quinta-feira, maio 22, 2025

O RETRATO DO DOUTOR REY

O Retrato do Doutor Rey, Vincent Van Gogh

Há quadros que nascem para a glória, pendurados desde o início nas paredes brancas de museus, sob luzes cuidadosamente ajustadas, protegidos por placas de vidro, alarmes discretos e vigilantes sonolentos. Outros, porém, como certas sementes que germinam no meio do asfalto, precisam atravessar a ignorância, o descaso e até mesmo o ridículo, para enfim alcançar a dignidade de serem vistos como obra de arte. Assim foi o “Retrato do Doutor Rey”, pincelado por Vincent Van Gogh, com toda a fúria e a ternura que cabiam em suas cores.

O retrato, sabemos hoje, é uma peça fundamental para entender a biografia torturada de Van Gogh e seu breve, mas intensíssimo, encontro com o médico de Arles, Felix Rey, que o tratou após o célebre episódio da orelha cortada. O médico, um jovem de temperamento simples e pragmático, não parece ter ficado muito impressionado com a honra de ser retratado pelo artista — ou talvez tenha ficado, mas a família tinha preocupações mais imediatas. O quadro, levado para casa, foi usado com a mais prosaica das finalidades: tapar um buraco no galinheiro.

Sim, ali, entre penas, milho e excrementos, resistiu por anos o “Retrato do Doutor Rey”, sua pintura feita de camadas espessas e vibrantes, agora exposta ao sol, à chuva, aos bicados ocasionais das aves e ao risco sempre iminente de ser jogada fora como qualquer tábua imprestável. O que seria do quadro, não fosse o estranho destino que rege certos objetos?

Depois, como quem sobe um degrau inesperado, o quadro migrou para o sótão, lugar onde os homens e as coisas aguardam o juízo do tempo. E ali ficou, esquecido e empoeirado, até ser dado — dado! — a um jovem soldado, Charles Camoin, que mais tarde se tornaria pintor. Não há registro de como se deu essa dádiva, mas imagino que foi com a mesma leveza com que se passa um casaco velho ou uma cadeira quebrada. Para que guardar aquilo?

Camoin, mais sensível ao valor oculto daquela tela, vendeu-a a uma galeria por modestos 150 francos. Uma quantia sem pompa, mas suficiente para que o quadro ganhasse, enfim, o seu passaporte para o mundo da arte. De lá, iniciou sua odisseia europeia: foi encontrado numa galeria em Berlim, depois atravessou de novo as fronteiras, até pousar, em 1908, numa galeria parisiense. E ali, sob as luzes discretas do comércio de arte, foi comprado pelo colecionador russo Sergei Shchukin.

Ah, Shchukin!  O homem que amava o que ninguém amava. Colecionador de “arte impopular”, guiava-se apenas pelo próprio gosto, impassível aos modismos ou à aprovação pública. Talvez visse, no olhar estrábico do Doutor Rey, alguma coisa que ninguém antes tinha visto — ou talvez apenas acreditasse que, no fim, o tempo corrige os erros do presente.

Pagou 4.600 francos pela tela — valor já considerável — e a levou para a Rússia, onde ela repousou, pela primeira vez com dignidade, na coleção de um homem que a tratava como obra, e não como tábuas de vedação para galinhas.

Mas o século XX tinha planos severos para as coisas privadas. A revolução bolchevique, com sua fome insaciável de coletivizar tudo, confiscou a coleção de Shchukin. O “Retrato do Doutor Rey” foi integrado ao patrimônio do Estado e, por uma dessas ironias históricas, sobreviveu não apenas ao desprezo da família Rey, mas também à expropriação revolucionária. Hoje, está no Museu Pushkin, em Moscou, exposto sob luz controlada, protegido por alarmes e observado, com reverência silenciosa, por visitantes de todo o mundo.

Olho para essa trajetória e penso: talvez não haja quadro mais vivo do que este. Afinal, viveu nas mãos do pintor, na parede improvisada do galinheiro, nas sombras do sótão, na esperança do jovem Camoin, nas vitrines discretas das galerias, no olhar visionário de Shchukin e, por fim, na custódia fria do Estado soviético. Cada estágio deixou ali sua camada invisível, sua história que, apesar de tudo, não apagou a intensidade das cores.

E o mais bonito — ou o mais terrível — é pensar que nada disso seria possível se alguém, num dia qualquer, tivesse jogado fora aquela madeira pintada, como quem joga fora um pedaço inútil do mundo. A arte, afinal, não é apenas aquilo que se cria. É, sobretudo, aquilo que se insiste em não destruir.

 

Vicente Freitas Liot

Nenhum comentário:

Postar um comentário