Versos cantados ao som da viola
O filho do alfaiate,
Seu brinquedo – é com retalho;
O filho do jogador
Gosta muito é do baralho,
E o filho do preguiçoso
Só dorme bem no borralho.
O filho do homem praiano
Comendo vício é de areia;
O filho da costureira,
Sua roupa é muito feia
Porque é feita de taco
Que sobrou da roupa alheia.
O filho do carreteiro
Brinca com caixão e saca;
O filho do feiticeiro
Só fala em urucubaca,
E o filho do vaqueiro,
Junta ossinho, chama vaca.
O filho do ferreiro,
Seu brinquedo é uma faca;
O filho do pescador
Aprende a fazer tarrafa
E o filho do cachaceiro
Nasce lambendo a garrafa.
O mundo diz uma coisa
Eu acho que ele diz bem,
Porque o vício do pai
Este mesmo o filho tem.
Se o pai é mau pagador
O filho não paga a ninguém.
Se o velho bebe cachaça,
O filho bebe é branquinha;
Para não ficar ardosa
Bota mel, faz meladinha,
Sai com as pernas trançando
Como quem trança bainha.
Quando o velho bebe muito,
O filho inda bebe mais;
Beber cana e tirar gosto
É hoje o que o povo faz.
O bêbado só veste as calças
Com a braguilha pra trás.
A minha casinha
Eu moro em uma cabana,
Numa pequena choupana
Coberta de jitirana,
Cheia de flor sem botão...
É ali onde existe,
Onde mora um cego triste
Com mágoas no coração...
A casinha é de biqueira,
Em baixo, ao pé da soleira,
Tem um pé de trepadeira
Com os galhos ao abandono...
Quero sorrir, porém choro,
A casinha onde eu moro
Parece que não tem dono.
E lá fora no terreiro
Tinha um pé de juazeiro
Que nunca foi altaneiro,
Deram-lhe um golpe, pendeu...
Sem fruta, sem flor existe,
Desfolhado, vive triste...
Todos cantam sua glória,
Amor, riso e vitória,
Eu apenas canto a história
Do que há pouco se passou:
Tudo quanto eu possuía,
Em agosto, um certo dia,
A casinha se queimou...
Esta pequena casinha
Que eu chamava toda minha
Era a morada que tinha,
Pedia a Deus, no meu rogo,
Para ela ser feliz,
Mas como Jesus não quis,
A casinha pegou fogo...
Versos à Natureza
Por exemplo: plantamos uma semente
Numa terra limpa e bem queimada:
Ela nasce linda e zelada
Por ação desta terra úmida e quente.
Vai crescendo e ficando resistente
E tomando um aspecto de beleza.
Muito embora que árvore nasça presa
Entre negros rochedos absolutos,
Ela cria verdor, flores e frutos
Por impulso da mão da natureza.
Por exemplo: vemos um aruá
Com um búzio que é sua moradia,
E um par de antenas que lhe guia
E lhe indica o lugar aonde está.
E o inseto chamado embuá,
Muitas pernas moventes com destreza,
Perdeu uma, faltou-lhe a ligeireza
E começa a andar desaprumado,
Isto tudo nos deixa admirado
Do impulso da mão da natureza.
Por exemplo: nós vemos uma palmeira,
Suas palmas em forma de penacho.
A fenda por onde passa o cacho,
Não se encontra caçando a vida inteira,
Também vemos um pé de bananeira,
Que dá frutos que enfeita a nossa mesa,
Tem sabor, tem perfume, tem beleza
E vitamina que faz nossa saúde.
Tudo isso nos faz crer na virtude
Do impulso da mão da natureza.
A lagarta tem forma de serpente
Quando vai viajando numa estrada,
Mas, depois de metamorfoseada,
Ela toma uma vida diferente:
Cria asas de cor bem transparente,
Verdadeiro vislumbre de beleza.
Nem ciência, nem arte, nem riqueza
Poderia pintar beleza igual.
Isto é lei do Juiz Universal
E é impulso da mão da natureza.
Agradecimento a Juscelino
Agradeço a JK,
Presidente da Nação,
Que antes de ir pra Brasília
Assinou minha pensão,
Afirmo que ele tirou
Um cego da precisão.
Ele, a 21 de abril,
Cumpriu o seu ideal:
Inaugurando Brasília,
Cidade sem ter rival,
E que será, para sempre
A capital Federal.
Só tu, bonita Brasília,
Vieste para empolgar
Este bonito planalto,
O sonho de JK,
Foi Juscelino quem fez
Todo o Brasil acordar!
O Brasil, há muitos anos,
Vivia em pesado sono,
Mas, agora despertou,
Tendo JK por dono,
O poder desta nação
Continua em novo trono.
Já estamos antevendo
Do Brasil o bom destino;
Novos governos virão
Cheios de fé e bom tino:
Outro talvez continue
A obra de Juscelino.
Envio à sua família
(Que para mim é sagrada)
As mil felicitações
De minh’alma consolada,
Para que Deus ilumine
O Palácio da Alvorada!
A Minha Mãe
Hoje é dia das mães... Quanta saudade
Dos beijos e carinhos dos meus pais.
Dos lindos tempos da primeira idade
Que já se foram pra não voltar mais...
Minha mãe! Minha mãe! Nunca se acalma
A dor imensa do meu coração:
Eu tenho um Saara de saudade n’alma
Daqueles tempos que bem longe vão...
Tempos que falam de uma vista linda
Sobre os campos imensos e a floresta.
Onde o sorriso duma infância brinda
Todo o fulgor da passarada em festa!
Este dia das mães, como outros dias
Santos e puros, cheios de afeição,
Abriga o bem de todas as Marias
Cantando rimas para um coração...
Mas minha mãe partiu... Meus dezoito anos
Trouxeram-me a cegueira... Foi-se a palma...
Desde então eu a vejo entre meus planos
Mas somente com os olhos de minha’alma!
Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.
Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos.
Textos extraídos do livro "Eu sou o Cego Aderaldo", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora — São Paulo, 1994.
Textos disponíveis em http://www.vicentefreitas.blogspot.com
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