domingo, janeiro 09, 2011

O lado louco de Proust

"A tarefa do artista é transformar o acidental em imutável".
 Gustave Flaubert 
Andrea Trompczynski
Marcel Proust, ainda pequeno, visitava os aposentos do tio Amiot, que, com cascas de coco esculpidas, esteiras africanas, cachimbos e narguilés, tentava reconstruir a África onde vivera por muitos anos. Neste refúgio, havia algo mais que impressionou e influenciou Proust por toda a vida: muitas fotografias, que tio Amiot passava longas horas contemplando e meditando em sua mocidade. Era a sua maneira de buscar o tempo perdido. Transformou, mais tarde, o tio Amiot em duas personagens: o sr. Abert de Jean Santeuil, e, um velho capitão reformado de um texto publicado na Revue Blanche, em 1893, que, debruçado sobre seus dias gloriosos, vive de recordações, sobretudo "fotografias danificadas a despeito das precauções, como aquelas relíquias desgastadas pela própria devoção dos fiéis: beijam-nas com excessiva frequência".

Mas a sra. Proust também teve seu bocado de influência. Proust foi fotografado quatro vezes, em "sessões de pose", com roupas principescas, o que deve ter deixado suas marcas. Na idade adulta, sua aparência era de total desleixo, vestindo casacos surrados um por cima do outro e levando a mãe a admoestar aquele homem, já com trinta e três anos, a cortar o cabelo. Apesar da saúde frágil, entrou no exército apenas por seu gosto pela fotografia. Imaginava retratos de si próprio em "uniforme tão resplandecente", e, o que aconteceria se pudesse oferecê-los à noiva de Gaston, por quem estava apaixonado. No mesmo dia, faz-se fotografar em quatro poses diferentes, diante de um muro.
Quando era convidado para jantares, levava consigo sua coleção, seus álbuns, o que, muitas vezes, causava bocejos na platéia. Todos os amigos de Proust relataram o mesmo: o eterno desempacotamento de fotografias. Chegava até mesmo a mentir, como quando foi convidado por Lucien e Léon Daudet: "Tentarei encontrar uma velha fotografia de Goethe patinando em Frankfurt". Goethe morreu em 1832, a fotografia foi inventada em Niepce em 1824, mas seu nascimento efetivo data de 1839, impossível então Goethe ter sido flagrado patinando!

hobby torna-se, então, doença. Proust, incansável, obstinou-se em conseguir retratos daqueles que resisitiam a se desfazer deles. EmProust e a fotografia, de Brassai, onde toda esta história se desenrola, ele escreve ao duque Armand: "Quanto à sua fotografia, é pouco gentil tê-la me prometido e não a dado." Depois de conseguida a foto, transforma-se o duque num gentleman: "É preciso agradecer-lhe sempre, uma vez que o senhor foi sempre muito gentil. Recebi a bela fotografia, muito fiel, preciosíssima para fixar as lembranças de um esquecido". Montesquiou, que havia recusado o pedido primeiramente, também não suportou a pressão e chantagens de Proust e cedeu, enviando-lhe a fotografia. Mas era pouco, Proust pensou que a dedicatória era simples demais para tão importante figura e pediu que fosse refeita, bajulou Montesquiou o quanto pode e, novamente, conseguiu o que queria.

Cada encontro, cada verão, cada passeio, estava ligado a uma troca de fotografias. Apaixonava-se pelas figuras ali retratadas. Buscava nelas as personagens de seus livros, inspirava-se nelas, sofria, quando, apresentado pessoalmente ao retratado, decepcionava-se por não ser glamouroso como pensava. Por não ter os ares que tinha na fotografia. Por não ser mais a personagem de sua fantasia. Mendigava ilusões aqui e acolá, disse certa vez a Montesquiou: "Se o senhor possuir alguma fotografia poética, algum objeto sensível que possa me emprestar para eu me divertir e sonhar, seria bem precioso para mim em minha vida tão triste".

As observações de Proust sobre o sadismo, em suas correspondências, são tão profundas quanto foram as sobre o ciúme e o amor. Na Recherche, há uma cena que causou escândalo na época da publicação do livro, do ultraje cometido contra o retrato de Vinteuil. O sr. Vinteuil havia morrido e sua filha, olhando seu retrato, diz: "sabe o que tenho vontade de fazer com essa velharia horrorosa?" (...) "Não. Não me atreveria a cuspir em cima disso. Disso?". Vários traços característicos da sra. Proust são encontrados no personagem de Vinteuil, seu extremo pudor, seu rigor moral, sua negação das tendências homossexuais do filho. O amor de Proust por sua mãe é um amor magoado, e quem poderia invejar o papel dela? Como suportar aquele filho hipersensível, suscetível, violento, hipocondríaco? Numa de suas cartas há um trecho em que ele escreve: "você põe tudo abaixo até que eu me sinta novamente mal". Para depois, convalescê-lo, com ternura e indulgências infinitas, num ciclo de sadismo.

No final de janeiro de 1907, um ano após a morte da sra. Proust, Gaston Calmette, o diretor do Figaro, pede-lhe com toda urgência um artigo para o jornal sobre um suicida que assassinara a própria mãe. Proust, num artigo que assustara a todos, faz uma apologia do parricídio, dizendo ser "um crime e uma expiação dignos de permanecerem ilustres" e que "o túmulo de Édipo em Colono e o de Orestes em Espartas eram os mais sagrados e mais dignos de veneração". Dizia que os assassinos de Laio e Clitmnestra tinham sido punidos, mas "os gregos quiseram que sua memória fosse honrada".

Segundo Maurice Sachs, nos anos 1917-18, a mania de exibir fotografias na frente dos amigos já assumira um aspecto perverso. No palacete Marigny, ele teria estendido um dia um maço de fotos a um dos jovens açougueiros que lhe faziam companhia a fim de que ele cuspisse sobre retratos de amigas célebres. E ele próprio teria cuspido sobre o da sra. Proust.

A fotografia
A imagem inerte, a pose, as mãos, os olhos do fotografado, quantas obsessões são geradas a partir de uma fotografia. Que amores, que paixões! Quantas personagens nascem, quantas histórias se imagina. E quando mostramos a alguém o objeto de nosso amor, aquele nem sequer vê um pingo dos encantos que vemos. Como Proust, que só despertava bocejos. Mas, pode o instantâneo vencer a passagem do tempo? Proust se apegava mais à eles do que às pessoas, as desprezava, por ver nelas as rugas, a decadência. Como o tio Amiot voltava à África, no seu quarto, em meio às suas recordações, e, passou a amar mais o quarto do que a própria África: podia ser jovem e viril novamente. As fotografias de Proust eram toda a sua companhia, eram seus convivas, à sua volta, como ele queria que fossem, em gestos de estátua que ele amava e deles imaginava as conversações com as quais escreveu seus livros.
A loucura
Já não me surpreendo com detalhes sórdidos acerca de gênios. Que adjetivo mais posso usar para quem escreveu Em Busca do Tempo Perdido a não ser gênio? Todo o sadismo, toda a obsessão, ah, que fosse muito mais, eu nunca o julgaria. Graças a Deus Proust teve aquela mãe sádica e cuspiu na fotografia dela, graças a Deus se vestia como um bêbado, graças a Deus implorava, mendigava objetos e fotografias de fetiches, em prazeres bissexuais, louco a caçar afeições num papel. Ou nunca teríamos Em Busca do Tempo PerdidoNo Caminho de SwannÀ Sombra das Raparigas em Flor, e outros, muitos outros, que um contínuo de escritório, pagador de impostos, frequentador de missas, virtuoso cidadão e respeitador da mãe nunca escreveria. 

“A obra do escritor não é senão uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor a fim de lhe permitir discernir o que, sem aquele livro, ele talvez não tivesse visto em si mesmo”. (Marcel Proust)

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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros. 

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