevistas eram iguais. Mudava, apenas, o tipo do nariz ou do terno do entrevistado. Mas fosse o assunto uma batalha de confete ou Hiroshima, as respostas eram as mesmas. Nunca eles diriam o que realmente pensavam ou sentiam, valia o cinismo gigantesco e a inflexão. Fosse um Zé Mané ou um Bismarck e daria no mesmo. E ele as fez às dezenas, às centenas, às milhares. Descobriu, então: somente numa entrevista imaginária, num terreno baldio, em presença de uma cabra vadia, o entrevistado falaria o que realmente sentia. E assim foi com D. Hélder Câmara, Antônio Callado, políticos, artistas, inimigos ferrenhos, amigos queridos, todos, mortos ou vivos, de quem ele gostaria de ouvir a verdade. Esta é a história da cabra vadia.
Ah, leitor, confesso, eu mesma já comi do cadáver de Nelson Rodrigues. Toda vez que falo dos intelectuais, chupo-lhe o sangue, porque foi ele quem viu primeiro, numa passeata, uma placa num espaço reservado para vinte mil, escrita, acima de qualquer dúvida ou sofisma "intelectuais". Pensava Raul Brandão, que o acompanhava na data: "puxa, tudo isto é intelectual?". Ali estavam, provando que o Brasil tinha uma grande massa de intelligentsia, eram romancistas, críticos culturais, dramaturgos, sociólogos, poetas. Quase se podia chorar de tão bonito. Mas, "engraçado", diz Nelson, "temos tanta inteligência" aqui e até hoje "somos invisíveis para a Academia Sueca". Ganham Prêmio Nobel todo o mundo, menos o Brasil, o Brasil não existe para a Suécia.

Mas, Nelson não era só cinismo e crítica. Em A Cabra Vadia há também os textos que ele escreveu quando morreu o irmão, Mário Filho. Ele se ofusca para apresentar no irmão toda a virtude, a beleza, a bondade: "se ele aparecesse com um passarinho em cada ombro, eu não me admiraria nada, nada." Encontra toda a arte do mundo no texto jornalístico-esportivo do irmão "havia, no seu texto, uma visão inesperada do futebol e do craque, um tratamento lírico, dramático e humorístico que ninguém usara antes. Posso dizer que, desde então, ninguém influiu mais na imprensa brasileira."

Já que nada mais há a ser dito, copiemos o Nelson Rodrigues. Iremos repetir vezes sem fim tudo o que ele já disse, porque nada mais há a fazer. Torço por isso: que sejamos todos um pouco Nelson Rodrigues.

A Resposta
Como Nelson respondia a uma crítica? Com outra crítica? Não, com uma peça inteira! Escreveu Viúva, porém honesta, uma "farsa irreponsável" em três atos, apenas para criar uma personagem representando um crítico de teatro, já que estava furioso com os comentários feitos para sua peça Perdoa-me por me traíres:

– Mas que tipo de função teria Dorothy Dalton, com esse nome de cinema mudo?
– Só vendo. Vem cá, Dorothy Dalton, chega aqui.
– O que é que você sabe fazer? Antes de ir para o SAM [espécie de FEBEM da época] o que é que você fazia?
– Raspava pernas de passarinho a canivete!
– Já sei! Crítico de teatro! Não é escrito e escarrado o crítico teatral da nova geração?
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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros. 

domingo, abril 10, 2011

A ponte para as formigas


Um dependente químico ou adicto é um doente muito antes de usar qualquer droga. As primeiras que experimenta são os próprios sentimentos. Embriaga-se de autopiedade ou ilusões de superioridade já na infância, culpando outros e o mundo por suas dores. Usar alguma substância conhecida como "droga" é consequência natural. Parar com elas, depois de anos de inferno para si e sua família, é um passo. Parar de intoxicar-se com sentimentos doentes, esse sim, o problemão.


Andrea Trompczynski
Serei piegas e provavelmente emocional, já aviso, porque criticar escritores que não conheço, falhas alheias e ver à distância a pimenta ardendo no olho dos outros é moleza. Faço aqui um mea-culpa, porque eu também tenho um passado escabroso.


Meu início foi como o da maioria dos dependentes. Álcool, inalantes aos quinze anos, anfetaminas (na minha época eram Hipofagin e Inibex). Promessas de "nunca usarei tal droga" sempre quebradas, um avanço lento mas progressivo em quantidade e potência. Meu organismo possuía uma capacidade que me parecia infinita em suportar drogas. Enquanto muitos dos meus amigos estavam já "caindo", eu podia virar as noites sem problemas. Possuía um imã para atrair amizades de outros que usavam também. Achávamos o máximo nosso comportamento. Os bam-bam-bans da cidade. 

Em casa, percebiam alguns porres, meus pais davam algumas broncas e achavam que era um comportamento normal de aborrescente que eu era. Mas tudo ficou mais fácil quando fui estudar em outra cidade (ah... a capital...), fazer o terceirão e depois algum tempo de Ciências Biológicas na PUC-PR. Aulas, nem pensar. Conheci a turminha dos "loucos" e estava no paraíso. Chega a ser engraçado lembrar que líamos Castañeda, poesias do Jim Morrison e acreditávamos ser especiais. 

Na faculdade, comecei a deixar de lado os amigos. Preferia ficar sozinha, afundando em crises de angústia fabricada nas quais eu chafurdava, num exercício de masoquismo que até hoje não consigo entender. Então, começaram a aparecer as famosas crises de abstinência. Tremores, muitas vezes pequenas convulsões, isto quase que só pelo álcool, que era minha droga favorita e a mais acessível. Oito da manhã eu já estava saindo de casa para tentar achar algum lugar aberto onde eu pudesse comprar. Sabia que era alcoólatra e inclusive contava isso para o dono do bar, explicando assim porque é que eu estava lá "tão cedo". É que sou alcoólatra, sabe? Alcoólatras bebem de manhã. Eu aceitava minha condição e a usava como desculpa. 

Passaram-se alguns anos, abandonei o curso, voltei para a casa dos meus pais, parei por um tempo, casei, tive um filho, nos separamos, voltei a usar. Era cômodo. Meu filho e eu morávamos com meus pais e eles estavam assumindo a responsabilidade. Bom para mim. Havia uma droga que para mim era o cúmulo do horror, da decadência: o crack. Óbvio, foi a próxima a ser usada. Como eu disse antes, todas aquelas que dizemos, nós adictos, que nunca usaremos, serão as próximas. Meu Deus, que choque. Era muito bom. Eram cerca de dois minutos de efeito, mas que era aquilo? Não voltava mais para casa, gastava tudo o que eu tinha e o que não tinha. Nunca, em toda minha vida, tendo usado até mesmo cocaína e heroína injetáveis, experimentei uma compulsão tão violenta quanto a causada pelo crack. Há pessoas vivendo na rua que trocaram tudo pela pedra, família, filhos, casa, empregos, tudo. Vivem como zumbis, e, lembro-me, qualquer segundo de culpa ou arrependimento precisa ser anestesiado imediatamente, porque voltar é muito mais difícil do que continuar usando. Foram apenas alguns meses, mas destruíram muito mais do que dez anos de alcoolismo. No dia da maior crise de culpa, abstinência e dor que tive, contei tudo à minha família: pai, eu não sei mais o que é real e o que não é. Fomos procurar ajuda. 

Passei uma semana desintoxicando em uma clínica psiquiátrica. É preciso. Os primeiros dias precisam de um acompanhamento especial: convulsões, compulsões e, principalmente, o meu maior terror, os pesadelos com quantidades imensas da droga, são impossíveis de suportar sozinho. Depois, fui para uma comunidade terapêutica em Santa Catarina. Foram seis meses. Sim, metade de um ano, e para muitos é pouco, acabam ficando mais tempo.

Por quê? 

Porque é impossível parar continuando a viver no meio em que se vivia antes, continuando a ter as mesmas companhias, andando pelas mesmas ruas e, o mais complicado, pensando da mesma maneira. Aprendi muito. Eu tinha um imenso preconceito com a própria dependência química. Com a idéia de pedir ajuda. Todos os sentimentos eram, para mim, hipócritas e as pessoas apenas desfilavam vestindo um verniz social. Que descobri não ser verdade. Eles eram reais. Choravam quando sofriam, riam quando estavam felizes. Estavam "limpos" há anos e tinham recuperado algo que foi o meu maior desafio: sentir-se humano novamente. Confiar em alguém. Rir de uma piada. Era como se eu tivesse perdido a alma e precisasse reconstruí-la do nada. Eu nem sabia quais eram as músicas que eu gostava ou minha comida favorita. Afinal, nem comia...

Meus melindres dominavam em minha primeira reunião de Narcóticos Anônimos. Abriram com uma oração: "Deus, conceda-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para reconhecer a diferença", eu quase pulando da cadeira pensando "onde é que vim parar, um bando de fanáticos!". Não eram. Eles eram normais, trabalhavam, estudavam, muitos pareciam intelectualmente interessantíssimos e estavam ali num círculo dando as mãos e dizendo que só por hoje funciona. "Baixar a crista", como diziam os coordenadores, era o mais difícil. Perceber-se nada melhor do que ninguém ali, que minha dicção não era mais bonita por não ter passado pela favela ou por problemas na rua. Ouvir com humildade pessoas que dão o exemplo, aprender a ouvir o outro, pois o adicto é um egocêntrico que não dialoga, monologa. Uma conversa é apenas pretexto para ele deliciar-se com suas próprias opiniões.

Um valor comum como a verdade, para um dependente químico é sinônimo de medo. Verdade significa ser descoberto. Por mais que todos soubessem –e todos sabiam– eu continuava mentindo para acobertar o que estava acontecendo. Vigiar meus pensamentos, na prática, é muito mais difícil do que eu pensava, pois minha mente insiste em mentir para mim mesma, argumentando que não era tão mal assim. Que não era tão grande a quantidade de drogas que eu usava, que aquele tombo na rua, em plena luz do dia, nem tinha sido notado. 

Fui percebendo por esse e outros grupos de ajuda que conheci, que eu é que estava errada, claro para muitos, mas dentro dos quebra-cabeças cerebrais que eu construí para viver, o mundo era o das minhas regras e eu tinha todos os direitos. As pessoas não viviam assim, a vida corria em uma estrada que eu não conhecia, e não era aquela dos meus delírios. Se eu quisesse que meu filho me amasse, eu precisava estar com ele, assistir Scooby-Doo no sofá com ele e não ficar em minha cama, de ressaca, pensando em que maravilhosa mãe eu seria no futuro. Um filme em que eu era a atriz principal e que ele nunca via. 

Não há cura. Posso estagnar a doença, cuidando de não envenenar-me com sentimentos tortos. Muito da minha vida social morreu porque descobri que, estranho, não gostava de dançar ou de festas. Daquele monte de amigos sobraram dois. Continuo, parece-me uma espécie de "teste", atraindo pessoas dependentes, que sempre acabam oferecendo-me (não somente drogas, mas também os tais sentimentos que me fazem mal) e, pior, em horas difíceis. Tenho medo e vergonha muitas vezes, ao encontrar pessoas que conheceram esse passado, não importa quanto tempo faça. Faço um esforço tremendo para não abaixar a cabeça. Mas, como alguém poderia se orgulhar de algo assim? Eu não me orgulho. Em muitos momentos sinto-me mais perto do inferno (afinal lá eu conheço todos os becos, ruas, atalhos e os demônios pelo apelido de infância) que do céu, por estar obrigada a conhecer a mim mesma para não morrer.

Foi num desses dias perdidos que um enviado dos deuses mostrou-me a única e infalível terapia: As Pontes Para Formigas. 

Precisamos aqui de um quintal depois da chuva. Aquele cheiro da terra molhada é estritamente necessário. Parte importantíssima é um menino de seis anos, que será o seu guia na dificílima tarefa de construir pontes para formigas, a nossa terapia de sucesso. Ele lhe mostra como a chuva fez valas que ficaram úmidas e as formigas já não podem passar. Espalha uns farelinhos de bolacha Maizena nas duas margens da vala – que, explica o pequeno mestre, elas adoram. Pede que você ponha um palito atravessado como uma ponte por cima da valinha que dará então acesso ao formigueiro. Imprescindível que seja um palito de picolé de leite condensado comprado do garoto que passou tocando flautinha no dia anterior, chamado respeitosamente de O Picolezeiro – um tipo de intermediário místico – ou não funcionará. Sente-se e observe. Sua iluminação pode demorar um pouco. Elas se comunicarão, diz o menino, na língua das formigas, avisando umas às outras que há comida e acesso ao formigueiro novamente. E, se você prestar muita atenção, vai ver uma delas olhando para os gigantes incompreensíveis com gratidão de formiga (este estágio não consegui atingir pela enorme distância evolutiva entre o guia e eu, acho). Demoram um pouco para se adaptar às mudanças ocorridas, mas conseguem. Em silêncio você compreenderá tudo o que se perguntou a vida toda e buscou em tantos lugares diferentes, nunca encontrando.

Era tão simples. 

Perdi tanto tempo, o menino e as formigas estiveram sempre ali.

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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros.