terça-feira, abril 15, 2025

O LIVRO PÓSTUMO DE BERNARDO SOARES

O Livro do Desassossego é o diário íntimo de um “filósofo” que passeava pelo Rossio, ou ia, do Largo de Camões à Baixa, pela Rua dos Douradores, descrevendo os telhados, os bondes e os seres urbanos de Lisboa. Não tinha por pátria senão a língua portuguesa. 

O autor do Livro do Desassossego tinha o aspecto de haver sofrido privações. Jantava pouco e fumava tabaco de onça. Gastava as noites no quarto alugado, escrevendo. Em seus passeios pelas ruas tristes e sossegadas, ia lendo Cesário Verde e devaneando. Subia a Rua do Alecrim, rumo ao Chiado. Descia a Rua da Prata, observando as cores das frutas vendidas nas  ruas, divisando o Tejo ao fundo, azul, e exclamando: “Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do abismo! Oh, Lisboa, meu lar!” (p. 87).

De uma fresta da janela, espreitava as pessoas: escutava os gritos dos vendedores, via a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, o riscar redondo das rodas das carroças. “Não há para mim flores como, sob o sol, o colorido variadíssimo de Lisboa”. (p. 65). 

Encontram-se versos de outros heterônimos, entre os fragmentos do caudaloso Livro do Desassossego, que flui, majestosamente, no raciocínio de cada sintagma na linguagem analítica. De Reis a Campos, sobressaem equivalências nas proposições do estoicismo e do epicurismo, cuja dedução resulta no niilismo final da equação. 

Esse portentoso texto engloba as excentricidades geniais de Fernando Pessoa, em todo o espectro da sua criação literária. É poesia escorreita, é um romance heterodoxo e é um tratado de filosofia e crítica. As inúmeras alusões a Lisboa fazem da obra um livro castiço lisboeta. O notívago, o boêmio e o contemplativo acham guarida na vibrante linguagem que evoca a cidade do Tejo:  “Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo nítido o sem sol do céu ocidental”. (p.198).

Com efeito, era “no escritório estreito cujas janelas mal lavadas dão sobre uma rua sem alegria”, que ele compunha o seu jogo de opostos que se atraem nas maravilhosas conjugações. Ali, na Rua dos Douradores, o dramaturgo atabalhoado Shakespeare, o mestre-escola Milton, o vadio Dante e o desventurado Cesário Verde se reuniam na psicosfera de Pessoa e de Bernardo Soares, ambos Super-Camões, para mostrar que “cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos”. (p. 319).

Tem sido praxe, hoje em dia, publicarem o Livro do Desassossego com o nome de Fernando Pessoa, autor, e não o injustiçado Bernardo Soares, talvez porque o próprio Pessoa o haja relegado à condição de semi-heterônimo.

Se, por um lado, entretanto, o descomunal Pessoa tem incontáveis discípulos, Bernardo Soares também tem os seus, malgrado a referida campanha editorial.

O exímio Vicente Freitas Liot, por exemplo, dá provas de que se comunicou, telepática, ou mediunicamente, como queiram, com Fernando Pessoa e Bernardo Soares, para escrever O Livro Póstumo de Bernardo Soares. Já na apresentação, verossimilhantemente, reitera-se que “a verdadeira genialidade não se limita a um único autor, mas pode se manifestar em diferentes vozes”. A temática, a tonalidade e o conteúdo multifacetado da obra pessoana estão na sombra sonora do fiel seguidor de suas trilhas labirínticas. O sentido da solidão e do enigma, a meditação estética e as torrentes da reflexão e do sentimento do mestre transparecem na ficção e na intensidade do discípulo.

         Eis, portanto, mais uma prova da influência de Fernando Pessoa no mundo das ideias e das grandezas espirituais propriamente ditas. 

Vicente Freitas, do sertão do Ceará para o mundo, nos presenteia com as suas invocações e evocações do Vate português, na persona de um dos seus mais eminentes heterônimos, que, aliás — se diga, em trânsito — foi um continuador da escrita do Livro do Desassossego, iniciado por um certo Vicente, não o Freitas, mas Vicente Guedes. Foi este o primeiro heterônimo, que redigiu as primeiras assertivas do fabuloso monólogo do solitário sonhador da Rua dos Douradores.

No segundo tempo, o desassossegado Vicente Guedes foi substituído por Bernardo Soares e, na prorrogação, por Vicente Freitas Liot, o qual veio “regressar, pela recordação, a única verdade que é a literatura”. Efetivamente, as especulações do Poeta sobre a própria existência e o sentido da vida, brilham nas páginas do livro de Vicente Freitas–Bernardo Soares, nos rastros luminosos que vão da Ribeira do Acaraú à Ribeira do Tejo e vice-versa, alhures, infinitamente, onde quer que jorrem as fontes castálias de água lustral.

                                    

Márcio Catunda é poeta, romancista e ensaísta.

 Bacharel em Direito. É também formado

em Letras. Em 1985, ingressou na

carreira diplomática.

 

 

 

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