terça-feira, maio 06, 2025

TODOS OS DIAS SÃO DIFÍCEIS NA BARBÚRIA

           



  1.     
Introdução à Barbúria: Topografia do Absurdo

 

A obra “Todos os dias são difíceis na Barbúria” começa com uma cartografia do absurdo, traçando os contornos de uma nação fictícia mergulhada no desvario institucional. Márcio Catunda não apenas descreve esse país com tintas de farsa, mas o insufla com densidade simbólica. A Barbúria não é apenas um lugar: é uma metáfora alargada para regimes onde o poder se divorcia da razão.

Desde os primeiros parágrafos, o leitor é introduzido a uma realidade onde o normal é o grotesco e o cotidiano, uma sequência de vexames. A ambientação constrói um mundo invertido — ministérios que promovem a ignorância, festas oficiais que celebram o absurdo, e cidadãos que, atônitos ou entorpecidos, apenas assistem. A Barbúria não é distante: é um reflexo cômico do mundo real.

Catunda alicerça esse universo com as ferramentas do surrealismo e da sátira política. Longe de recorrer ao realismo convencional, o autor prefere explorar os deslimites do verossímil. A Barbúria funciona como um espaço alegórico onde as leis naturais e lógicas são subvertidas por uma lógica autoritária que beira a esquizofrenia institucional.

O primeiro impacto estético vem da linguagem: o autor constrói frases infladas de ironia, pontuadas por nomes caricaturais e absurdos. O riso que provoca é desconfortável, pois nasce da identificação com traços reconhecíveis de regimes reais. Não se trata de mero escapismo ou literatura nonsense: trata-se de crítica feroz embalada em ritmo de paródia.

A geografia política da Barbúria é marcada por instituições desmoralizadas, governadas por figuras pomposas e medíocres. Há um “Ministério do Ócio”, um “Instituto da Alienação”, entre outras instituições cuja nomenclatura já carrega a denúncia do despropósito estatal. Cada órgão da administração pública é um monumento ao fracasso civilizatório.

O narrador se apresenta como uma testemunha impotente e lúcida, presa ao teatro cruel que se desenrola à sua volta. A sua voz é uma mescla de sarcasmo e melancolia, sugerindo que há, por trás da farsa, um lamento sincero pela degradação humana e social. A sátira de Catunda é mais cortante por carregar uma tristeza funda.

A estética da Barbúria remete ao teatro do absurdo, particularmente a Ionesco e Beckett. Mas o autor também dialoga com a tradição latino-americana do realismo mágico, desnudando a irracionalidade dos mecanismos do poder com exuberância e tropicalidade. A Barbúria é, de certo modo, uma Macondo distorcida e contaminada.

Um dos aspectos mais marcantes da primeira parte é a maneira como Catunda esculpe o tempo: em Barbúria, o tempo não progride — repete-se, empaca, retrocede. Os dias são iguais, regidos pela mesma ladainha do poder. Isso contribui para a sensação de claustrofobia e inércia, fazendo do livro também uma crítica ao imobilismo histórico.

A nomeação de personagens e instituições remete à tradição rabelaisiana de criar mundos pelos nomes. O grotesco emerge não apenas das situações, mas do próprio batismo das coisas. Em Barbúria, a linguagem é pervertida — ela não comunica, ela dissimula. Tudo que deveria ser nobre é deturpado, reduzido a ornamento ou escárnio.

A paisagem da Barbúria, embora rica em detalhes tropicais, é marcada por uma decadência persistente. Há lixo nas ruas, monumentos caindo aos pedaços, edifícios oficiais com mármores rachados. A ruína material espelha a degradação moral. A Barbúria não está em guerra, mas parece viver sob um cerco existencial.

A atmosfera inicial da obra evoca um estado de delírio controlado. O riso dos personagens, quando ocorre, é descrito como mecânico, quase histérico. A alegria não existe senão como imposição institucional — é obrigatório ser feliz, ou ao menos parecer. O Estado se infiltra até mesmo nas emoções privadas, num controle orwelliano de afetos.

Não há heróis nesta primeira parte, nem mesmo vilões clássicos. Tudo se dilui numa amálgama de cumplicidade e inércia. O povo de Barbúria parece dopado por promessas vazias e por espetáculos grotescos. A televisão estatal transmite desfiles ridículos, discursos intermináveis e programas de humor involuntário.

A figura do tirano Apolônio é esboçada como um monstro burocrático: não é um déspota com carisma, mas um medíocre exaltado por um sistema que adora a obediência. Seu poder não emana de sua inteligência, mas da apatia geral e da engrenagem da propaganda. A sátira é clara: os regimes mais duradouros não são necessariamente os mais violentos, mas os mais eficientes em embrutecer.

Catunda não oferece ao leitor uma porta de saída. A Barbúria não promete redenção nem sugere mudanças. A crítica do autor se dirige, portanto, não apenas ao poder opressor, mas também à sociedade que consente — por medo, preguiça ou conveniência. A barbárie se torna cotidiana, e é essa banalidade que mais assusta.

Os aspectos formais do texto — ritmo, cadência, pontuação, escolha vocabular — contribuem para a sensação de estranhamento e artificialidade. Tudo soa propositalmente exagerado, como uma ópera cômica que já perdeu o controle de seu enredo. A realidade é encenada como paródia permanente.

Ao ambientar sua narrativa num país fictício, Catunda ganha liberdade para misturar contextos, culturas e tempos. A Barbúria é um arquipélago de absurdos acumulados de várias ditaduras, democracias disfuncionais e estados falidos. Não se trata de um ataque específico, mas de uma radiografia moral do poder degenerado.

A escolha por não oferecer datas nem localização geográfica definida reforça a ideia de que a Barbúria pode estar em qualquer lugar — inclusive aqui. O caráter universalista da sátira permite que o leitor se reconheça, mesmo contra a vontade, nos traços que compõem esse país de pesadelo cômico.

A crítica se estende ao papel da cultura. Em Barbúria, os livros são decorativos, os poetas são funcionais, e os artistas, domesticados. A arte só é tolerada enquanto inofensiva. Catunda denuncia a cultura de aparência, onde a produção simbólica é esvaziada e transformada em mero instrumento de validação do status quo.

O grotesco, longe de ser apenas um recurso estético, é um mecanismo político. Em Barbúria, o grotesco serve para desmoralizar a verdade, ridicularizar a lucidez e sabotar qualquer tentativa de racionalidade. É o riso como ferramenta de controle, como amortecimento do horror.

A primeira parte de “Todos os dias são difíceis na Barbúria” encerra-se como um prefácio da loucura organizada. Márcio Catunda introduz o leitor a um mundo onde o absurdo não é exceção, mas norma. É um convite ao desconforto e à reflexão — uma sátira que, ao ridicularizar, também nos adverte sobre o que já nos parece natural.

 

2.      A Política como Paródia Sinistra 

 

Na segunda parte do romance “Todos os dias são difíceis na Barbúria”, Márcio Catunda aprofunda a radiografia do poder ao apresentar, em detalhes, o funcionamento interno da engrenagem política barbúrida. É aqui que a sátira se revela mais aguda e corrosiva: a política, mais que instrumento de governo, é encenada como uma paródia grotesca de si mesma.

O protagonista invisível deste capítulo é Apolônio, o tirano-sombra que comanda a nação com punho leve em forma, mas com controle absoluto de fato. Seu poder não se impõe com violência explícita, mas com uma autoridade embebida de absurdo e teatralidade. A reverência a ele é coreografada, mecânica, sem emoção — mas obrigatória.

Catunda constrói Apolônio não como um monstro histórico, mas como um burocrata glorificado. É a ascensão da mediocridade ao trono. Sua imagem é repetida em bustos, moedas, camisetas e manuais escolares, não por carisma, mas por saturação. O culto à personalidade assume contornos de farsa.

A crítica à centralização do poder é feroz: Apolônio não apenas governa, ele respira por todos, pensa por todos e decide o que é real. A frase “Apolônio sabe mais do que todos os vivos e mortos” é repetida como mantra, revelando o vazio em que se ancora a ideologia dominante: a obediência sem pensamento.

Os órgãos do governo, como o “Ministério do Ócio” e o “Instituto da Alienação”, são caricaturas ferozes de instituições estatais corrompidas. Suas funções são invertidas: o Ministério do Ócio organiza campanhas contra o trabalho e a produtividade; o Instituto da Alienação promove eventos para reforçar a ignorância popular.

Esses órgãos não são apenas absurdos — eles são eficazes na sua inutilidade. É o triunfo da disfunção programada. A Barbúria, sob Apolônio, transforma o Estado em espetáculo de inoperância, no qual cada repartição pública é uma trincheira contra o bom senso.

A linguagem dos políticos barbúridas é um elemento crucial dessa paródia sinistra. Seus discursos misturam jargões vazios, chavões ideológicos e afirmações ilógicas com pompa quase litúrgica. A retórica serve apenas para ocultar a ausência de sentido. Trata-se de um idioma orwelliano misturado com pastiches do folclore tropical.

Catunda ridiculariza as promessas de progresso com ironia fina. O governo anuncia megaprojetos futuristas — como a construção de uma ponte flutuante até as nuvens — enquanto escolas caem aos pedaços e hospitais se convertem em centros de doutrinação. A modernidade é encenada, não realizada.

O contraste entre aparência e realidade é um dos eixos narrativos da política barbúrida. Há inaugurações diárias de obras que nunca são concluídas, estatísticas inventadas ao vivo e visitas oficiais a fábricas inexistentes. A política se reduz a um teatro de bonecos onde ninguém acredita, mas todos aplaudem.

O Parlamento da Barbúria, quando aparece, é descrito como uma arena de aplausos programados e silêncio ensaiado. Não há debates, apenas discursos idênticos com ligeiras variações de adulação. Catunda transforma o Legislativo numa ópera bufa onde os “representantes do povo” são caricaturas de submissão.

Em meio a essa encenação, surgem personagens-satélites do regime — ministros, assessores, generais — todos marcados por nomes extravagantes e atitudes ridículas. São servos ávidos por agradar ao tirano, competindo em bajulação. Um deles chega a propor um feriado nacional em homenagem ao primeiro espirro de Apolônio.

A educação, em Barbúria, é transformada em instrumento de desinformação. Livros escolares ensinam que Apolônio inventou o alfabeto, descobriu a eletricidade e derrotou sozinho a fome universal. A paródia aqui não é apenas cômica, mas profundamente inquietante: ela revela como regimes manipulam a memória coletiva.

O culto à autoridade se estende à vida privada: crianças são ensinadas a denunciar pais que criticam o governo; casais devem incluir o nome de Apolônio nas juras de casamento; funerais se iniciam com um minuto de aplausos ao chefe supremo. A política infiltra-se em todos os poros da existência.

A brutalidade cotidiana é mascarada por uma estética kitsch. Os uniformes dos guardas são ridiculamente ornamentados, os palácios oficiais são decorados com exagero cafona, e os hinos da nação são versões modificadas de jingles publicitários. A violência não se apresenta como dor, mas como espetáculo colorido.

Há, na narrativa, uma intuição kafkiana de que escapar é impossível. Quem tenta protestar é engolido pelo sistema, não com porretes, mas com promessas, comissões investigativas infinitas e transferências para cargos irrelevantes. A dissidência é anestesiada, não reprimida — o que a torna ainda mais insidiosa.

O povo, retratado com uma mistura de resignação e cinismo, parece ciente do absurdo, mas incapaz de reagir. Há um pacto tácito: todos fingem acreditar para sobreviver. A normalização do grotesco é talvez o aspecto mais trágico da Barbúria. Catunda propõe uma crítica da passividade civil.

O humor da segunda parte é amargo, por vezes desesperado. Catunda faz rir, mas logo em seguida congela o riso com a consciência de que muito do que ali se parodia já foi, ou ainda é, realidade. A sátira funciona como um espelho côncavo, distorcendo para melhor mostrar.

A estética da repetição é um recurso recorrente. Discursos se repetem com pequenas variações; decretos mudam só de nome; medidas são recicladas como “novas diretrizes”. Essa redundância revela a esterilidade do poder, sua incapacidade de produzir qualquer transformação autêntica.

A política barbúrida, ao ser narrada como paródia sinistra, não perde em densidade crítica. Ao contrário: é justamente pelo exagero que Catunda denuncia o real. A caricatura é aqui instrumento de lucidez — uma ferramenta para desmascarar as engrenagens do autoritarismo disfarçado de normalidade.

Encerrada essa segunda parte, o leitor não sai ileso. A farsa exposta por Catunda não é apenas risível, mas profundamente perturbadora. “A Política como Paródia Sinistra” revela que o verdadeiro terror pode vir não da opressão crua, mas da obediência ritualizada, da mentira institucionalizada, e do silêncio consentido.


3. A Imprensa, o Discurso e a Manipulação

 

Na terceira parte de “Todos os dias são difíceis na Barbúria”, Márcio Catunda lança sua crítica mais devastadora à máquina simbólica do regime: a imprensa. Aqui, o foco desloca-se da política como espetáculo para a linguagem como campo de batalha. A verdade, em Barbúria, é um artifício moldado por interesses.

O principal instrumento dessa distorção é o jornal “A Corda Bamba”, órgão oficial — embora nominalmente “independente” — do pensamento estatal. Catunda o apresenta como um diário de absurdos, onde manchetes contradizem os fatos mais evidentes, e editoriais celebram o fracasso como sucesso.

O nome do periódico já é, por si só, uma ironia: sugere instabilidade, incerteza e risco constante — metáfora perfeita para a comunicação na Barbúria. “A Corda Bamba” não informa, ela equilibra narrativas no fio tênue entre o grotesco e o delirante, em nome da permanência do poder.

A linguagem usada pelos jornalistas é calculadamente ambígua. Palavras comuns são carregadas de novos sentidos; expressões neutras tornam-se instrumentos de repressão. A guerra vira “pacificação cirúrgica”, a censura é “curadoria editorial”, a mentira transforma-se em “narrativa alternativa”.

Catunda mostra que a manipulação começa na semântica: não é a realidade que molda os discursos, mas os discursos que moldam uma nova (e falsa) realidade. É a semiótica sequestrada pela ideologia. O signo não remete mais ao referente, mas à vontade de domínio.

O autor ironiza os noticiários com maestria. Há, por exemplo, uma edição especial do “A Corda Bamba” comemorando o “Dia da Neutralidade Informativa”, com 20 páginas em branco. A ausência de conteúdo é exaltada como prova de imparcialidade. A sátira aqui atinge seu auge.

Catunda evidencia que a imprensa, em Barbúria, não tem função de mediadora entre o poder e o povo. Ela é a voz única do regime, repetida com variações cosméticas. Os programas televisivos, as rádios, os boletins digitais — tudo reverbera o mesmo discurso: Apolônio é infalível, o povo é feliz, os problemas são invenções de inimigos externos.

O autor propõe uma desconstrução da retórica oficial. Os textos publicados têm uma estrutura padrão: abertura laudatória, meio tautológico, e conclusão triunfal. O conteúdo é irrelevante; o formato importa mais do que o sentido. O estilo jornalístico barbúrida é uma liturgia do vazio.

A mentira, repetida sistematicamente, deixa de chocar. É essa a grande denúncia desta parte do livro: o processo de anestesia moral. O povo, bombardeado por discursos inconsistentes, perde a capacidade de distinguir entre o absurdo e o aceitável. Tudo vira ruído, e o ruído torna-se norma.

A manipulação discursiva não visa apenas o convencimento, mas a exaustão. Catunda sugere que o excesso de informação falsa tem como objetivo esvaziar qualquer reação crítica. A saturação de dados e interpretações inverossímeis desativa o pensamento autônomo.

O autor constrói personagens que simbolizam essa deterioração do discurso. Há o redator-chefe Barbalho Merengue, figura patética que acredita ser poeta enquanto escreve editoriais com rimas pobres exaltando o regime. Sua vaidade é proporcional à sua mediocridade — um retrato feroz do intelectual a serviço do poder.

Também há os “analistas oficiais”, especialistas que justificam qualquer desastre como sinal de progresso. Um terremoto é apresentado como “movimento de regeneração geológica”, a falta de alimentos como “jejum cívico em prol da espiritualização popular”. A lógica é constantemente desfigurada.

Catunda insinua que, ao controlar o discurso, o regime controla o próprio tempo. Os fatos são retroativamente modificados. Reportagens antigas desaparecem ou são “atualizadas” conforme as necessidades do presente. A memória histórica é volátil, moldável, manipulável.

A ausência de contraponto é crucial para o funcionamento dessa imprensa. Vozes dissidentes são ridicularizadas, criminalizadas ou simplesmente apagadas. Os leitores, sem acesso à pluralidade, tornam-se consumidores de uma única narrativa — e acabam moldados por ela.

A estética visual dos jornais e programas também contribui para a hipnose coletiva. Cores vivas, slogans vibrantes, gráficos otimistas. Catunda mostra que a manipulação vai além das palavras: ela atua nas imagens, nos sons, nos ritmos da informação — criando uma experiência sensorial do engano.

A ironia final é que muitos cidadãos sabem que estão sendo enganados, mas não têm energia ou ferramentas para reagir. A impotência diante da mentira sistemática é outro efeito devastador da manipulação midiática. A consciência crítica é substituída pelo sarcasmo conformado.

Em alguns momentos, a narrativa assume tons quase apocalípticos. Catunda sugere que a destruição da linguagem é um dos crimes mais profundos de qualquer tirania: ela não fere apenas o presente, mas compromete o futuro, pois impede a nomeação da verdade e, por conseguinte, a possibilidade de mudança.

O autor parece afirmar que o maior triunfo do poder não é o controle pela força, mas a colonização do pensamento. Quando o cidadão já não confia em nenhuma palavra — nem mesmo nas suas — a dominação torna-se completa. A imprensa de Barbúria é, assim, o laboratório da submissão psicológica.

Mesmo em meio a tanto desencanto, Catunda não abandona o humor ácido. Sua crítica é cortante justamente por saber rir do absurdo. A paródia que ele constrói não é mero deboche, mas instrumento de resistência. Rir do grotesco é, paradoxalmente, uma forma de não aceitá-lo como normal.

Ao final da terceira parte, o leitor é convidado a refletir sobre sua própria relação com a linguagem e os meios de comunicação. “Todos os dias são difíceis na Barbúria” transcende o universo fictício e se converte em alerta: quando as palavras perdem o vínculo com a verdade, todos os dias se tornam, de fato, mais difíceis.


4. Figuras Grotescas: Tipos e Máscaras

 

Na quarta parte de Todos os dias são difíceis na Barbúria, Márcio Catunda investe na criação de um bestiário humano, um teatro grotesco habitado por personagens que são, ao mesmo tempo, arquétipos do poder e caricaturas do ridículo. Com maestria, o autor une crítica política e invenção literária, elaborando figuras tão bizarras quanto reconhecíveis.

Cada personagem introduzido nesta seção funciona como uma máscara alegórica: eles não são apenas indivíduos, mas condensações simbólicas de vícios e deformidades morais. São aberrações perfeitamente adaptadas à lógica perversa de Barbúria, uma sociedade em que a aparência substitui a essência.

Um dos expoentes dessa galeria é o Ministro dos Cultos Fúteis, figura cuja existência institucional já é, por si só, uma sátira demolidora. Sua função: promover eventos inócuos, encenações de devoção sem conteúdo, festivais de superficialidade. A ironia de Catunda é afiada — esse personagem torna-se o sacerdote da vacuidade.

O Ministro representa uma política cultural que exalta o vazio: o “Dia Nacional da Repetição”, o “Festival da Ignorância Colorida” e o “Concurso de Silêncios Ornamentais” são algumas das iniciativas que ilustram a estética do absurdo que permeia toda a administração barbúrida.

A Primeira-Dama Dulcineide é outro exemplo de composição notável. Ela encarna o culto à frivolidade institucionalizada, misto de exaltação estética e degeneração moral. Apresentada como “modelo de virtudes domésticas e vícios públicos”, Dulcineide desfila suas vaidades por entre tragédias disfarçadas de cerimônias.

Dulcineide promove ações como o “Programa Nacional do Riso Forçado” e o “Instituto da Elegância Patriótica”, sugerindo que o espetáculo é a única resposta possível ao desastre. Sua figura satiriza não só o papel decorativo de esposas do poder, mas também a estetização da miséria.

O Diretor dos Esportes Canibalescos, por sua vez, é o rosto mais grotesco da barbárie oficializada. Ele organiza campeonatos de violência pública, como o “Arremesso de Dissidentes” e a “Corrida dos Culpados”, eventos televisionados e aplaudidos como provas de vigor nacional. Aqui, Catunda ironiza o entretenimento como instrumento de embrutecimento.

Essa personagem remete a um regime que substitui o jogo pelo castigo, e o esporte pela carnificina ritual. Os “atletas” são prisioneiros, os árbitros são generais, e os troféus são ossos polidos. A barbárie é convertida em espetáculo com regras próprias, assimilada pelo público como passatempo patriótico.

Cada uma dessas figuras grotescas carrega uma dimensão trágica. Catunda não os apresenta como vilões monolíticos, mas como seres moldados pelo ambiente doentio em que vivem. Há momentos em que suas máscaras vacilam, e pequenas fissuras revelam traços de medo, solidão, delírio — ou seja, humanidade.

Ao mesclar humor e horror, o autor transforma seus personagens em símbolos de um sistema que devora seus próprios atores. A comédia negra, nesse contexto, não suaviza a crítica, mas a acentua, pois expõe o patético por trás do autoritarismo — e o autoritarismo por trás do patético.

Catunda constrói também personagens secundários que compõem esse universo carnavalesco do grotesco. O Corregedor das Almas Distrativas, o Anunciador de Verdades Revogadas, a Conselheira das Cores Oficiais — todos são engrenagens de um regime onde a função pública é apenas um papel teatral.

Cada um desses tipos possui uma função dramatúrgica: manter o espetáculo do poder. Seus títulos são oxímoros, seus atos são rituais de farsa. O autor parece dizer que, em Barbúria, ninguém governa de fato: todos apenas encenam governo, num palco onde a encenação é a única realidade.

As descrições físicas dessas figuras são particularmente ricas. Catunda usa uma linguagem visual poderosa para compor corpos deformados, roupas extravagantes, gestos ritualizados. Há um cuidado meticuloso na construção do grotesco, que remete ao imaginário de Goya ou Fellini.

As falas dos personagens são escritas com um idioma paródico, feito de jargões oficiais, frases feitas, neologismos absurdos. Cada voz é única, e todas soam falsas. É uma babel construída com minúcia estilística, refletindo a perda do sentido num regime de impostura.

O grotesco serve, aqui, como revelação da verdade encoberta. A hipérbole dos personagens denuncia a hipocrisia do sistema. Quanto mais extravagantes são suas condutas, mais evidenciam a falência moral da ordem que representam.

Em momentos estratégicos, o autor insinua que essas figuras não são exclusivas de Barbúria. São espelhos distorcidos de tipos reais, que poderiam muito bem habitar outras realidades políticas. A crítica ganha, assim, um tom universal, e o riso se torna desconfortável — pois nos aproxima do familiar.

Há também um componente alegórico mais amplo: cada personagem parece representar um pecado capital do regime — vaidade, gula por poder, preguiça de pensar, ira contra a crítica, inveja dos livres, avareza de ideias, luxúria institucional. A Barbúria é um inferno burocratizado.

O grotesco, nesse sentido, é uma linguagem da verdade num tempo de mentiras. Catunda aposta na deformação como método revelador. Se a realidade é mascarada pelo discurso oficial, a literatura deve rasgar os véus com a força do exagero, da caricatura, da comédia sinistra.

Essa quarta parte do livro reafirma a força do projeto estético de Catunda: a crítica política feita por meio da invenção literária radical, sem concessões ao realismo domesticado. O grotesco não é um recurso estético gratuito, mas uma forma de pensar a patologia do poder.

Ao final, o leitor sai dessa galeria de figuras deformadas com a inquietante sensação de que os monstros não vivem apenas em Barbúria. Eles rondam outros palácios, outras câmaras, outros púlpitos. Catunda nos obriga a perguntar: quais máscaras grotescas habitam os palcos do nosso próprio tempo?


5. Alienação e Cotidiano: Vida sob o Delírio

 

Na quinta parte de seu romance, Márcio Catunda mergulha no tecido mais íntimo da distopia barbúrida: o cotidiano. Longe das altas esferas do poder grotesco, ele volta seu olhar para as ruas, para os corredores abafados, para os lares silenciosos, onde a submissão se infiltra como poeira. É nesse plano que o horror se consolida — não pela exceção, mas pela rotina.

A força dessa seção está na banalização do delírio. O cotidiano em Barbúria é um teatro de absurdos institucionalizados, onde a loucura se naturaliza e passa a ser percebida como normalidade. Catunda mostra que o mais terrível não é o regime em si, mas o quanto ele se enraizou na vida ordinária.

As filas intermináveis, que surgem em cada página como obsessão simbólica, não são apenas para comida ou gasolina — são filas para permissão de pensamento, para registro de risos permitidos, para apagar lembranças inconvenientes. Essa imagem recorrente torna-se uma metáfora da espera paralisante a que o cidadão barbúrida se submete.

Catunda escreve com sarcasmo e angústia: “Na Barbúria, o tempo passa por decreto.” A espera é método de controle, a burocracia é forma de castigo. O tédio é intencional — uma arma do regime contra a imaginação. Ao destacar essa lógica, o autor ecoa Kafka, mas com sabor tropical, carnavalesco e sombrio.

O racionamento de ideias é talvez o conceito mais poderoso desta parte. Pensar livremente é atividade suspeita, sujeita a sanções. Ideias são distribuídas em pacotes pelo Ministério da Leitura Permitida, em forma de slogans prontos e conceitos esterilizados. As palavras são vendidas com validade determinada.

As pessoas aprendem a repetir, não a compreender. Catunda denuncia um sistema que substitui o pensamento pelo eco, o argumento pela consigna. A alienação não é mero efeito colateral — é objetivo estratégico. O empobrecimento cognitivo é cultivado com zelo.

Parte desse processo se manifesta nos “cultos oficiais à estupidez”. São cerimônias públicas em que se reverenciam os ignorantes notórios, os campeões de confusão, os disseminadores de inverdade. A burrice é condecorada, a dúvida é criminalizada. É um mundo invertido, em que a lucidez é um risco.

As festividades nacionais, como o “Dia do Esquecimento Heroico” e o “Festival do Pensamento Descartável”, reforçam a anestesia coletiva. A alienação é celebrada, não combatida. Cada evento é um rito de apagamento da memória, de domesticação da sensibilidade.

As telenovelas oficiais, cuidadosamente roteirizadas pelos ideólogos do regime, completam o ciclo da alienação. Catunda descreve essas obras com precisão crítica: seus enredos seguem o modelo da obediência emocional, suas personagens são arquétipos do conformismo, seus finais são sempre reconciliações forjadas com a ordem estabelecida.

É nesse quadro que o povo surge como figura ambígua. Ao mesmo tempo vítima e cúmplice, a população de Barbúria vive numa zona de conforto opressiva. Habituado ao autoritarismo, o cidadão barbúrida reproduz suas violências, até mesmo sem se dar conta. A denúncia de Catunda é dura: a servidão voluntária sustenta o pesadelo.

O autor não idealiza o povo como herói latente. Pelo contrário, revela suas fraquezas, seu medo, sua adesão parcial ao delírio. Essa visão madura e amarga rompe com a romantização da resistência. Em Barbúria, a passividade é uma escolha disfarçada de inevitabilidade.

A televisão é descrita como o “altar doméstico do regime”, o centro da pedagogia do absurdo. Catunda demonstra como o discurso oficial penetra a intimidade das casas, como a propaganda se disfarça de entretenimento. O telespectador torna-se devoto — e a fé é na mentira bem produzida.

Os meios de alienação descritos por Catunda formam uma teia que vai do macro ao micro: das políticas públicas ao humor cotidiano, da retórica institucional à canção chiclete. Não há fresta de lucidez que escape ao cerco. A Barbúria é um projeto de idiotização total.

Em meio a esse marasmo delirante, a crítica de Catunda é cortante. Ele nos obriga a encarar a “normalização” da miséria política como o verdadeiro centro do horror. Não são os decretos brutais ou os castigos espetaculares que mais assustam, mas o fato de que ninguém mais se espanta com eles.

Essa naturalização do autoritarismo se manifesta em gestos banais: o riso nervoso diante da censura, o silêncio cúmplice na padaria, o elogio protocolar à mentira. São nesses momentos, aparentemente insignificantes, que o regime se enraíza. Catunda escreve: “O horror começa quando se sorri para ele”.

O autor trabalha com um vocabulário que mescla lirismo e indignação. As frases, muitas vezes curtas e incisivas, têm o efeito de esbofetear a apatia. Há um senso de urgência na prosa — como se cada parágrafo fosse um chamado à insurreição da consciência.

No entanto, não há apelo à esperança ingênua. A alienação em Barbúria é espessa demais, intrincada demais, para ceder a gestos isolados. Catunda não oferece saídas fáceis, nem figuras redentoras. A resistência, quando aparece, é tímida, clandestina, condenada a tropeçar nos escombros do senso comum.

A poética do delírio cotidiano é, assim, a chave desta parte da obra. Catunda revela como a barbárie se disfarça de rotina, como a loucura se acomoda nas prateleiras do supermercado. Em Barbúria, a alienação é tão estruturada quanto o sistema de transporte — e igualmente ineficaz.

Ao descrever essa vida sob o delírio, Catunda estende sua crítica além da ficção. O leitor é convidado a reconhecer em Barbúria aspectos de sua própria realidade, seus próprios automatismos, suas próprias formas de consentimento. A literatura, aqui, cumpre seu papel mais radical: revelar o invisível que sustenta o intolerável.

Com essa quinta parte, Márcio Catunda aprofunda a anatomia do autoritarismo. A alienação do cotidiano barbúrico não é uma pausa na opressão — é sua forma mais eficaz. E ao nos fazer rir do absurdo, para logo depois nos fazer estremecer, Catunda reafirma que, na Barbúria — como talvez fora dela —, todos os dias são difíceis porque são todos dias de mentira.


6. Resistência e Desencanto: Vozes Dissidentes

 

Na sexta parte de sua obra, Márcio Catunda faz emergir, entre os escombros da distopia, as vozes que não se dobram por completo. São fracas, quase sussurradas, mas persistem. O autor esboça o que poderia ser a chama da insurgência — mas não sem antes mergulhá-la no breu da desesperança.

As figuras que resistem em Barbúria não são heróis convencionais. São poetas marginalizados, filósofos destituídos de cátedra, pintores de paredes que rabiscam com carvão versos contra o regime. São, na verdade, fragmentos de consciência — vozes que sobrevivem mais por teimosia do que por expectativa.

O poeta clandestino é símbolo recorrente. Em suas palavras proibidas, ecoa uma tradição de resistência intelectual contra o despotismo. Ele escreve não para mudar o mundo, mas para não ser devorado por ele. Cada poema é um ato de exílio interior.

Há, também, os filósofos demitidos — pensadores que perderam seus cargos por questionarem a lógica absurda do Estado. Catunda os apresenta com ironia trágica: alguns transformaram-se em vendedores ambulantes de verdades indesejadas, outros em bêbados que recitam Hegel no mercado negro da linguagem.

Já os artistas refugiados nos porões são as sombras líricas da resistência. Seus espetáculos acontecem em porões abafados, onde o público é reduzido e o risco é alto. No palco, a arte é denúncia — mas também consolo. Ainda que perseguidos, continuam a encenar o humano.

Márcio Catunda retrata essas figuras com grande sensibilidade. Elas são dignas, mas jamais idealizadas. Seus limites são expostos: a poesia não impede a censura, a filosofia não muda os decretos, o teatro não freia o tanque. A resistência é celebrada — mas com lucidez.

Um dos aspectos mais contundentes dessa seção é o desencanto. Catunda não cria mártires ou profetas. Seus dissidentes sabem que são escutados por poucos, que suas mensagens são muitas vezes distorcidas ou ridicularizadas. O Estado barbúrico tem o talento de transformar até a revolta em espetáculo controlado.

A figura do cinismo coletivo pesa como obstáculo à rebeldia. O autor descreve um povo que, mesmo admirando em segredo os rebeldes, não se atreve a segui-los. A apatia virou autoproteção. A esperança virou suspeita. E o silêncio, muitas vezes, soa mais alto do que o grito.

Catunda sugere, com amargura, que até a esperança está sob vigilância. Há órgãos do governo especializados em detectar “comportamentos esperançosos”. Sorrisos espontâneos são reportados. Sonhos lúcidos são denunciados por vizinhos. A fé no futuro se tornou contravenção.

Essa crítica à repressão da subjetividade é uma das mais finas desta parte. A ditadura em Barbúria não se contenta em silenciar opiniões — ela quer regular emoções. Desejos são vigiados, afetos são punidos, até mesmo a imaginação é suspeita.

Em muitos momentos, Catunda aproxima-se da estética do absurdo para acentuar esse controle íntimo. Um personagem é preso por “ter olhado para o alto durante cinco segundos sem justificativa escrita”. Outro é interrogado por ter “lembrado de uma canção anterior ao Decreto 449-C”.

Essas passagens misturam humor negro e desespero. A resistência, nesses termos, não é apenas política — é ontológica. Resistir em Barbúria é preservar uma faísca de sentido num mundo que transformou o ridículo em norma e o delírio em estrutura.

Ainda assim, Catunda se recusa a apagar completamente essa faísca. Embora consciente da impotência da dissidência, ele não a ridiculariza. Pelo contrário: é justamente por sua fragilidade que ela adquire valor ético e literário. É resistência sem recompensa, sem utopia, sem plateia.

Em um dos trechos mais tocantes, um poeta anônimo enterra seus versos num terreno baldio, na esperança de que um dia floresçam. Catunda transforma essa imagem em símbolo: na Barbúria, o poema que não foi lido é o último gesto de liberdade.

O desencanto, aqui, é uma forma de não ceder à ilusão. A obra assume que a resistência é frequentemente cooptada, neutralizada ou esquecida. Mas insiste que a simples persistência em existir fora da lógica do regime já é um ato de negação da barbárie.

Catunda constrói assim uma estética do fragmento, da ruptura. A resistência aparece em ruídos, em manchas, em cartas rasgadas. Ela não forma um movimento, não propõe uma revolução. É um sopro, um murmúrio. Mas é esse murmúrio que sustenta a ideia de que outro mundo ainda é pensável.

Literariamente, essa parte marca uma transição de tom. Se antes a sátira e a caricatura dominavam, aqui o registro é mais lírico, mais íntimo. As frases são mais lentas, carregadas de silêncio. Catunda parece escrever com o cuidado de quem sabe que a vigilância também se estende à linguagem.

O autor também demonstra maturidade crítica ao evitar o maniqueísmo. A Barbúria não é um cenário de bem contra o mal, mas de lucidez contra o torpor. A resistência é mostrada não como heroísmo, mas como fidelidade a uma consciência.

Essa fidelidade, contudo, não é recompensada. Catunda escreve: “Na Barbúria, o rebelde não morre em batalha — morre esperando”. Essa constatação seca resume o pathos da dissidência barbúrida: ela é bela, mas não vence. É digna, mas não triunfa.

Assim, “resistência e desencanto” revela a espessura trágica da obra de Márcio Catunda. Entre a ruína e o gesto, entre o controle e a lembrança, emerge uma voz que recusa a totalidade do pesadelo. Mesmo sob o riso forçado da Barbúria, há quem ainda cante — ainda que só para si.


7. Estilo e Linguagem: A Farsa como Estética

 

Em “Todos os dias são difíceis na Barbúria”, Márcio Catunda faz da linguagem não apenas um meio, mas um campo de combate estético. Na sétima parte da obra, o autor consagra a forma como instrumento de crítica. A escrita, aqui, é ao mesmo tempo martelo e espelho: desfigura a realidade para revelá-la.

Catunda escolhe conscientemente um registro híbrido, onde convivem o barroquismo rebuscado e o deboche da tradição popular nordestina. O resultado é uma prosa rica em camadas, que trafega entre o erudito e o coloquial sem perder o equilíbrio.

Essa tensão estilística serve à proposta da obra: satirizar o absurdo político, moral e cultural da Barbúria. Catunda reinventa a língua como um palco de resistência à linguagem burocrática e aos clichês da propaganda estatal.

Os neologismos são frequentes e funcionam como chaves de interpretação do delírio barbúrico. Palavras como “imbecilocracia”, “festivalejo” ou “doutrinofagia” são ataques verbais ao autoritarismo disfarçado de espetáculo. São também signos de uma criatividade que sobrevive à opressão.

O uso deliberado da paródia é central na composição do estilo. Catunda subverte os discursos oficiais, os jargões administrativos e os manifestos ideológicos, imitando-lhes a forma para desnudar-lhes o conteúdo. É a forma travestida de solenidade que revela o grotesco.

O cordel e o repente aparecem como heranças culturais que sustentam essa sátira mordaz. Há uma musicalidade na frase de Catunda que lembra a oralidade do sertão — mas transposta ao cenário de uma distopia surreal. O riso que emerge é, ao mesmo tempo, de cumplicidade e desconcerto.

Em diversos momentos, a linguagem se torna hiperbólica, acumulando adjetivos, trocadilhos, redundâncias calculadas. Essa inflação verbal imita o modo como os regimes autoritários recorrem à linguagem inflada para ocultar a verdade.

A estética da farsa, portanto, não é mero enfeite: é a estrutura crítica do livro. Ao ridicularizar o discurso dominante com um estilo literário deliberadamente teatral, Catunda constrói uma alegoria viva da disfunção do poder.

Os personagens da Barbúria falam como caricaturas — mas essa caricatura não os empobrece. Ao contrário, os transforma em arquétipos grotescos que reforçam a crítica. O ministro da propaganda, o general do sorriso permanente, o poeta domesticado: todos têm nomes e falas que os reduzem à própria paródia.

Um exemplo marcante é a descrição da “Repartição Geral dos Delírios”, onde a burocracia se organiza para fiscalizar sonhos, sorrisos e hesitações gramaticais. O jargão técnico da repartição é um pastiche do burocratês, onde Catunda evidencia a esterilidade da linguagem estatal.

A própria pontuação da obra colabora com esse ritmo farsesco. Os parágrafos longos e entalhados em vírgulas, os parênteses cheios de sarcasmo e as exclamações deslocadas criam um ambiente de instabilidade verbal. Nada é dito com simplicidade — tudo é encenado.

Em vários trechos, Catunda homenageia (e ao mesmo tempo desconstrói) a tradição literária brasileira. Há ecos de Gregório de Matos na ferocidade da crítica, de Oswald de Andrade na antropofagia verbal, e de Ariano Suassuna no modo como o trágico e o cômico se misturam.

O tropicalismo surge como referência estilística e ideológica. Assim como os tropicalistas devoravam elementos da cultura de massa e da alta cultura para gerar um produto crítico e híbrido, Catunda usa os resíduos da linguagem oficial e da cultura popular para fabricar seu discurso subversivo.

Há, inclusive, um aspecto carnavalesco na linguagem da Barbúria. A inversão de papéis, a lógica do exagero, a zombaria das autoridades, tudo remete a um universo de festa que se transforma em pesadelo. É um carnaval sem quarta-feira de cinzas.

O riso provocado por Catunda é desconfortável. Não é catarse, mas denúncia. A linguagem engraçada é o disfarce de um conteúdo profundamente trágico. Cada piada contém uma dor e cada trocadilho, uma acusação.

A musicalidade corrosiva do texto é construída com aliteração, paronomásia, repetições irônicas. São jogos linguísticos que tensionam o limite entre o nonsense e o realismo fantástico. A realidade barbúrida é tão absurda que só pode ser representada como farsa.

O narrador assume muitas vezes um tom cínico, zombeteiro, próximo ao bufão que conhece os bastidores do poder. Esse narrador não acredita em redenções fáceis. Ele ri — mas o riso é ferido, quase desesperado. É um riso que se impõe ao silêncio da submissão.

O domínio estilístico de Catunda é notável. Ele evita o risco da monotonia ou da caricatura vazia porque sua linguagem está sempre em mutação, sempre em desequilíbrio criativo. É uma escrita instável — e é justamente essa instabilidade que traduz a natureza mutante da Barbúria.

O estilo de Catunda é a própria forma da crítica. Ele não apenas denuncia a Barbúria — ele escreve como se estivesse dentro dela, contaminado por ela, zombando dela com suas próprias armas. A linguagem vira performance do caos.

Márcio Catunda não narra apenas a Barbúria — ele a encena. Sua literatura é resistência linguística, é paródia que se recusa a morrer, é um ato de riso contra a máquina. E é justamente esse riso — amargo, barroco, nordestino e desobediente — que nos salva da barbárie.


8. O Delírio como Realismo: Influências e Ecos

 

A oitava parte de “Todos os dias são difíceis na Barbúria” revela um dos pilares centrais da poética de Márcio Catunda: a articulação entre delírio e realismo. Ao invés de opô-los, o autor funde essas categorias numa linguagem que transforma o cotidiano nacional em matéria onírica, disforme e alegórica.

Catunda ergue sua Barbúria como uma paródia radical do Brasil. Mas não se trata apenas de sátira: é um espelho invertido, onde os traços nacionais aparecem deformados até o grotesco — e, no entanto, reconhecíveis. A distopia é apenas a lupa do real.

Nesse sentido, a obra se insere numa linhagem literária que privilegia o absurdo como estratégia crítica. As referências não são apenas alusivas — são estruturais. Plínio Marcos, com sua crueza de favela e palco; Lima Barreto, com seu pessimismo iluminista e denúncia do manicômio social; e Ignácio de Loyola Brandão, com suas visões futuristas de regimes opressivos, são todos ecos vivos nesta construção.

A Barbúria partilha com “Não Verás País Nenhum”, de Brandão, o horror cotidiano do delírio oficializado. Ambas as obras imaginam um país à beira do colapso, onde a distorção da realidade virou política de Estado.

Do teatro do absurdo, sobretudo de Eugène Ionesco, Catunda herda o impasse linguístico, os diálogos circulares, o colapso do sentido. Em Barbúria, as palavras não comunicam: abafam, ocultam, confundem. As personagens falam, mas o silêncio ressoa mais fundo.

O delírio barbúrico está impregnado de tropicalismo, mas também de um realismo mágico às avessas. Ao contrário dos autores latino-americanos clássicos, como García Márquez ou Juan Rulfo, que inserem o mágico no tecido do real, Catunda insere o absurdo no já insólito panorama do cotidiano político brasileiro.

O fantástico aqui não escapa da miséria: ao contrário, a reforça. Em Barbúria, um general voa, um juiz se comunica com os mortos, e as estátuas do poder choram sangue — mas tudo isso ocorre com a naturalidade de uma fila no INSS. O delírio é normativo.

Essa naturalização do absurdo confere à obra uma qualidade alucinatória, como se a leitura fosse uma travessia entre o sonho e o noticiário. O que parece surreal é apenas o retrato intensificado do real.

A intertextualidade com a tradição brasileira de denúncia — a crônica do desespero, o riso diante da tragédia — estabelece a obra de Catunda como continuidade crítica. Se Lima Barreto revelou o alienado urbano, Catunda mostra o alienador sistêmico, disfarçado de palhaço.

O narrador da obra oscila entre a ironia e o espanto, entre o riso amargo e a fúria contida. Esse tom ambíguo remete ao narrador de “O Homem que Sabia Javanês”, de Lima Barreto. A distorção do tempo e do espaço em Barbúria é outro aspecto que remete ao realismo mágico. Não há cronologia exata, não há mapas confiáveis. Tudo é labiríntico, rizomático, como em “Pedro Páramo” ou “Macunaíma”. A Barbúria é um país, mas também um estado mental.

A espacialidade distópica, onde o real é excessivo e sufocante, gera um universo fechado em si. Não há saída — e talvez não haja sequer vontade de escapar. A crítica está na clausura: a Barbúria se alimenta de sua própria decadência.

Como Ionesco e Beckett, Catunda constrói personagens que vivem à deriva. Muitos deles falam sozinhos, repetem palavras vazias, acreditam em milagres burocráticos. A alienação é performada — e, nesse teatro, todos são cúmplices e vítimas.

Há também ecos do cinema brasileiro de resistência: de Glauber Rocha e de Joaquim Pedro de Andrade, Catunda herda a mistura do épico com o grotesco, do sagrado com o carnal. A Barbúria é um sertão pós-industrial onde profetas sem fé anunciam catástrofes rotineiras.

O humor, sempre presente, não é decorativo. É arma. Rir na Barbúria é resistir — mas também é sucumbir. Catunda trabalha com essa ambiguidade, fazendo do riso uma ferramenta que denuncia, mas também anestesia.

O uso constante de imagens fantásticas (estátuas que falam, repartições que flutuam, leis escritas em sangue) funciona como denúncia poética da lógica invertida que rege o país fictício — e, por extensão, o país real. O delírio é a lente que revela a normalidade monstruosa.

A Barbúria não é um futuro imaginado: é o presente saturado de seu próprio absurdo. Catunda faz da literatura um sismógrafo da degradação, e o delírio é o modo mais fiel de descrever o que já não se explica pela lógica.

A crítica literária que não compreende esse pacto entre delírio e realismo tende a banalizar a obra. Barbúria não é uma fábula escapista — é uma crônica aguda da paralisia nacional, travestida de fantasia. É nesse sentido que o autor realiza uma “crônica do irreal plausível”.

Com isso, Márcio Catunda inscreve “Todos os dias são difíceis na Barbúria” no rol das obras que usam o literário como lente de aumento da realidade. Seu delírio não é fuga: é exposição. É uma revelação trágico-cômica daquilo que o Brasil não ousa dizer — mas que sua literatura insiste em mostrar.


9. Uma Alegoria de Nós Mesmos

 

“Todos os dias são difíceis na Barbúria” não é apenas um livro sobre um país fictício. É um espelho cômico e trágico do Brasil e de qualquer nação mergulhada no delírio autoritário. Ao misturar farsa e crítica social, Catunda desenha uma sátira que, apesar do riso, convida ao desassossego. A Barbúria é onde todos moramos — ou corremos o risco de morar — quando a lucidez cede lugar ao absurdo institucionalizado.

A nona parte da obra “Todos os dias são difíceis na Barbúria” mergulha no colapso moral da sociedade fictícia — e, por extensão, da realidade que ela alegoriza. Márcio Catunda propõe um diagnóstico cortante: não há mais critérios éticos em Barbúria, apenas a memória fossilizada de uma moral que um dia existiu.

A Barbúria é construída como um espaço onde as noções de certo e errado foram deslocadas, reprogramadas, ou simplesmente substituídas por um código oportunista de sobrevivência e cinismo. O resultado é uma sociedade que opera sob a lógica do vale-tudo.

Catunda não condena seus personagens: ele os observa. A ruína ética não é uma escolha individual, mas um sintoma estrutural. Nessa terra em ruínas, qualquer tentativa de retidão é recebida com suspeita ou sarcasmo.

Os poucos que ainda tentam manter alguma integridade — o funcionário público que não aceita propina, a professora que insiste em ensinar literatura — são mostrados como figuras patéticas, fadadas ao fracasso, ou como heróis trágicos que ninguém mais compreende.

Há um silêncio cruel sobre os valores. Eles não são combatidos, mas ignorados, substituídos por um pragmatismo atávico, onde a esperteza vence e a honestidade empata. Barbúria não premia a virtude — pune a ingenuidade.

A ironia da narrativa é implacável. Quando um personagem faz um discurso sobre ética, logo é desmascarado, ridicularizado ou promovido ao cargo de inquisidor. A moral virou performance — e, como toda encenação, está sujeita ao escárnio.

A justiça em Barbúria é uma instituição decrépita, habitada por caricaturas de juízes e advogados que falam em latim para esconder seu vazio. O tribunal mais importante da capital julga um pombo por desacato à bandeira — e ninguém estranha.

Essa inversão grotesca dos valores é central à crítica de Márcio Catunda. O autor não está interessado em moralizar: sua arte é de revelação, não de sermão. Ele mostra a falência da ética como um fenômeno histórico, cultural e político.

A moral em ruínas se reflete na linguagem. O vocabulário das personagens está contaminado por eufemismos, siglas burocráticas e chavões vazios. “Corrupção” vira “ajuste informal”; “mentira”, “narrativa alternativa”. A língua desmorona junto com os princípios.

Catunda opera aqui com uma técnica que lembra Kafka: a lógica da absurdidade institucionalizada. Em Barbúria, não há vilões arquetípicos, mas engrenagens que giram sem propósito. A desmoralização é sistêmica, desprovida de rosto.

Ao tematizar esse colapso ético, o autor estabelece uma espécie de arqueologia do niilismo tropical. A Barbúria não é apenas amoral: ela é pós-moral. Os crimes não se escondem mais; ostentam-se com orgulho.

O único “valor” em voga é o sucesso — seja ele político, econômico ou midiático. Os cidadãos da Barbúria vivem de aparências e resultados. O meio pouco importa, desde que o fim produza uma manchete ou um cargo comissionado.

A religião, que poderia oferecer um contraponto, aparece em estado de simulação. Os pastores são empresários, os padres têm ações em mineradoras, e até as entidades sincréticas vendem indulgências. A fé virou capital simbólico.

A educação, por sua vez, é uma paródia perversa. As escolas ensinam técnicas de disfarce, manipulação de algoritmos e gestão da mentira. Catunda constrói um sistema de ensino distorcido onde a virtude é um conteúdo extinto.

Tudo isso produz uma espécie de náusea moral, um desconforto profundo no leitor. A Barbúria funciona — mas é uma máquina de desumanização. O sucesso do sistema é a falência do espírito.

A crítica social da obra encontra, aqui, seu ponto mais doloroso. Ao descrever a terra devastada dos valores, Catunda sugere que o Brasil real talvez já viva sob essa lógica. A Barbúria não é uma previsão, mas um diagnóstico.

Ao mesmo tempo, há uma melancolia profunda na forma como essa decadência é retratada. Não se trata de desprezo, mas de luto. A ruína ética é um túmulo onde ainda ecoam vozes do que poderia ter sido.

Essa melancolia ética é o que diferencia a obra de um simples panfleto. Catunda não grita; ele lamenta. Seu texto carrega uma espécie de tristeza filosófica que evoca a decadência romana, a queda de Bizâncio, ou a Paris sitiada de Baudelaire.

No fim, o leitor se vê entre dois extremos: ou ri do descalabro, ou chora pela perda. E talvez seja justamente nessa ambiguidade que reside a força da obra: ao confrontar-nos com o entulho da moral, ela nos obriga a buscar um sentido — mesmo que ele não esteja mais à vista.

“Todos os dias são difíceis na Barbúria” é, nesta sua nona parte, uma crônica da decomposição ética — mas também uma elegia. Entre o sarcasmo e a tragédia, Márcio Catunda revela a alma ferida de um país que já não sabe mais o que é certo.

 

10. O Inferno Cotidiano de uma Nação Distorcida

 

“Todos os dias são difíceis na Barbúria”, de Márcio Catunda, é uma sátira distópica travestida de crônica nacional — ou uma crônica nacional transfigurada em distopia. A obra se insere no mais denso e corrosivo território da literatura crítica contemporânea brasileira, com o mesmo ímpeto das grandes denúncias ficcionais do século XX, mas temperada por uma verve tropical e um lirismo sombrio.

Catunda constrói um universo alegórico e grotesco, no qual a realidade nacional é ampliada, distorcida e devolvida ao leitor como caricatura. A Barbúria, território imaginário onde todos os dias são difíceis, é a metáfora viva de um país moralmente desfigurado, dominado por farsantes, fanáticos e farsas políticas de toda sorte. Ao mesmo tempo, é também um não-lugar — um espaço arquetípico onde o delírio cotidiano é elevado à condição de norma. A obra, portanto, opera com o riso ácido da sátira, mas jamais se afasta do horror da realidade.

Do ponto de vista estrutural, o romance alterna o retrato social e o delírio estético com fluidez, entrelaçando a linguagem do cordel nordestino, a densidade filosófica da prosa barroca e a desilusão crônica herdada do realismo mágico. A musicalidade das frases, o uso ousado de neologismos e o deboche literário revelam um autor que domina com segurança o artifício e a crítica, sem cair no panfleto.

Mas se a linguagem é lúdica, o conteúdo é brutal. A Barbúria não tem heróis — apenas sobreviventes. A obra é povoada por personagens grotescos, desfigurados moralmente, marionetes de um sistema que transforma a corrupção em virtude, a burrice em ideologia, e o cinismo em método.

A resistência, quando aparece, é frágil, clandestina e muitas vezes ridicularizada. Os poetas, os artistas, os professores e os sonhadores são figuras marginais — vozes dissidentes em um deserto de ruídos. Até mesmo a esperança, na Barbúria, é vigiada, patrulhada, tratada como ameaça. Catunda, nesse ponto, oferece uma crítica contundente ao controle das narrativas, à manipulação da linguagem e à espetacularização da ignorância.

 “Todos os dias são difíceis na Barbúria” não é um romance de redenção, mas de constatação. Sua estética é a da farsa, mas seu conteúdo é trágico. É uma literatura que não se pretende confortadora, mas transformadora — ainda que pela via do incômodo, do riso amargo, do espanto. E por isso mesmo, é uma obra necessária. Porque se a Barbúria é o espelho da barbárie, olhar para ela é o primeiro passo para entender como chegamos aqui — e por que talvez continuemos presos nesse ciclo grotesco, onde todos os dias, de fato, são difíceis.


11. Epílogo da Insensatez: o Escombro da Utopia

 

A conclusão da obra de Márcio Catunda não oferece redenção, tampouco um desfecho apaziguador. Em vez de clímax, há um desmonte. O autor fecha “Todos os dias são difíceis na Barbúria” como quem abandona um palco em ruínas, deixando as cortinas queimadas e o público em silêncio. O epílogo é um anti-epílogo — o ponto onde tudo já se perdeu.

Não há resolução, porque Barbúria é a representação de um ciclo viciado: a distopia é cotidiana, ordinária, recorrente. O livro termina como começou — com o cotidiano devastado, a linguagem em frangalhos, e os personagens mergulhados em suas pequenas farsas.

Catunda não oferece consolo. E isso é, em si, um gesto político e poético. Recusar a esperança fácil, o final feliz de conveniência, é insistir numa literatura que não adormece consciências. A Barbúria não melhora, não acorda. Ela continua.

O autor, porém, não abandona a poesia. Pelo contrário: no meio do cinismo e da sarjeta, há imagens líricas de um lirismo desgastado, melancólico, mas ainda vibrante. São restos de uma utopia soterrada sob a lama da história, como flores nascendo no esgoto.

A utopia, em Catunda, não é uma proposta política concreta — é uma lembrança tênue, uma lembrança que sangra. A Barbúria é o mundo depois da utopia, quando os sonhos viraram slogans e os ideais, memes de ocasião.

O epílogo apresenta uma cena simbólica: um bardo anônimo toca rabeca diante de um muro grafitado com insultos à liberdade. Ninguém o ouve. Ninguém o vê. Ainda assim, ele toca. É nesse gesto gratuito, quase tolo, que resiste uma centelha de dignidade.

Catunda parece sugerir que, se há salvação, ela não está no sistema — mas no gesto desinteressado, na arte feita sem plateia, na ética que sobrevive sem recompensa. A resistência, aqui, é residual. Mas existe.

A voz narrativa se dissolve, aos poucos, como se fosse tragada pelo mesmo vórtice de Barbúria. Já não há narrador onisciente, apenas fragmentos, retalhos de consciência, ruídos de uma civilização em colapso. A forma acompanha o colapso do conteúdo.

A construção literária, nesse ponto, alcança uma maturidade plena. Catunda domina a desestruturação como recurso estético: ele desconstrói com método, desmonta com precisão. A Barbúria implode sob um controle literário severo e sutil.

É nesse momento que a obra se aproxima do grande ciclo trágico da literatura ocidental. Há ecos de “1984”, de Orwell, e de “Ensaio sobre a lucidez”, de Saramago. Mas há também a herança do teatro popular, da crônica mordaz à brasileira.

O humor, que antes servia como alívio e crítica, aqui se ausenta. No fim, até o riso morre. O leitor é confrontado com o silêncio da desesperança — um gesto audaz num tempo em que tudo precisa ser resolvido, explicado, vendido como produto.

A Barbúria, ao fim, se revela um arquétipo expandido do Brasil real. Mas é também um retrato universal: qualquer nação que normalize a estupidez e ridicularize a ética corre o risco de se transformar na Barbúria. Ou já se transformou.

A literatura de Catunda tem, nesse sentido, uma função de testemunho. É um registro crítico da degradação cultural, social e política de um povo. Não se trata de um panfleto, mas de um espelho — e poucos leitores saem ilesos desse reflexo.

Há um mérito maior nessa obra: ela não perde, em nenhum momento, sua consciência estética. Mesmo em meio à denúncia, à crítica ácida, à desesperança, Catunda cuida da linguagem com rigor e ironia. O estilo é, até o fim, a sua resistência.

A Barbúria permanece como símbolo — um mito contemporâneo, um Brasil hiperbolizado, um pesadelo alegórico de onde ninguém acorda. Talvez por isso o livro incomode: ele não termina. Ele se repete todos os dias.

É nesse ponto que o título da obra se revela profético: “Todos os dias são difíceis na Barbúria” não é uma frase ocasional, mas um destino. É o mantra sombrio de uma nação que se afoga em sua própria caricatura.

A densidade filosófica do livro, aliada à sua riqueza linguística e à coragem do olhar, coloca Márcio Catunda entre os nomes fundamentais da literatura crítica contemporânea. Não por causa da denúncia, mas pela construção de um universo literário completo, autoalimentado, coerente em seu delírio.

Poucas obras brasileiras recentes têm a ousadia de ser tão radicais. Márcio Catunda não suaviza. Ele escreve contra o tempo, contra a alienação, contra o adestramento cultural. Sua Barbúria é uma advertência.

No fim, o livro se fecha como um labirinto sem saída — ou como um espelho que o leitor é forçado a encarar. Não há catarse. Há constatação. A Barbúria continua. E o leitor sai da leitura com a incômoda sensação de que talvez nunca tenha saído dela.

“Todos os dias são difíceis na Barbúria” é, por tudo isso, uma obra indispensável. Crua, poética, revoltante e necessária. Um documento literário sobre o esfacelamento do sensível em tempos de estupidez generalizada. Um brado mudo, um grito abafado — mas ainda assim, um grito.

 

Vicente Freitas Liot

 

CATUNDA, Márcio. 𝗧𝗼𝗱𝗼𝘀 𝗼𝘀 𝗱𝗶𝗮𝘀 𝘀ã𝗼 𝗱𝗶𝗳í𝗰𝗲𝗶𝘀 𝗻𝗮 𝗕𝗮𝗿𝗯ú𝗿𝗶𝗮. Fortaleza: RDS Editora, 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário