O Livro do Desassossego é o diário íntimo de um “filósofo” que passeava pelo Rossio, ou ia, do Largo de Camões à Baixa, pela Rua dos Douradores, descrevendo os telhados, os bondes e os seres urbanos de Lisboa. Não tinha por pátria senão a língua portuguesa.
O autor do Livro do Desassossego tinha o aspecto de haver sofrido privações.
Jantava pouco e fumava tabaco de onça. Gastava as noites no quarto alugado,
escrevendo. Em seus passeios pelas ruas tristes e sossegadas, ia lendo Cesário
Verde e devaneando. Subia a Rua do Alecrim, rumo ao Chiado. Descia a Rua da
Prata, observando as cores das frutas vendidas nas ruas, divisando o Tejo ao fundo, azul, e
exclamando: “Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que paisagem alegre
a simples chuva na rua ressuscitada do abismo! Oh, Lisboa, meu lar!” (p. 87).
De uma fresta da janela, espreitava as
pessoas: escutava os gritos dos vendedores, via a oscilação dos padeiros,
monstruosos de cesto, o riscar redondo das rodas das carroças. “Não há para mim
flores como, sob o sol, o colorido variadíssimo de Lisboa”. (p. 65).
Encontram-se versos de outros heterônimos,
entre os fragmentos do caudaloso Livro do
Desassossego, que flui, majestosamente, no raciocínio de cada sintagma na
linguagem analítica. De Reis a Campos, sobressaem equivalências nas proposições
do estoicismo e do epicurismo, cuja dedução resulta no niilismo final da
equação.
Esse portentoso texto engloba as
excentricidades geniais de Fernando Pessoa, em todo o espectro da sua criação
literária. É poesia escorreita, é um romance heterodoxo e é um tratado de
filosofia e crítica. As inúmeras alusões a Lisboa fazem da obra um livro
castiço lisboeta. O notívago, o boêmio e o contemplativo acham guarida na
vibrante linguagem que evoca a cidade do Tejo:
“Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso,
e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo nítido o sem sol do céu ocidental”.
(p.198).
Com efeito, era “no escritório estreito
cujas janelas mal lavadas dão sobre uma rua sem alegria”, que ele compunha o
seu jogo de opostos que se atraem nas maravilhosas conjugações. Ali, na Rua dos
Douradores, o dramaturgo atabalhoado Shakespeare, o mestre-escola Milton, o
vadio Dante e o desventurado Cesário Verde se reuniam na psicosfera de Pessoa e
de Bernardo Soares, ambos Super-Camões, para mostrar que “cada um de nós é
vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos”. (p. 319).
Tem sido praxe, hoje em dia, publicarem o Livro do Desassossego com o nome de
Fernando Pessoa, autor, e não o injustiçado Bernardo Soares, talvez porque o
próprio Pessoa o haja relegado à condição de semi-heterônimo.
Se, por um lado, entretanto, o descomunal
Pessoa tem incontáveis discípulos, Bernardo Soares também tem os seus, malgrado
a referida campanha editorial.
O exímio Vicente Freitas Liot, por
exemplo, dá provas de que se comunicou, telepática, ou mediunicamente, como
queiram, com Fernando Pessoa e Bernardo Soares, para escrever O Livro Póstumo de Bernardo Soares. Já
na apresentação, verossimilhantemente, reitera-se que “a verdadeira genialidade
não se limita a um único autor, mas pode se manifestar em diferentes vozes”. A
temática, a tonalidade e o conteúdo multifacetado da obra pessoana estão na
sombra sonora do fiel seguidor de suas trilhas labirínticas. O sentido da
solidão e do enigma, a meditação estética e as torrentes da reflexão e do
sentimento do mestre transparecem na ficção e na intensidade do discípulo.
Eis,
portanto, mais uma prova da influência de Fernando Pessoa no mundo das ideias e
das grandezas espirituais propriamente ditas.
Vicente Freitas, do sertão do Ceará para o
mundo, nos presenteia com as suas invocações e evocações do Vate português, na
persona de um dos seus mais eminentes heterônimos, que, aliás — se diga, em
trânsito — foi um continuador da escrita do Livro
do Desassossego, iniciado por um certo Vicente, não o Freitas, mas Vicente
Guedes. Foi este o primeiro heterônimo, que redigiu as primeiras assertivas do
fabuloso monólogo do solitário sonhador da Rua dos Douradores.
No segundo tempo, o desassossegado Vicente
Guedes foi substituído por Bernardo Soares e, na prorrogação, por Vicente
Freitas Liot, o qual veio “regressar, pela recordação, a única verdade que é a
literatura”. Efetivamente, as especulações do Poeta sobre a própria existência
e o sentido da vida, brilham nas páginas do livro de Vicente Freitas–Bernardo
Soares, nos rastros luminosos que vão da Ribeira do Acaraú à Ribeira do Tejo e
vice-versa, alhures, infinitamente, onde quer que jorrem as fontes castálias de
água lustral.
Márcio Catunda
é poeta, romancista e ensaísta.
Bacharel em Direito. É também formado
em
Letras. Em 1985, ingressou na
carreira
diplomática.
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