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O Retrato do Doutor Rey, Vincent Van Gogh |
Há quadros que nascem para a glória, pendurados desde o início nas paredes brancas de museus, sob luzes cuidadosamente ajustadas, protegidos por placas de vidro, alarmes discretos e vigilantes sonolentos. Outros, porém, como certas sementes que germinam no meio do asfalto, precisam atravessar a ignorância, o descaso e até mesmo o ridículo, para enfim alcançar a dignidade de serem vistos como obra de arte. Assim foi o “Retrato do Doutor Rey”, pincelado por Vincent Van Gogh, com toda a fúria e a ternura que cabiam em suas cores.
O
retrato, sabemos hoje, é uma peça fundamental para entender a biografia
torturada de Van Gogh e seu breve, mas intensíssimo, encontro com o médico de
Arles, Felix Rey, que o tratou após o célebre episódio da orelha cortada. O
médico, um jovem de temperamento simples e pragmático, não parece ter ficado
muito impressionado com a honra de ser retratado pelo artista — ou talvez tenha
ficado, mas a família tinha preocupações mais imediatas. O quadro, levado para
casa, foi usado com a mais prosaica das finalidades: tapar um buraco no
galinheiro.
Sim,
ali, entre penas, milho e excrementos, resistiu por anos o “Retrato do Doutor
Rey”, sua pintura feita de camadas espessas e vibrantes, agora exposta ao sol,
à chuva, aos bicados ocasionais das aves e ao risco sempre iminente de ser
jogada fora como qualquer tábua imprestável. O que seria do quadro, não fosse o
estranho destino que rege certos objetos?
Depois,
como quem sobe um degrau inesperado, o quadro migrou para o sótão, lugar onde
os homens e as coisas aguardam o juízo do tempo. E ali ficou, esquecido e
empoeirado, até ser dado — dado! — a um jovem soldado, Charles Camoin, que mais
tarde se tornaria pintor. Não há registro de como se deu essa dádiva, mas imagino
que foi com a mesma leveza com que se passa um casaco velho ou uma cadeira
quebrada. Para que guardar aquilo?
Camoin,
mais sensível ao valor oculto daquela tela, vendeu-a a uma galeria por modestos
150 francos. Uma quantia sem pompa, mas suficiente para que o quadro ganhasse,
enfim, o seu passaporte para o mundo da arte. De lá, iniciou sua odisseia
europeia: foi encontrado numa galeria em Berlim, depois atravessou de novo as
fronteiras, até pousar, em 1908, numa galeria parisiense. E ali, sob as luzes
discretas do comércio de arte, foi comprado pelo colecionador russo Sergei
Shchukin.
Ah,
Shchukin! O homem que amava o que ninguém
amava. Colecionador de “arte impopular”, guiava-se apenas pelo próprio gosto,
impassível aos modismos ou à aprovação pública. Talvez visse, no olhar
estrábico do Doutor Rey, alguma coisa que ninguém antes tinha visto — ou talvez
apenas acreditasse que, no fim, o tempo corrige os erros do presente.
Pagou
4.600 francos pela tela — valor já considerável — e a levou para a Rússia, onde
ela repousou, pela primeira vez com dignidade, na coleção de um homem que a
tratava como obra, e não como tábuas de vedação para galinhas.
Mas
o século XX tinha planos severos para as coisas privadas. A revolução
bolchevique, com sua fome insaciável de coletivizar tudo, confiscou a coleção
de Shchukin. O “Retrato do Doutor Rey” foi integrado ao patrimônio do Estado e,
por uma dessas ironias históricas, sobreviveu não apenas ao desprezo da família
Rey, mas também à expropriação revolucionária. Hoje, está no Museu Pushkin, em
Moscou, exposto sob luz controlada, protegido por alarmes e observado, com
reverência silenciosa, por visitantes de todo o mundo.
Olho
para essa trajetória e penso: talvez não haja quadro mais vivo do que este.
Afinal, viveu nas mãos do pintor, na parede improvisada do galinheiro, nas
sombras do sótão, na esperança do jovem Camoin, nas vitrines discretas das
galerias, no olhar visionário de Shchukin e, por fim, na custódia fria do
Estado soviético. Cada estágio deixou ali sua camada invisível, sua história
que, apesar de tudo, não apagou a intensidade das cores.
E
o mais bonito — ou o mais terrível — é pensar que nada disso seria possível se
alguém, num dia qualquer, tivesse jogado fora aquela madeira pintada, como quem
joga fora um pedaço inútil do mundo. A arte, afinal, não é apenas aquilo que se
cria. É, sobretudo, aquilo que se insiste em não destruir.
Vicente
Freitas Liot
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