sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Viva Felisberto de Carvalho

Recebo email de Soares Feitosa dando-me conta dos livros de Felisberto de Carvalho. Livros de leitura, utilizados nos ‘nordestes’ do Brasil, nos finais do século XIX até meados do XX. Eram ilustrados, tinham capas coloridas e eram ou são muito bem elaborados.
Nicodemos Araujo, poeta e historiador, nascido em Bela Cruz, em 1905, afirma ter aprendido as primeiras letras através dos livros de Felisberto; Patativa do Assaré, idem.
S.F., numa belíssima crônica intitulada ‘O assombroso cão do segundo livro’, nos dá conta que na escola, até os anos 50, meninos do ABC, da Cartilha, do Primeiro Livro, do Segundo Livro e do Terceiro Livro, eram misturados numa sala só [ai, Professora!] no entanto, a lição de cada um era tomada com disciplina e energia, graças, talvez, a palmatória de angico [mas como dói!] com um furo no meio, que todos nós sabemos muito bem sua serventia.
Mas ele quer mesmo nos falar é do cão. O cão do Segundo Livro. Prefiro falar de cachorros. Que aqui pra nós cachorro é cachorro e cão é cão mesmo – diz-se sempre como sinônimo demoníaco – satanás, diabo, lúcifer, belzebu.
O desprestígio moral do cão, afirmam, teria sido trazido ao Brasil pelos africanos, mesmo assim não há explicação convincente para o cão demoníaco. Segundo Câmara Cascudo, em Angola e na maioria dos idiomas bantos onde o português se projetou, a palavra fascinante para o negro insultar o companheiro foi sempre ‘diabu’. Só no Brasil há, na sinonímia, o cão, cão-coxo, cão-preto.
Nos Açores, entretanto, o demônio é chamado cão-negro e cão-tinhoso. O certo é que o cão fiel, corajoso e valente das estórias populares não nos veio da África nem do Oriente.
Segundo S.F., cão macho ganha nome de feras, se fêmea, nome de peixe. Luis Gonzaga, que a partir de 46, divulgou o Baião pelas estações de rádio do Rio de Janeiro, e depois por todo o Brasil, numa de suas músicas [Samarica Parteira?] diz também que cachorro de pobre tem sempre nome de peixe: piaba, tainha, traíra, baleia e por aí vai.
Minha vizinha assegura – o nome de peixe da sua cachorrinha tem outra garantia: não ficar hidrófoba. Sua cadela se chama Piranha. E eu pensando outra coisa. Malvadeza. Coitada.
Valeu, Francisco, sua crônica está um primor. E esses livros na internet é uma maravilha. Viva Felisberto de Carvalho. Grande e fraterno abraço do seu leitor Vicente Freitas 03 / 02 / 2006

E agora José

Para José Alcides Pinto, assim como para Baudelaire, o artista é um indivíduo superior que a massa dos “salsicheiros” tenta constantemente abafar, esmagar, aniquilar. O seu destino: a solidão e a incompreensão. A única defesa: o desprendimento, o desprezo pela regra comum. Esse poeta e ficcionista, dos maiores do mundo, deve receber um tratamento todo especial, o mesmo que dispensamos aos Verlaines, Mallarmés, Rimbaud’s e Lautréamont’s. Não que ele tenha nada a ver com esses malucos, mas pelo valor de sua obra, independente deste ou daquele grupo. Na verdade, não podemos filiá-lo a qualquer movimento literário. Ele é muito independente e pessoal em seu processo criativo, assim como o é – um Gerardo Mello Mourão e tantos outros consagrados, mesmo aqui da província. Poeta, ficcionista, teatrólogo, ensaísta, crítico literário, memorialista, artista plástico, jornalista, José Alcides Pinto nasceu na antiga aldeia do Alto dos Angicos, em São Francisco do Estreito, Ribeira do Acaraú, no Ceará. Estreou em livro, em 1950 [em parceria com Ciro Colares e Raimundo Araújo] com a Antologia dos Poetas da Nova Geração [prefácio de Álvaro Moreira]. No ano seguinte organiza a Antologia da Moderna Poesia Brasileira [prefácio de Aníbal Machado]. Em 1952, publica seu primeiro livro individual, Noções de Poesia & Arte. Outros se seguiram e ele continua escrevendo até hoje: romance, novela, conto, poesia, teatro, ensaio e crítica literária, sendo considerado um poeta de vanguarda e experimental. Jornalista profissional, ingressou na imprensa muito jovem. Colaborou nos Suplementos Literários do “Diário Carioca”, “Diário de Notícias”, “Correio da Manhã” e toda a imprensa de Fortaleza. Diplomou-se em jornalismo, pela Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil e em Biblioteconomia, pela Biblioteca Nacional. Foi ainda redator do Ministério da Educação e Cultura, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Ceará, cargos dos quais pediu dispensa para dedicar-se à sua fazenda no interior cearense e elaborar sua obra literária. Mergulhado no Acaraú, nas águas doces do rio, aos oitenta e lá vai pedra, ele continua escrevendo a biografia desse rio. E sua poesia é como se nascesse do sol, da chuva, da palha da carnaubeira. Da beira da vagina da menina da Ribeira. Isto é muito bonito. Tenho dito. Vicente Freitas

Ao cair da tarde

Recebi ontem o precioso livro “Ao cair da tarde” [Editora ABC, Fortaleza, 2006] de Lustosa da Costa, e de uma sentada, ou melhor, deitada [mania que tenho de ler num velho tucum de embira de carnaúba] consumi as 96 crônicas enfeixadas nesse mimoso volume de 150 páginas.
“Ao cair da tarde”, pelo título, já é um poema, um verso de cinco sílabas, quer nas crônicas do cotidiano, quer no perfil de amigos ou inimigos, quer nas suas observações de viagem – o livro se banha com a unção de um lirismo encantador.
Suas crônicas parecem esconder uma complexidade pressentida sob límpida naturalidade, numa prosa divagadora de quem conversa distraído, passando o tempo, sem se preocupar com o jeito de falar. E, no entanto, uma prosa cheia de achados de linguagem – uma sintaxe livre e flexível – propiciando poesia num ritmo leve e doce que nem caldo de cana espremida.
Uma experiência que se transmite por estórias, que parece vir de outros tempos e retomar o fio da tradição oral, tal qual os contadores de causos [é mentira, Terta?], espalhados por estes rincões de Maria Bonita e Lampião.
Lustosa da Costa, cronista hoje consagrado, começou no jornalismo, ainda nos anos 50, no Correio da Semana, da sua querida e sempre lembrada fidelíssima cidade Januária do Acaraú. Época da popularização dos veículos de comunicação de massa, quando o jornalismo conquistava enormes contigentes de leitores – promovia o consumo, suicídio de presidente, destituía ministros e cassava deputados, como hoje. Era, enfim, o chamado “quarto poder”. Ou é.
Como afirmou Mário de Andrade, que conto é aquilo que o autor do conto afirma ser conto, tal definição se aplica ainda com mais propriedade à crônica moderna brasileira. Por ela se poderá verificar o quanto é variável de um para outro o conceito desse gênero literário que engloba tudo: lembranças de infância, flagrantes do cotidiano, considerações literárias, notas de viagem, tipos inesquecíveis, páginas de memórias, bricabraque e tal.
Lustosa da Costa merece o nosso carinho e a nossa admiração, no momento em que lança mais um livro, dando continuidade, assim, à sua vocação literária, numa terra em que a crônica tem excelentes cultores, nas obras de um Ribeiro Ramos, Rachel de Queiroz, Milton Dias, Ciro Colares, João Clímaco Bezerra, João Jacques, Osmundo Pontes, Padre Antônio Vieira, Soares Feitosa, Roberto Pires e tantos expoentes da literatura cearense. O que nos deixa sorumbáticos [sorumbáticos?] é que a maioria deles já viajou pra cidade dos pés juntos. Então, que viva. Viva muito. Viva Lustosa.
Entre, amigo leitor, ao cair da tarde, no mundo mágico de Lustosa. Estas crônicas – poesia do cotidiano – a partir de agora em forma de livro, passam a ser um bem comum de todos nós. Venha participar dessa festa da inteligência, que é a convivência com Lustosa da Costa.
VICENTE FREITAS - licenciado em história e geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA. É autor de vários livros e escreve artigos e ensaios para jornais, revistas e internet.