1. Introdução à Barbúria: Topografia do Absurdo
A
obra “Todos os dias são difíceis na Barbúria” começa com uma cartografia do
absurdo, traçando os contornos de uma nação fictícia mergulhada no desvario
institucional. Márcio Catunda não apenas descreve esse país com tintas de
farsa, mas o insufla com densidade simbólica. A Barbúria não é apenas um lugar:
é uma metáfora alargada para regimes onde o poder se divorcia da razão.
Desde
os primeiros parágrafos, o leitor é introduzido a uma realidade onde o normal é
o grotesco e o cotidiano, uma sequência de vexames. A ambientação constrói um
mundo invertido — ministérios que promovem a ignorância, festas oficiais que
celebram o absurdo, e cidadãos que, atônitos ou entorpecidos, apenas assistem.
A Barbúria não é distante: é um reflexo cômico do mundo real.
Catunda
alicerça esse universo com as ferramentas do surrealismo e da sátira política.
Longe de recorrer ao realismo convencional, o autor prefere explorar os
deslimites do verossímil. A Barbúria funciona como um espaço alegórico onde as
leis naturais e lógicas são subvertidas por uma lógica autoritária que beira a
esquizofrenia institucional.
O
primeiro impacto estético vem da linguagem: o autor constrói frases infladas de
ironia, pontuadas por nomes caricaturais e absurdos. O riso que provoca é
desconfortável, pois nasce da identificação com traços reconhecíveis de regimes
reais. Não se trata de mero escapismo ou literatura nonsense: trata-se de
crítica feroz embalada em ritmo de paródia.
A
geografia política da Barbúria é marcada por instituições desmoralizadas,
governadas por figuras pomposas e medíocres. Há um “Ministério do Ócio”, um
“Instituto da Alienação”, entre outras instituições cuja nomenclatura já
carrega a denúncia do despropósito estatal. Cada órgão da administração pública
é um monumento ao fracasso civilizatório.
O
narrador se apresenta como uma testemunha impotente e lúcida, presa ao teatro
cruel que se desenrola à sua volta. A sua voz é uma mescla de sarcasmo e
melancolia, sugerindo que há, por trás da farsa, um lamento sincero pela
degradação humana e social. A sátira de Catunda é mais cortante por carregar
uma tristeza funda.
A
estética da Barbúria remete ao teatro do absurdo, particularmente a Ionesco e
Beckett. Mas o autor também dialoga com a tradição latino-americana do realismo
mágico, desnudando a irracionalidade dos mecanismos do poder com exuberância e
tropicalidade. A Barbúria é, de certo modo, uma Macondo distorcida e
contaminada.
Um
dos aspectos mais marcantes da primeira parte é a maneira como Catunda esculpe
o tempo: em Barbúria, o tempo não progride — repete-se, empaca, retrocede. Os
dias são iguais, regidos pela mesma ladainha do poder. Isso contribui para a
sensação de claustrofobia e inércia, fazendo do livro também uma crítica ao
imobilismo histórico.
A
nomeação de personagens e instituições remete à tradição rabelaisiana de criar
mundos pelos nomes. O grotesco emerge não apenas das situações, mas do próprio
batismo das coisas. Em Barbúria, a linguagem é pervertida — ela não comunica,
ela dissimula. Tudo que deveria ser nobre é deturpado, reduzido a ornamento ou
escárnio.
A
paisagem da Barbúria, embora rica em detalhes tropicais, é marcada por uma
decadência persistente. Há lixo nas ruas, monumentos caindo aos pedaços,
edifícios oficiais com mármores rachados. A ruína material espelha a degradação
moral. A Barbúria não está em guerra, mas parece viver sob um cerco
existencial.
A
atmosfera inicial da obra evoca um estado de delírio controlado. O riso dos
personagens, quando ocorre, é descrito como mecânico, quase histérico. A
alegria não existe senão como imposição institucional — é obrigatório ser
feliz, ou ao menos parecer. O Estado se infiltra até mesmo nas emoções
privadas, num controle orwelliano de afetos.
Não
há heróis nesta primeira parte, nem mesmo vilões clássicos. Tudo se dilui numa
amálgama de cumplicidade e inércia. O povo de Barbúria parece dopado por
promessas vazias e por espetáculos grotescos. A televisão estatal transmite
desfiles ridículos, discursos intermináveis e programas de humor involuntário.
A
figura do tirano Apolônio é esboçada como um monstro burocrático: não é um
déspota com carisma, mas um medíocre exaltado por um sistema que adora a
obediência. Seu poder não emana de sua inteligência, mas da apatia geral e da
engrenagem da propaganda. A sátira é clara: os regimes mais duradouros não são
necessariamente os mais violentos, mas os mais eficientes em embrutecer.
Catunda
não oferece ao leitor uma porta de saída. A Barbúria não promete redenção nem
sugere mudanças. A crítica do autor se dirige, portanto, não apenas ao poder
opressor, mas também à sociedade que consente — por medo, preguiça ou
conveniência. A barbárie se torna cotidiana, e é essa banalidade que mais
assusta.
Os
aspectos formais do texto — ritmo, cadência, pontuação, escolha vocabular —
contribuem para a sensação de estranhamento e artificialidade. Tudo soa
propositalmente exagerado, como uma ópera cômica que já perdeu o controle de
seu enredo. A realidade é encenada como paródia permanente.
Ao
ambientar sua narrativa num país fictício, Catunda ganha liberdade para
misturar contextos, culturas e tempos. A Barbúria é um arquipélago de absurdos
acumulados de várias ditaduras, democracias disfuncionais e estados falidos.
Não se trata de um ataque específico, mas de uma radiografia moral do poder
degenerado.
A
escolha por não oferecer datas nem localização geográfica definida reforça a
ideia de que a Barbúria pode estar em qualquer lugar — inclusive aqui. O
caráter universalista da sátira permite que o leitor se reconheça, mesmo contra
a vontade, nos traços que compõem esse país de pesadelo cômico.
A
crítica se estende ao papel da cultura. Em Barbúria, os livros são decorativos,
os poetas são funcionais, e os artistas, domesticados. A arte só é tolerada
enquanto inofensiva. Catunda denuncia a cultura de aparência, onde a produção
simbólica é esvaziada e transformada em mero instrumento de validação do status
quo.
O
grotesco, longe de ser apenas um recurso estético, é um mecanismo político. Em
Barbúria, o grotesco serve para desmoralizar a verdade, ridicularizar a lucidez
e sabotar qualquer tentativa de racionalidade. É o riso como ferramenta de
controle, como amortecimento do horror.
A
primeira parte de “Todos os dias são difíceis na Barbúria” encerra-se como um
prefácio da loucura organizada. Márcio Catunda introduz o leitor a um mundo
onde o absurdo não é exceção, mas norma. É um convite ao desconforto e à
reflexão — uma sátira que, ao ridicularizar, também nos adverte sobre o que já
nos parece natural.
2.
A
Política como Paródia Sinistra
Na
segunda parte do romance “Todos os dias são difíceis na Barbúria”, Márcio
Catunda aprofunda a radiografia do poder ao apresentar, em detalhes, o
funcionamento interno da engrenagem política barbúrida. É aqui que a sátira se
revela mais aguda e corrosiva: a política, mais que instrumento de governo, é
encenada como uma paródia grotesca de si mesma.
O
protagonista invisível deste capítulo é Apolônio, o tirano-sombra que comanda a
nação com punho leve em forma, mas com controle absoluto de fato. Seu poder não
se impõe com violência explícita, mas com uma autoridade embebida de absurdo e
teatralidade. A reverência a ele é coreografada, mecânica, sem emoção — mas
obrigatória.
Catunda
constrói Apolônio não como um monstro histórico, mas como um burocrata
glorificado. É a ascensão da mediocridade ao trono. Sua imagem é repetida em
bustos, moedas, camisetas e manuais escolares, não por carisma, mas por
saturação. O culto à personalidade assume contornos de farsa.
A
crítica à centralização do poder é feroz: Apolônio não apenas governa, ele
respira por todos, pensa por todos e decide o que é real. A frase “Apolônio
sabe mais do que todos os vivos e mortos” é repetida como mantra, revelando o
vazio em que se ancora a ideologia dominante: a obediência sem pensamento.
Os
órgãos do governo, como o “Ministério do Ócio” e o “Instituto da Alienação”,
são caricaturas ferozes de instituições estatais corrompidas. Suas funções são
invertidas: o Ministério do Ócio organiza campanhas contra o trabalho e a
produtividade; o Instituto da Alienação promove eventos para reforçar a
ignorância popular.
Esses
órgãos não são apenas absurdos — eles são eficazes na sua inutilidade. É o
triunfo da disfunção programada. A Barbúria, sob Apolônio, transforma o Estado
em espetáculo de inoperância, no qual cada repartição pública é uma trincheira
contra o bom senso.
A
linguagem dos políticos barbúridas é um elemento crucial dessa paródia
sinistra. Seus discursos misturam jargões vazios, chavões ideológicos e
afirmações ilógicas com pompa quase litúrgica. A retórica serve apenas para
ocultar a ausência de sentido. Trata-se de um idioma orwelliano misturado com
pastiches do folclore tropical.
Catunda
ridiculariza as promessas de progresso com ironia fina. O governo anuncia
megaprojetos futuristas — como a construção de uma ponte flutuante até as
nuvens — enquanto escolas caem aos pedaços e hospitais se convertem em centros
de doutrinação. A modernidade é encenada, não realizada.
O
contraste entre aparência e realidade é um dos eixos narrativos da política
barbúrida. Há inaugurações diárias de obras que nunca são concluídas,
estatísticas inventadas ao vivo e visitas oficiais a fábricas inexistentes. A
política se reduz a um teatro de bonecos onde ninguém acredita, mas todos
aplaudem.
O
Parlamento da Barbúria, quando aparece, é descrito como uma arena de aplausos
programados e silêncio ensaiado. Não há debates, apenas discursos idênticos com
ligeiras variações de adulação. Catunda transforma o Legislativo numa ópera
bufa onde os “representantes do povo” são caricaturas de submissão.
Em
meio a essa encenação, surgem personagens-satélites do regime — ministros,
assessores, generais — todos marcados por nomes extravagantes e atitudes
ridículas. São servos ávidos por agradar ao tirano, competindo em bajulação. Um
deles chega a propor um feriado nacional em homenagem ao primeiro espirro de
Apolônio.
A
educação, em Barbúria, é transformada em instrumento de desinformação. Livros
escolares ensinam que Apolônio inventou o alfabeto, descobriu a eletricidade e
derrotou sozinho a fome universal. A paródia aqui não é apenas cômica, mas
profundamente inquietante: ela revela como regimes manipulam a memória
coletiva.
O
culto à autoridade se estende à vida privada: crianças são ensinadas a
denunciar pais que criticam o governo; casais devem incluir o nome de Apolônio
nas juras de casamento; funerais se iniciam com um minuto de aplausos ao chefe
supremo. A política infiltra-se em todos os poros da existência.
A
brutalidade cotidiana é mascarada por uma estética kitsch. Os uniformes dos
guardas são ridiculamente ornamentados, os palácios oficiais são decorados com
exagero cafona, e os hinos da nação são versões modificadas de jingles
publicitários. A violência não se apresenta como dor, mas como espetáculo
colorido.
Há,
na narrativa, uma intuição kafkiana de que escapar é impossível. Quem tenta
protestar é engolido pelo sistema, não com porretes, mas com promessas,
comissões investigativas infinitas e transferências para cargos irrelevantes. A
dissidência é anestesiada, não reprimida — o que a torna ainda mais insidiosa.
O
povo, retratado com uma mistura de resignação e cinismo, parece ciente do
absurdo, mas incapaz de reagir. Há um pacto tácito: todos fingem acreditar para
sobreviver. A normalização do grotesco é talvez o aspecto mais trágico da
Barbúria. Catunda propõe uma crítica da passividade civil.
O
humor da segunda parte é amargo, por vezes desesperado. Catunda faz rir, mas
logo em seguida congela o riso com a consciência de que muito do que ali se
parodia já foi, ou ainda é, realidade. A sátira funciona como um espelho
côncavo, distorcendo para melhor mostrar.
A
estética da repetição é um recurso recorrente. Discursos se repetem com
pequenas variações; decretos mudam só de nome; medidas são recicladas como
“novas diretrizes”. Essa redundância revela a esterilidade do poder, sua
incapacidade de produzir qualquer transformação autêntica.
A
política barbúrida, ao ser narrada como paródia sinistra, não perde em
densidade crítica. Ao contrário: é justamente pelo exagero que Catunda denuncia
o real. A caricatura é aqui instrumento de lucidez — uma ferramenta para
desmascarar as engrenagens do autoritarismo disfarçado de normalidade.
Encerrada essa segunda parte, o leitor não sai ileso. A farsa exposta por Catunda não é apenas risível, mas profundamente perturbadora. “A Política como Paródia Sinistra” revela que o verdadeiro terror pode vir não da opressão crua, mas da obediência ritualizada, da mentira institucionalizada, e do silêncio consentido.
3. A Imprensa, o Discurso e a Manipulação
Na
terceira parte de “Todos os dias são difíceis na Barbúria”, Márcio Catunda
lança sua crítica mais devastadora à máquina simbólica do regime: a imprensa.
Aqui, o foco desloca-se da política como espetáculo para a linguagem como campo
de batalha. A verdade, em Barbúria, é um artifício moldado por interesses.
O
principal instrumento dessa distorção é o jornal “A Corda Bamba”, órgão oficial
— embora nominalmente “independente” — do pensamento estatal. Catunda o
apresenta como um diário de absurdos, onde manchetes contradizem os fatos mais
evidentes, e editoriais celebram o fracasso como sucesso.
O
nome do periódico já é, por si só, uma ironia: sugere instabilidade, incerteza
e risco constante — metáfora perfeita para a comunicação na Barbúria. “A Corda
Bamba” não informa, ela equilibra narrativas no fio tênue entre o grotesco e o
delirante, em nome da permanência do poder.
A
linguagem usada pelos jornalistas é calculadamente ambígua. Palavras comuns são
carregadas de novos sentidos; expressões neutras tornam-se instrumentos de
repressão. A guerra vira “pacificação cirúrgica”, a censura é “curadoria
editorial”, a mentira transforma-se em “narrativa alternativa”.
Catunda
mostra que a manipulação começa na semântica: não é a realidade que molda os
discursos, mas os discursos que moldam uma nova (e falsa) realidade. É a
semiótica sequestrada pela ideologia. O signo não remete mais ao referente, mas
à vontade de domínio.
O
autor ironiza os noticiários com maestria. Há, por exemplo, uma edição especial
do “A Corda Bamba” comemorando o “Dia da Neutralidade Informativa”, com 20
páginas em branco. A ausência de conteúdo é exaltada como prova de
imparcialidade. A sátira aqui atinge seu auge.
Catunda
evidencia que a imprensa, em Barbúria, não tem função de mediadora entre o
poder e o povo. Ela é a voz única do regime, repetida com variações cosméticas.
Os programas televisivos, as rádios, os boletins digitais — tudo reverbera o
mesmo discurso: Apolônio é infalível, o povo é feliz, os problemas são
invenções de inimigos externos.
O
autor propõe uma desconstrução da retórica oficial. Os textos publicados têm
uma estrutura padrão: abertura laudatória, meio tautológico, e conclusão
triunfal. O conteúdo é irrelevante; o formato importa mais do que o sentido. O
estilo jornalístico barbúrida é uma liturgia do vazio.
A
mentira, repetida sistematicamente, deixa de chocar. É essa a grande denúncia
desta parte do livro: o processo de anestesia moral. O povo, bombardeado por
discursos inconsistentes, perde a capacidade de distinguir entre o absurdo e o
aceitável. Tudo vira ruído, e o ruído torna-se norma.
A
manipulação discursiva não visa apenas o convencimento, mas a exaustão. Catunda
sugere que o excesso de informação falsa tem como objetivo esvaziar qualquer
reação crítica. A saturação de dados e interpretações inverossímeis desativa o
pensamento autônomo.
O
autor constrói personagens que simbolizam essa deterioração do discurso. Há o
redator-chefe Barbalho Merengue, figura patética que acredita ser poeta
enquanto escreve editoriais com rimas pobres exaltando o regime. Sua vaidade é
proporcional à sua mediocridade — um retrato feroz do intelectual a serviço do
poder.
Também
há os “analistas oficiais”, especialistas que justificam qualquer desastre como
sinal de progresso. Um terremoto é apresentado como “movimento de regeneração
geológica”, a falta de alimentos como “jejum cívico em prol da espiritualização
popular”. A lógica é constantemente desfigurada.
Catunda
insinua que, ao controlar o discurso, o regime controla o próprio tempo. Os
fatos são retroativamente modificados. Reportagens antigas desaparecem ou são
“atualizadas” conforme as necessidades do presente. A memória histórica é
volátil, moldável, manipulável.
A
ausência de contraponto é crucial para o funcionamento dessa imprensa. Vozes
dissidentes são ridicularizadas, criminalizadas ou simplesmente apagadas. Os
leitores, sem acesso à pluralidade, tornam-se consumidores de uma única
narrativa — e acabam moldados por ela.
A
estética visual dos jornais e programas também contribui para a hipnose
coletiva. Cores vivas, slogans vibrantes, gráficos otimistas. Catunda mostra
que a manipulação vai além das palavras: ela atua nas imagens, nos sons, nos
ritmos da informação — criando uma experiência sensorial do engano.
A
ironia final é que muitos cidadãos sabem que estão sendo enganados, mas não têm
energia ou ferramentas para reagir. A impotência diante da mentira sistemática
é outro efeito devastador da manipulação midiática. A consciência crítica é
substituída pelo sarcasmo conformado.
Em
alguns momentos, a narrativa assume tons quase apocalípticos. Catunda sugere
que a destruição da linguagem é um dos crimes mais profundos de qualquer
tirania: ela não fere apenas o presente, mas compromete o futuro, pois impede a
nomeação da verdade e, por conseguinte, a possibilidade de mudança.
O
autor parece afirmar que o maior triunfo do poder não é o controle pela força,
mas a colonização do pensamento. Quando o cidadão já não confia em nenhuma
palavra — nem mesmo nas suas — a dominação torna-se completa. A imprensa de
Barbúria é, assim, o laboratório da submissão psicológica.
Mesmo
em meio a tanto desencanto, Catunda não abandona o humor ácido. Sua crítica é
cortante justamente por saber rir do absurdo. A paródia que ele constrói não é
mero deboche, mas instrumento de resistência. Rir do grotesco é,
paradoxalmente, uma forma de não aceitá-lo como normal.
Ao final da terceira parte, o leitor é convidado a refletir sobre sua própria relação com a linguagem e os meios de comunicação. “Todos os dias são difíceis na Barbúria” transcende o universo fictício e se converte em alerta: quando as palavras perdem o vínculo com a verdade, todos os dias se tornam, de fato, mais difíceis.
4. Figuras Grotescas: Tipos e Máscaras
Na
quarta parte de Todos os dias são difíceis na Barbúria, Márcio Catunda investe
na criação de um bestiário humano, um teatro grotesco habitado por personagens
que são, ao mesmo tempo, arquétipos do poder e caricaturas do ridículo. Com
maestria, o autor une crítica política e invenção literária, elaborando figuras
tão bizarras quanto reconhecíveis.
Cada
personagem introduzido nesta seção funciona como uma máscara alegórica: eles
não são apenas indivíduos, mas condensações simbólicas de vícios e deformidades
morais. São aberrações perfeitamente adaptadas à lógica perversa de Barbúria,
uma sociedade em que a aparência substitui a essência.
Um
dos expoentes dessa galeria é o Ministro dos Cultos Fúteis, figura cuja
existência institucional já é, por si só, uma sátira demolidora. Sua função:
promover eventos inócuos, encenações de devoção sem conteúdo, festivais de
superficialidade. A ironia de Catunda é afiada — esse personagem torna-se o
sacerdote da vacuidade.
O
Ministro representa uma política cultural que exalta o vazio: o “Dia Nacional
da Repetição”, o “Festival da Ignorância Colorida” e o “Concurso de Silêncios
Ornamentais” são algumas das iniciativas que ilustram a estética do absurdo que
permeia toda a administração barbúrida.
A
Primeira-Dama Dulcineide é outro exemplo de composição notável. Ela encarna o
culto à frivolidade institucionalizada, misto de exaltação estética e
degeneração moral. Apresentada como “modelo de virtudes domésticas e vícios
públicos”, Dulcineide desfila suas vaidades por entre tragédias disfarçadas de
cerimônias.
Dulcineide
promove ações como o “Programa Nacional do Riso Forçado” e o “Instituto da
Elegância Patriótica”, sugerindo que o espetáculo é a única resposta possível
ao desastre. Sua figura satiriza não só o papel decorativo de esposas do poder,
mas também a estetização da miséria.
O
Diretor dos Esportes Canibalescos, por sua vez, é o rosto mais grotesco da
barbárie oficializada. Ele organiza campeonatos de violência pública, como o
“Arremesso de Dissidentes” e a “Corrida dos Culpados”, eventos televisionados e
aplaudidos como provas de vigor nacional. Aqui, Catunda ironiza o
entretenimento como instrumento de embrutecimento.
Essa
personagem remete a um regime que substitui o jogo pelo castigo, e o esporte
pela carnificina ritual. Os “atletas” são prisioneiros, os árbitros são
generais, e os troféus são ossos polidos. A barbárie é convertida em espetáculo
com regras próprias, assimilada pelo público como passatempo patriótico.
Cada
uma dessas figuras grotescas carrega uma dimensão trágica. Catunda não os
apresenta como vilões monolíticos, mas como seres moldados pelo ambiente
doentio em que vivem. Há momentos em que suas máscaras vacilam, e pequenas
fissuras revelam traços de medo, solidão, delírio — ou seja, humanidade.
Ao
mesclar humor e horror, o autor transforma seus personagens em símbolos de um
sistema que devora seus próprios atores. A comédia negra, nesse contexto, não
suaviza a crítica, mas a acentua, pois expõe o patético por trás do
autoritarismo — e o autoritarismo por trás do patético.
Catunda
constrói também personagens secundários que compõem esse universo carnavalesco
do grotesco. O Corregedor das Almas Distrativas, o Anunciador de Verdades
Revogadas, a Conselheira das Cores Oficiais — todos são engrenagens de um
regime onde a função pública é apenas um papel teatral.
Cada
um desses tipos possui uma função dramatúrgica: manter o espetáculo do poder.
Seus títulos são oxímoros, seus atos são rituais de farsa. O autor parece dizer
que, em Barbúria, ninguém governa de fato: todos apenas encenam governo, num
palco onde a encenação é a única realidade.
As
descrições físicas dessas figuras são particularmente ricas. Catunda usa uma
linguagem visual poderosa para compor corpos deformados, roupas extravagantes,
gestos ritualizados. Há um cuidado meticuloso na construção do grotesco, que
remete ao imaginário de Goya ou Fellini.
As
falas dos personagens são escritas com um idioma paródico, feito de jargões
oficiais, frases feitas, neologismos absurdos. Cada voz é única, e todas soam
falsas. É uma babel construída com minúcia estilística, refletindo a perda do
sentido num regime de impostura.
O
grotesco serve, aqui, como revelação da verdade encoberta. A hipérbole dos
personagens denuncia a hipocrisia do sistema. Quanto mais extravagantes são
suas condutas, mais evidenciam a falência moral da ordem que representam.
Em
momentos estratégicos, o autor insinua que essas figuras não são exclusivas de
Barbúria. São espelhos distorcidos de tipos reais, que poderiam muito bem
habitar outras realidades políticas. A crítica ganha, assim, um tom universal,
e o riso se torna desconfortável — pois nos aproxima do familiar.
Há
também um componente alegórico mais amplo: cada personagem parece representar
um pecado capital do regime — vaidade, gula por poder, preguiça de pensar, ira
contra a crítica, inveja dos livres, avareza de ideias, luxúria institucional.
A Barbúria é um inferno burocratizado.
O
grotesco, nesse sentido, é uma linguagem da verdade num tempo de mentiras.
Catunda aposta na deformação como método revelador. Se a realidade é mascarada
pelo discurso oficial, a literatura deve rasgar os véus com a força do exagero,
da caricatura, da comédia sinistra.
Essa
quarta parte do livro reafirma a força do projeto estético de Catunda: a crítica
política feita por meio da invenção literária radical, sem concessões ao
realismo domesticado. O grotesco não é um recurso estético gratuito, mas uma
forma de pensar a patologia do poder.
Ao final, o leitor sai dessa galeria de figuras deformadas com a inquietante sensação de que os monstros não vivem apenas em Barbúria. Eles rondam outros palácios, outras câmaras, outros púlpitos. Catunda nos obriga a perguntar: quais máscaras grotescas habitam os palcos do nosso próprio tempo?
5. Alienação e Cotidiano: Vida sob o Delírio
Na
quinta parte de seu romance, Márcio Catunda mergulha no tecido mais íntimo da
distopia barbúrida: o cotidiano. Longe das altas esferas do poder grotesco, ele
volta seu olhar para as ruas, para os corredores abafados, para os lares
silenciosos, onde a submissão se infiltra como poeira. É nesse plano que o
horror se consolida — não pela exceção, mas pela rotina.
A
força dessa seção está na banalização do delírio. O cotidiano em Barbúria é um
teatro de absurdos institucionalizados, onde a loucura se naturaliza e passa a
ser percebida como normalidade. Catunda mostra que o mais terrível não é o
regime em si, mas o quanto ele se enraizou na vida ordinária.
As
filas intermináveis, que surgem em cada página como obsessão simbólica, não são
apenas para comida ou gasolina — são filas para permissão de pensamento, para
registro de risos permitidos, para apagar lembranças inconvenientes. Essa
imagem recorrente torna-se uma metáfora da espera paralisante a que o cidadão
barbúrida se submete.
Catunda
escreve com sarcasmo e angústia: “Na Barbúria, o tempo passa por decreto.” A
espera é método de controle, a burocracia é forma de castigo. O tédio é
intencional — uma arma do regime contra a imaginação. Ao destacar essa lógica,
o autor ecoa Kafka, mas com sabor tropical, carnavalesco e sombrio.
O
racionamento de ideias é talvez o conceito mais poderoso desta parte. Pensar
livremente é atividade suspeita, sujeita a sanções. Ideias são distribuídas em
pacotes pelo Ministério da Leitura Permitida, em forma de slogans prontos e
conceitos esterilizados. As palavras são vendidas com validade determinada.
As
pessoas aprendem a repetir, não a compreender. Catunda denuncia um sistema que
substitui o pensamento pelo eco, o argumento pela consigna. A alienação não é
mero efeito colateral — é objetivo estratégico. O empobrecimento cognitivo é
cultivado com zelo.
Parte
desse processo se manifesta nos “cultos oficiais à estupidez”. São cerimônias
públicas em que se reverenciam os ignorantes notórios, os campeões de confusão,
os disseminadores de inverdade. A burrice é condecorada, a dúvida é
criminalizada. É um mundo invertido, em que a lucidez é um risco.
As
festividades nacionais, como o “Dia do Esquecimento Heroico” e o “Festival do
Pensamento Descartável”, reforçam a anestesia coletiva. A alienação é
celebrada, não combatida. Cada evento é um rito de apagamento da memória, de
domesticação da sensibilidade.
As
telenovelas oficiais, cuidadosamente roteirizadas pelos ideólogos do regime,
completam o ciclo da alienação. Catunda descreve essas obras com precisão
crítica: seus enredos seguem o modelo da obediência emocional, suas personagens
são arquétipos do conformismo, seus finais são sempre reconciliações forjadas
com a ordem estabelecida.
É
nesse quadro que o povo surge como figura ambígua. Ao mesmo tempo vítima e
cúmplice, a população de Barbúria vive numa zona de conforto opressiva.
Habituado ao autoritarismo, o cidadão barbúrida reproduz suas violências, até
mesmo sem se dar conta. A denúncia de Catunda é dura: a servidão voluntária
sustenta o pesadelo.
O
autor não idealiza o povo como herói latente. Pelo contrário, revela suas
fraquezas, seu medo, sua adesão parcial ao delírio. Essa visão madura e amarga
rompe com a romantização da resistência. Em Barbúria, a passividade é uma
escolha disfarçada de inevitabilidade.
A
televisão é descrita como o “altar doméstico do regime”, o centro da pedagogia
do absurdo. Catunda demonstra como o discurso oficial penetra a intimidade das
casas, como a propaganda se disfarça de entretenimento. O telespectador
torna-se devoto — e a fé é na mentira bem produzida.
Os
meios de alienação descritos por Catunda formam uma teia que vai do macro ao
micro: das políticas públicas ao humor cotidiano, da retórica institucional à
canção chiclete. Não há fresta de lucidez que escape ao cerco. A Barbúria é um
projeto de idiotização total.
Em
meio a esse marasmo delirante, a crítica de Catunda é cortante. Ele nos obriga
a encarar a “normalização” da miséria política como o verdadeiro centro do horror.
Não são os decretos brutais ou os castigos espetaculares que mais assustam, mas
o fato de que ninguém mais se espanta com eles.
Essa
naturalização do autoritarismo se manifesta em gestos banais: o riso nervoso
diante da censura, o silêncio cúmplice na padaria, o elogio protocolar à
mentira. São nesses momentos, aparentemente insignificantes, que o regime se
enraíza. Catunda escreve: “O horror começa quando se sorri para ele”.
O
autor trabalha com um vocabulário que mescla lirismo e indignação. As frases,
muitas vezes curtas e incisivas, têm o efeito de esbofetear a apatia. Há um
senso de urgência na prosa — como se cada parágrafo fosse um chamado à
insurreição da consciência.
No
entanto, não há apelo à esperança ingênua. A alienação em Barbúria é espessa
demais, intrincada demais, para ceder a gestos isolados. Catunda não oferece
saídas fáceis, nem figuras redentoras. A resistência, quando aparece, é tímida,
clandestina, condenada a tropeçar nos escombros do senso comum.
A
poética do delírio cotidiano é, assim, a chave desta parte da obra. Catunda
revela como a barbárie se disfarça de rotina, como a loucura se acomoda nas
prateleiras do supermercado. Em Barbúria, a alienação é tão estruturada quanto
o sistema de transporte — e igualmente ineficaz.
Ao
descrever essa vida sob o delírio, Catunda estende sua crítica além da ficção.
O leitor é convidado a reconhecer em Barbúria aspectos de sua própria
realidade, seus próprios automatismos, suas próprias formas de consentimento. A
literatura, aqui, cumpre seu papel mais radical: revelar o invisível que
sustenta o intolerável.
Com essa quinta parte, Márcio Catunda aprofunda a anatomia do autoritarismo. A alienação do cotidiano barbúrico não é uma pausa na opressão — é sua forma mais eficaz. E ao nos fazer rir do absurdo, para logo depois nos fazer estremecer, Catunda reafirma que, na Barbúria — como talvez fora dela —, todos os dias são difíceis porque são todos dias de mentira.
6. Resistência e Desencanto: Vozes
Dissidentes
Na
sexta parte de sua obra, Márcio Catunda faz emergir, entre os escombros da
distopia, as vozes que não se dobram por completo. São fracas, quase
sussurradas, mas persistem. O autor esboça o que poderia ser a chama da
insurgência — mas não sem antes mergulhá-la no breu da desesperança.
As
figuras que resistem em Barbúria não são heróis convencionais. São poetas
marginalizados, filósofos destituídos de cátedra, pintores de paredes que
rabiscam com carvão versos contra o regime. São, na verdade, fragmentos de
consciência — vozes que sobrevivem mais por teimosia do que por expectativa.
O
poeta clandestino é símbolo recorrente. Em suas palavras proibidas, ecoa uma
tradição de resistência intelectual contra o despotismo. Ele escreve não para
mudar o mundo, mas para não ser devorado por ele. Cada poema é um ato de exílio
interior.
Há,
também, os filósofos demitidos — pensadores que perderam seus cargos por
questionarem a lógica absurda do Estado. Catunda os apresenta com ironia
trágica: alguns transformaram-se em vendedores ambulantes de verdades
indesejadas, outros em bêbados que recitam Hegel no mercado negro da linguagem.
Já
os artistas refugiados nos porões são as sombras líricas da resistência. Seus
espetáculos acontecem em porões abafados, onde o público é reduzido e o risco é
alto. No palco, a arte é denúncia — mas também consolo. Ainda que perseguidos,
continuam a encenar o humano.
Márcio
Catunda retrata essas figuras com grande sensibilidade. Elas são dignas, mas
jamais idealizadas. Seus limites são expostos: a poesia não impede a censura, a
filosofia não muda os decretos, o teatro não freia o tanque. A resistência é
celebrada — mas com lucidez.
Um
dos aspectos mais contundentes dessa seção é o desencanto. Catunda não cria
mártires ou profetas. Seus dissidentes sabem que são escutados por poucos, que
suas mensagens são muitas vezes distorcidas ou ridicularizadas. O Estado
barbúrico tem o talento de transformar até a revolta em espetáculo controlado.
A
figura do cinismo coletivo pesa como obstáculo à rebeldia. O autor descreve um
povo que, mesmo admirando em segredo os rebeldes, não se atreve a segui-los. A
apatia virou autoproteção. A esperança virou suspeita. E o silêncio, muitas
vezes, soa mais alto do que o grito.
Catunda
sugere, com amargura, que até a esperança está sob vigilância. Há órgãos do
governo especializados em detectar “comportamentos esperançosos”. Sorrisos
espontâneos são reportados. Sonhos lúcidos são denunciados por vizinhos. A fé
no futuro se tornou contravenção.
Essa
crítica à repressão da subjetividade é uma das mais finas desta parte. A
ditadura em Barbúria não se contenta em silenciar opiniões — ela quer regular
emoções. Desejos são vigiados, afetos são punidos, até mesmo a imaginação é
suspeita.
Em
muitos momentos, Catunda aproxima-se da estética do absurdo para acentuar esse
controle íntimo. Um personagem é preso por “ter olhado para o alto durante
cinco segundos sem justificativa escrita”. Outro é interrogado por ter
“lembrado de uma canção anterior ao Decreto 449-C”.
Essas
passagens misturam humor negro e desespero. A resistência, nesses termos, não é
apenas política — é ontológica. Resistir em Barbúria é preservar uma faísca de
sentido num mundo que transformou o ridículo em norma e o delírio em estrutura.
Ainda
assim, Catunda se recusa a apagar completamente essa faísca. Embora consciente
da impotência da dissidência, ele não a ridiculariza. Pelo contrário: é
justamente por sua fragilidade que ela adquire valor ético e literário. É
resistência sem recompensa, sem utopia, sem plateia.
Em
um dos trechos mais tocantes, um poeta anônimo enterra seus versos num terreno
baldio, na esperança de que um dia floresçam. Catunda transforma essa imagem em
símbolo: na Barbúria, o poema que não foi lido é o último gesto de liberdade.
O
desencanto, aqui, é uma forma de não ceder à ilusão. A obra assume que a
resistência é frequentemente cooptada, neutralizada ou esquecida. Mas insiste
que a simples persistência em existir fora da lógica do regime já é um ato de
negação da barbárie.
Catunda
constrói assim uma estética do fragmento, da ruptura. A resistência aparece em
ruídos, em manchas, em cartas rasgadas. Ela não forma um movimento, não propõe
uma revolução. É um sopro, um murmúrio. Mas é esse murmúrio que sustenta a
ideia de que outro mundo ainda é pensável.
Literariamente,
essa parte marca uma transição de tom. Se antes a sátira e a caricatura
dominavam, aqui o registro é mais lírico, mais íntimo. As frases são mais
lentas, carregadas de silêncio. Catunda parece escrever com o cuidado de quem
sabe que a vigilância também se estende à linguagem.
O
autor também demonstra maturidade crítica ao evitar o maniqueísmo. A Barbúria
não é um cenário de bem contra o mal, mas de lucidez contra o torpor. A
resistência é mostrada não como heroísmo, mas como fidelidade a uma
consciência.
Essa
fidelidade, contudo, não é recompensada. Catunda escreve: “Na Barbúria, o
rebelde não morre em batalha — morre esperando”. Essa constatação seca resume o
pathos da dissidência barbúrida: ela é bela, mas não vence. É digna, mas não
triunfa.
Assim, “resistência e desencanto” revela a espessura trágica da obra de Márcio Catunda. Entre a ruína e o gesto, entre o controle e a lembrança, emerge uma voz que recusa a totalidade do pesadelo. Mesmo sob o riso forçado da Barbúria, há quem ainda cante — ainda que só para si.
7. Estilo e Linguagem: A Farsa como Estética
Em
“Todos os dias são difíceis na Barbúria”, Márcio Catunda faz da linguagem não
apenas um meio, mas um campo de combate estético. Na sétima parte da obra, o
autor consagra a forma como instrumento de crítica. A escrita, aqui, é ao mesmo
tempo martelo e espelho: desfigura a realidade para revelá-la.
Catunda
escolhe conscientemente um registro híbrido, onde convivem o barroquismo
rebuscado e o deboche da tradição popular nordestina. O resultado é uma prosa
rica em camadas, que trafega entre o erudito e o coloquial sem perder o
equilíbrio.
Essa
tensão estilística serve à proposta da obra: satirizar o absurdo político,
moral e cultural da Barbúria. Catunda reinventa a língua como um palco de
resistência à linguagem burocrática e aos clichês da propaganda estatal.
Os
neologismos são frequentes e funcionam como chaves de interpretação do delírio
barbúrico. Palavras como “imbecilocracia”, “festivalejo” ou “doutrinofagia” são
ataques verbais ao autoritarismo disfarçado de espetáculo. São também signos de
uma criatividade que sobrevive à opressão.
O
uso deliberado da paródia é central na composição do estilo. Catunda subverte
os discursos oficiais, os jargões administrativos e os manifestos ideológicos,
imitando-lhes a forma para desnudar-lhes o conteúdo. É a forma travestida de
solenidade que revela o grotesco.
O
cordel e o repente aparecem como heranças culturais que sustentam essa sátira
mordaz. Há uma musicalidade na frase de Catunda que lembra a oralidade do
sertão — mas transposta ao cenário de uma distopia surreal. O riso que emerge
é, ao mesmo tempo, de cumplicidade e desconcerto.
Em
diversos momentos, a linguagem se torna hiperbólica, acumulando adjetivos, trocadilhos,
redundâncias calculadas. Essa inflação verbal imita o modo como os regimes
autoritários recorrem à linguagem inflada para ocultar a verdade.
A
estética da farsa, portanto, não é mero enfeite: é a estrutura crítica do
livro. Ao ridicularizar o discurso dominante com um estilo literário
deliberadamente teatral, Catunda constrói uma alegoria viva da disfunção do
poder.
Os
personagens da Barbúria falam como caricaturas — mas essa caricatura não os
empobrece. Ao contrário, os transforma em arquétipos grotescos que reforçam a
crítica. O ministro da propaganda, o general do sorriso permanente, o poeta
domesticado: todos têm nomes e falas que os reduzem à própria paródia.
Um
exemplo marcante é a descrição da “Repartição Geral dos Delírios”, onde a burocracia
se organiza para fiscalizar sonhos, sorrisos e hesitações gramaticais. O jargão
técnico da repartição é um pastiche do burocratês, onde Catunda evidencia a
esterilidade da linguagem estatal.
A
própria pontuação da obra colabora com esse ritmo farsesco. Os parágrafos
longos e entalhados em vírgulas, os parênteses cheios de sarcasmo e as
exclamações deslocadas criam um ambiente de instabilidade verbal. Nada é dito
com simplicidade — tudo é encenado.
Em
vários trechos, Catunda homenageia (e ao mesmo tempo desconstrói) a tradição
literária brasileira. Há ecos de Gregório de Matos na ferocidade da crítica, de
Oswald de Andrade na antropofagia verbal, e de Ariano Suassuna no modo como o
trágico e o cômico se misturam.
O
tropicalismo surge como referência estilística e ideológica. Assim como os
tropicalistas devoravam elementos da cultura de massa e da alta cultura para
gerar um produto crítico e híbrido, Catunda usa os resíduos da linguagem
oficial e da cultura popular para fabricar seu discurso subversivo.
Há,
inclusive, um aspecto carnavalesco na linguagem da Barbúria. A inversão de
papéis, a lógica do exagero, a zombaria das autoridades, tudo remete a um
universo de festa que se transforma em pesadelo. É um carnaval sem quarta-feira
de cinzas.
O
riso provocado por Catunda é desconfortável. Não é catarse, mas denúncia. A
linguagem engraçada é o disfarce de um conteúdo profundamente trágico. Cada
piada contém uma dor e cada trocadilho, uma acusação.
A
musicalidade corrosiva do texto é construída com aliteração, paronomásia,
repetições irônicas. São jogos linguísticos que tensionam o limite entre o
nonsense e o realismo fantástico. A realidade barbúrida é tão absurda que só
pode ser representada como farsa.
O
narrador assume muitas vezes um tom cínico, zombeteiro, próximo ao bufão que
conhece os bastidores do poder. Esse narrador não acredita em redenções fáceis.
Ele ri — mas o riso é ferido, quase desesperado. É um riso que se impõe ao
silêncio da submissão.
O
domínio estilístico de Catunda é notável. Ele evita o risco da monotonia ou da
caricatura vazia porque sua linguagem está sempre em mutação, sempre em
desequilíbrio criativo. É uma escrita instável — e é justamente essa
instabilidade que traduz a natureza mutante da Barbúria.
O
estilo de Catunda é a própria forma da crítica. Ele não apenas denuncia a
Barbúria — ele escreve como se estivesse dentro dela, contaminado por ela,
zombando dela com suas próprias armas. A linguagem vira performance do caos.
Márcio Catunda não narra apenas a Barbúria — ele a encena. Sua literatura é resistência linguística, é paródia que se recusa a morrer, é um ato de riso contra a máquina. E é justamente esse riso — amargo, barroco, nordestino e desobediente — que nos salva da barbárie.
8. O Delírio como Realismo: Influências e
Ecos
A
oitava parte de “Todos os dias são difíceis na Barbúria” revela um dos pilares
centrais da poética de Márcio Catunda: a articulação entre delírio e realismo.
Ao invés de opô-los, o autor funde essas categorias numa linguagem que
transforma o cotidiano nacional em matéria onírica, disforme e alegórica.
Catunda
ergue sua Barbúria como uma paródia radical do Brasil. Mas não se trata apenas
de sátira: é um espelho invertido, onde os traços nacionais aparecem deformados
até o grotesco — e, no entanto, reconhecíveis. A distopia é apenas a lupa do
real.
Nesse
sentido, a obra se insere numa linhagem literária que privilegia o absurdo como
estratégia crítica. As referências não são apenas alusivas — são estruturais.
Plínio Marcos, com sua crueza de favela e palco; Lima Barreto, com seu
pessimismo iluminista e denúncia do manicômio social; e Ignácio de Loyola
Brandão, com suas visões futuristas de regimes opressivos, são todos ecos vivos
nesta construção.
A
Barbúria partilha com “Não Verás País Nenhum”, de Brandão, o horror cotidiano
do delírio oficializado. Ambas as obras imaginam um país à beira do colapso,
onde a distorção da realidade virou política de Estado.
Do
teatro do absurdo, sobretudo de Eugène Ionesco, Catunda herda o impasse
linguístico, os diálogos circulares, o colapso do sentido. Em Barbúria, as
palavras não comunicam: abafam, ocultam, confundem. As personagens falam, mas o
silêncio ressoa mais fundo.
O
delírio barbúrico está impregnado de tropicalismo, mas também de um realismo
mágico às avessas. Ao contrário dos autores latino-americanos clássicos, como
García Márquez ou Juan Rulfo, que inserem o mágico no tecido do real, Catunda
insere o absurdo no já insólito panorama do cotidiano político brasileiro.
O
fantástico aqui não escapa da miséria: ao contrário, a reforça. Em Barbúria, um
general voa, um juiz se comunica com os mortos, e as estátuas do poder choram
sangue — mas tudo isso ocorre com a naturalidade de uma fila no INSS. O delírio
é normativo.
Essa
naturalização do absurdo confere à obra uma qualidade alucinatória, como se a
leitura fosse uma travessia entre o sonho e o noticiário. O que parece surreal
é apenas o retrato intensificado do real.
A
intertextualidade com a tradição brasileira de denúncia — a crônica do
desespero, o riso diante da tragédia — estabelece a obra de Catunda como
continuidade crítica. Se Lima Barreto revelou o alienado urbano, Catunda mostra
o alienador sistêmico, disfarçado de palhaço.
O
narrador da obra oscila entre a ironia e o espanto, entre o riso amargo e a
fúria contida. Esse tom ambíguo remete ao narrador de “O Homem que Sabia
Javanês”, de Lima Barreto. A distorção do tempo e do espaço em Barbúria é outro
aspecto que remete ao realismo mágico. Não há cronologia exata, não há mapas
confiáveis. Tudo é labiríntico, rizomático, como em “Pedro Páramo” ou “Macunaíma”.
A Barbúria é um país, mas também um estado mental.
A
espacialidade distópica, onde o real é excessivo e sufocante, gera um universo
fechado em si. Não há saída — e talvez não haja sequer vontade de escapar. A
crítica está na clausura: a Barbúria se alimenta de sua própria decadência.
Como
Ionesco e Beckett, Catunda constrói personagens que vivem à deriva. Muitos
deles falam sozinhos, repetem palavras vazias, acreditam em milagres
burocráticos. A alienação é performada — e, nesse teatro, todos são cúmplices e
vítimas.
Há
também ecos do cinema brasileiro de resistência: de Glauber Rocha e de Joaquim
Pedro de Andrade, Catunda herda a mistura do épico com o grotesco, do sagrado
com o carnal. A Barbúria é um sertão pós-industrial onde profetas sem fé
anunciam catástrofes rotineiras.
O
humor, sempre presente, não é decorativo. É arma. Rir na Barbúria é resistir —
mas também é sucumbir. Catunda trabalha com essa ambiguidade, fazendo do riso
uma ferramenta que denuncia, mas também anestesia.
O
uso constante de imagens fantásticas (estátuas que falam, repartições que
flutuam, leis escritas em sangue) funciona como denúncia poética da lógica
invertida que rege o país fictício — e, por extensão, o país real. O delírio é
a lente que revela a normalidade monstruosa.
A
Barbúria não é um futuro imaginado: é o presente saturado de seu próprio absurdo.
Catunda faz da literatura um sismógrafo da degradação, e o delírio é o modo
mais fiel de descrever o que já não se explica pela lógica.
A
crítica literária que não compreende esse pacto entre delírio e realismo tende
a banalizar a obra. Barbúria não é uma fábula escapista — é uma crônica aguda
da paralisia nacional, travestida de fantasia. É nesse sentido que o autor
realiza uma “crônica do irreal plausível”.
Com isso, Márcio Catunda inscreve “Todos os dias são difíceis na Barbúria” no rol das obras que usam o literário como lente de aumento da realidade. Seu delírio não é fuga: é exposição. É uma revelação trágico-cômica daquilo que o Brasil não ousa dizer — mas que sua literatura insiste em mostrar.
9. Uma Alegoria de Nós Mesmos
“Todos
os dias são difíceis na Barbúria” não é apenas um livro sobre um país fictício.
É um espelho cômico e trágico do Brasil e de qualquer nação mergulhada no
delírio autoritário. Ao misturar farsa e crítica social, Catunda desenha uma
sátira que, apesar do riso, convida ao desassossego. A Barbúria é onde todos
moramos — ou corremos o risco de morar — quando a lucidez cede lugar ao absurdo
institucionalizado.
A
nona parte da obra “Todos os dias são difíceis na Barbúria” mergulha no colapso
moral da sociedade fictícia — e, por extensão, da realidade que ela alegoriza.
Márcio Catunda propõe um diagnóstico cortante: não há mais critérios éticos em
Barbúria, apenas a memória fossilizada de uma moral que um dia existiu.
A
Barbúria é construída como um espaço onde as noções de certo e errado foram
deslocadas, reprogramadas, ou simplesmente substituídas por um código
oportunista de sobrevivência e cinismo. O resultado é uma sociedade que opera
sob a lógica do vale-tudo.
Catunda
não condena seus personagens: ele os observa. A ruína ética não é uma escolha individual,
mas um sintoma estrutural. Nessa terra em ruínas, qualquer tentativa de retidão
é recebida com suspeita ou sarcasmo.
Os
poucos que ainda tentam manter alguma integridade — o funcionário público que
não aceita propina, a professora que insiste em ensinar literatura — são
mostrados como figuras patéticas, fadadas ao fracasso, ou como heróis trágicos
que ninguém mais compreende.
Há
um silêncio cruel sobre os valores. Eles não são combatidos, mas ignorados,
substituídos por um pragmatismo atávico, onde a esperteza vence e a honestidade
empata. Barbúria não premia a virtude — pune a ingenuidade.
A
ironia da narrativa é implacável. Quando um personagem faz um discurso sobre
ética, logo é desmascarado, ridicularizado ou promovido ao cargo de inquisidor.
A moral virou performance — e, como toda encenação, está sujeita ao escárnio.
A
justiça em Barbúria é uma instituição decrépita, habitada por caricaturas de
juízes e advogados que falam em latim para esconder seu vazio. O tribunal mais
importante da capital julga um pombo por desacato à bandeira — e ninguém
estranha.
Essa
inversão grotesca dos valores é central à crítica de Márcio Catunda. O autor
não está interessado em moralizar: sua arte é de revelação, não de sermão. Ele
mostra a falência da ética como um fenômeno histórico, cultural e político.
A
moral em ruínas se reflete na linguagem. O vocabulário das personagens está
contaminado por eufemismos, siglas burocráticas e chavões vazios. “Corrupção”
vira “ajuste informal”; “mentira”, “narrativa alternativa”. A língua desmorona
junto com os princípios.
Catunda
opera aqui com uma técnica que lembra Kafka: a lógica da absurdidade
institucionalizada. Em Barbúria, não há vilões arquetípicos, mas engrenagens
que giram sem propósito. A desmoralização é sistêmica, desprovida de rosto.
Ao
tematizar esse colapso ético, o autor estabelece uma espécie de arqueologia do
niilismo tropical. A Barbúria não é apenas amoral: ela é pós-moral. Os crimes
não se escondem mais; ostentam-se com orgulho.
O
único “valor” em voga é o sucesso — seja ele político, econômico ou midiático.
Os cidadãos da Barbúria vivem de aparências e resultados. O meio pouco importa,
desde que o fim produza uma manchete ou um cargo comissionado.
A
religião, que poderia oferecer um contraponto, aparece em estado de simulação.
Os pastores são empresários, os padres têm ações em mineradoras, e até as
entidades sincréticas vendem indulgências. A fé virou capital simbólico.
A
educação, por sua vez, é uma paródia perversa. As escolas ensinam técnicas de
disfarce, manipulação de algoritmos e gestão da mentira. Catunda constrói um
sistema de ensino distorcido onde a virtude é um conteúdo extinto.
Tudo
isso produz uma espécie de náusea moral, um desconforto profundo no leitor. A
Barbúria funciona — mas é uma máquina de desumanização. O sucesso do sistema é
a falência do espírito.
A
crítica social da obra encontra, aqui, seu ponto mais doloroso. Ao descrever a
terra devastada dos valores, Catunda sugere que o Brasil real talvez já viva
sob essa lógica. A Barbúria não é uma previsão, mas um diagnóstico.
Ao
mesmo tempo, há uma melancolia profunda na forma como essa decadência é
retratada. Não se trata de desprezo, mas de luto. A ruína ética é um túmulo
onde ainda ecoam vozes do que poderia ter sido.
Essa
melancolia ética é o que diferencia a obra de um simples panfleto. Catunda não
grita; ele lamenta. Seu texto carrega uma espécie de tristeza filosófica que
evoca a decadência romana, a queda de Bizâncio, ou a Paris sitiada de
Baudelaire.
No
fim, o leitor se vê entre dois extremos: ou ri do descalabro, ou chora pela
perda. E talvez seja justamente nessa ambiguidade que reside a força da obra:
ao confrontar-nos com o entulho da moral, ela nos obriga a buscar um sentido —
mesmo que ele não esteja mais à vista.
“Todos
os dias são difíceis na Barbúria” é, nesta sua nona parte, uma crônica da
decomposição ética — mas também uma elegia. Entre o sarcasmo e a tragédia,
Márcio Catunda revela a alma ferida de um país que já não sabe mais o que é
certo.
10. O Inferno Cotidiano de uma Nação
Distorcida
“Todos
os dias são difíceis na Barbúria”, de Márcio Catunda, é uma sátira distópica
travestida de crônica nacional — ou uma crônica nacional transfigurada em
distopia. A obra se insere no mais denso e corrosivo território da literatura
crítica contemporânea brasileira, com o mesmo ímpeto das grandes denúncias
ficcionais do século XX, mas temperada por uma verve tropical e um lirismo
sombrio.
Catunda
constrói um universo alegórico e grotesco, no qual a realidade nacional é
ampliada, distorcida e devolvida ao leitor como caricatura. A Barbúria,
território imaginário onde todos os dias são difíceis, é a metáfora viva de um
país moralmente desfigurado, dominado por farsantes, fanáticos e farsas
políticas de toda sorte. Ao mesmo tempo, é também um não-lugar — um espaço
arquetípico onde o delírio cotidiano é elevado à condição de norma. A obra,
portanto, opera com o riso ácido da sátira, mas jamais se afasta do horror da
realidade.
Do
ponto de vista estrutural, o romance alterna o retrato social e o delírio
estético com fluidez, entrelaçando a linguagem do cordel nordestino, a
densidade filosófica da prosa barroca e a desilusão crônica herdada do realismo
mágico. A musicalidade das frases, o uso ousado de neologismos e o deboche
literário revelam um autor que domina com segurança o artifício e a crítica,
sem cair no panfleto.
Mas
se a linguagem é lúdica, o conteúdo é brutal. A Barbúria não tem heróis —
apenas sobreviventes. A obra é povoada por personagens grotescos, desfigurados
moralmente, marionetes de um sistema que transforma a corrupção em virtude, a
burrice em ideologia, e o cinismo em método.
A
resistência, quando aparece, é frágil, clandestina e muitas vezes
ridicularizada. Os poetas, os artistas, os professores e os sonhadores são
figuras marginais — vozes dissidentes em um deserto de ruídos. Até mesmo a
esperança, na Barbúria, é vigiada, patrulhada, tratada como ameaça. Catunda,
nesse ponto, oferece uma crítica contundente ao controle das narrativas, à
manipulação da linguagem e à espetacularização da ignorância.
“Todos os dias são difíceis na Barbúria” não é um romance de redenção, mas de constatação. Sua estética é a da farsa, mas seu conteúdo é trágico. É uma literatura que não se pretende confortadora, mas transformadora — ainda que pela via do incômodo, do riso amargo, do espanto. E por isso mesmo, é uma obra necessária. Porque se a Barbúria é o espelho da barbárie, olhar para ela é o primeiro passo para entender como chegamos aqui — e por que talvez continuemos presos nesse ciclo grotesco, onde todos os dias, de fato, são difíceis.
11. Epílogo da Insensatez: o Escombro da Utopia
A
conclusão da obra de Márcio Catunda não oferece redenção, tampouco um desfecho
apaziguador. Em vez de clímax, há um desmonte. O autor fecha “Todos os dias são
difíceis na Barbúria” como quem abandona um palco em ruínas, deixando as
cortinas queimadas e o público em silêncio. O epílogo é um anti-epílogo — o
ponto onde tudo já se perdeu.
Não
há resolução, porque Barbúria é a representação de um ciclo viciado: a distopia
é cotidiana, ordinária, recorrente. O livro termina como começou — com o
cotidiano devastado, a linguagem em frangalhos, e os personagens mergulhados em
suas pequenas farsas.
Catunda
não oferece consolo. E isso é, em si, um gesto político e poético. Recusar a
esperança fácil, o final feliz de conveniência, é insistir numa literatura que
não adormece consciências. A Barbúria não melhora, não acorda. Ela continua.
O
autor, porém, não abandona a poesia. Pelo contrário: no meio do cinismo e da
sarjeta, há imagens líricas de um lirismo desgastado, melancólico, mas ainda
vibrante. São restos de uma utopia soterrada sob a lama da história, como
flores nascendo no esgoto.
A
utopia, em Catunda, não é uma proposta política concreta — é uma lembrança
tênue, uma lembrança que sangra. A Barbúria é o mundo depois da utopia, quando
os sonhos viraram slogans e os ideais, memes de ocasião.
O
epílogo apresenta uma cena simbólica: um bardo anônimo toca rabeca diante de um
muro grafitado com insultos à liberdade. Ninguém o ouve. Ninguém o vê. Ainda
assim, ele toca. É nesse gesto gratuito, quase tolo, que resiste uma centelha
de dignidade.
Catunda
parece sugerir que, se há salvação, ela não está no sistema — mas no gesto
desinteressado, na arte feita sem plateia, na ética que sobrevive sem
recompensa. A resistência, aqui, é residual. Mas existe.
A
voz narrativa se dissolve, aos poucos, como se fosse tragada pelo mesmo vórtice
de Barbúria. Já não há narrador onisciente, apenas fragmentos, retalhos de
consciência, ruídos de uma civilização em colapso. A forma acompanha o colapso
do conteúdo.
A
construção literária, nesse ponto, alcança uma maturidade plena. Catunda domina
a desestruturação como recurso estético: ele desconstrói com método, desmonta
com precisão. A Barbúria implode sob um controle literário severo e sutil.
É
nesse momento que a obra se aproxima do grande ciclo trágico da literatura
ocidental. Há ecos de “1984”, de Orwell, e de “Ensaio sobre a lucidez”, de
Saramago. Mas há também a herança do teatro popular, da crônica mordaz à
brasileira.
O
humor, que antes servia como alívio e crítica, aqui se ausenta. No fim, até o
riso morre. O leitor é confrontado com o silêncio da desesperança — um gesto
audaz num tempo em que tudo precisa ser resolvido, explicado, vendido como
produto.
A
Barbúria, ao fim, se revela um arquétipo expandido do Brasil real. Mas é também
um retrato universal: qualquer nação que normalize a estupidez e ridicularize a
ética corre o risco de se transformar na Barbúria. Ou já se transformou.
A
literatura de Catunda tem, nesse sentido, uma função de testemunho. É um
registro crítico da degradação cultural, social e política de um povo. Não se
trata de um panfleto, mas de um espelho — e poucos leitores saem ilesos desse
reflexo.
Há
um mérito maior nessa obra: ela não perde, em nenhum momento, sua consciência
estética. Mesmo em meio à denúncia, à crítica ácida, à desesperança, Catunda
cuida da linguagem com rigor e ironia. O estilo é, até o fim, a sua
resistência.
A
Barbúria permanece como símbolo — um mito contemporâneo, um Brasil
hiperbolizado, um pesadelo alegórico de onde ninguém acorda. Talvez por isso o
livro incomode: ele não termina. Ele se repete todos os dias.
É
nesse ponto que o título da obra se revela profético: “Todos os dias são
difíceis na Barbúria” não é uma frase ocasional, mas um destino. É o mantra
sombrio de uma nação que se afoga em sua própria caricatura.
A
densidade filosófica do livro, aliada à sua riqueza linguística e à coragem do
olhar, coloca Márcio Catunda entre os nomes fundamentais da literatura crítica
contemporânea. Não por causa da denúncia, mas pela construção de um universo
literário completo, autoalimentado, coerente em seu delírio.
Poucas
obras brasileiras recentes têm a ousadia de ser tão radicais. Márcio Catunda
não suaviza. Ele escreve contra o tempo, contra a alienação, contra o
adestramento cultural. Sua Barbúria é uma advertência.
No
fim, o livro se fecha como um labirinto sem saída — ou como um espelho que o
leitor é forçado a encarar. Não há catarse. Há constatação. A Barbúria
continua. E o leitor sai da leitura com a incômoda sensação de que talvez nunca
tenha saído dela.
“Todos
os dias são difíceis na Barbúria” é, por tudo isso, uma obra indispensável.
Crua, poética, revoltante e necessária. Um documento literário sobre o
esfacelamento do sensível em tempos de estupidez generalizada. Um brado mudo,
um grito abafado — mas ainda assim, um grito.
Vicente
Freitas Liot
CATUNDA,
Márcio. 𝗧𝗼𝗱𝗼𝘀 𝗼𝘀 𝗱𝗶𝗮𝘀 𝘀ã𝗼 𝗱𝗶𝗳í𝗰𝗲𝗶𝘀 𝗻𝗮 𝗕𝗮𝗿𝗯ú𝗿𝗶𝗮.
Fortaleza: RDS Editora, 2018.
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