sábado, setembro 24, 2011

Cultura e Opulência do Brasil


Cultura e opulência do Brasil é um livro extraordinário. E muito raro. Impresso em Lisboa no ano de 1711, foi considerado indesejado pela Coroa portuguesa que mandou recolher e destruir todos os exemplares. Felizmente, sobraram alguns poucos. Sete para ser mais exato. Um dos quais a Universidade de São Paulo tem o privilégio de possuir na Faculdade de Direito – a mais antiga biblioteca pública da cidade de São Paulo, formada a partir da coleção do Convento de São Francisco.


Escrito por um certo André João Antonil, dormitou cem anos antes de ser descoberto e reeditado. Os motivos da interdição do livro são controversos. A Coroa falava em manter segredo sobre as riquezas do Brasil, para protegê-las dos interesses estrangeiros. A melhor opinião, pelo menos a mais interessante, ainda é a de Capistrano de Abreu, que nos seus Capítulos de História Colonial, explica que “a verdade é outra: o livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostrando toda a sua possança, justificando todas as suas pretensões, esclarecendo toda a sua grandeza”. Com efeito, naqueles anos iniciais do século XVIII – com a economia açucareira ainda em profunda crise, o ouro abundante, mas incerto – os portugueses, moradores do Brasil, de colonizadores se sentiam cada vez mais colonizados. Nada mais perigoso.


A primeira reedição, parcial, foi feita na tipografia do Arco do Cego, em 1800. Completo, o livro seria reeditado em 1837 – mas a partir de uma cópia manuscrita. Depois, os exemplares foram aparecendo e serviram de base para várias reedições. Dentre estas, sem dúvida alguma, a publicada em 2007 pelaEDUSP, preparada e exaustivamente anotada pela profa. Andrée Mansuy Diniz Silva, é a mais completa e erudita já realizada.
Até Capistrano de Abreu matar a charada, ninguém atilava para quem seria Antonil. Com sua sabedoria, o historiador percebeu que o nome era um pseudônimo, quase um anagrama, utilizado pelo jesuíta João Antonio Andreoni. Nascido em Luca, na Toscana, em 1649, Andreoni entrou na Companhia de Jesus aos 18 anos e, em 1681, veio ao Brasil como visitador. Aqui ficou, chegando à posição de reitor do Colégio da Bahia. Morreu em 1716. Destacou-se na polêmica com Antonio Vieira sobre a legitimidade da escravidão indígena e na defesa da canonização de Anchieta. Seu livro garante-lhe um lugar de destaque na história e na cultura brasileira.
Cultura e Opulência é um tratado sobre as quatro principais riquezas do Brasil no limiar do século XVIII. Em cada uma das quatro partes da obra, o autor descreve uma atividade econômica (cana-de-açúcar, tabaco, minas de ouro, e pecuária), com copiosa informação e detalhados comentários técnicos. É um livro essencial para a história do Brasil Colonial e, sobretudo, para história da produção açucareira. Em sua introdução, Mansuy pondera que o livro é uma “obra fulcral, cuja leitura atenta, nas linhas e entrelinhas, dá a conhecer muitos aspectos da vida dos homens que, no seio de uma sociedade baseada no trabalho escravo, contribuíram, à custa do dinheiro de uns e do suor e sofrimento de outros, para a riqueza de um império cobiçado e ameaçado por potências estrangeiras”.
Pedro Puntoni

sexta-feira, setembro 23, 2011

A poesia de Dimas Carvalho

Poeta Dimas Carvalho
         “Poemas” (1988) inicia o poeta Dimas Carvalho na literatura cearense. A crítica não ficou passiva, ergueu sua voz e assegurou que o seu “potencial poético” não se esgotou nas páginas deste livro. Com esta publicação José Alcides Pinto reconheceu que Dimas Carvalho nasceu poeta, não se fez, incluindo-o no rol de nossos melhores escritores.
“Frauta Ruda, Agreste Avena” (1993) confirma o talento e a “potência poética” de Dimas Carvalho, faltando-lhe apenas o reconhecimento da crítica, pois esta só se destinou ao exame dos aspectos estéticos exteriores, não conseguindo penetrar na intimidade de sua arte.
O poeta subsiste e a sua poesia também. O tempo amadureceu-a, dando-lhe a consciência de que “O tempo é breve, o tempo é de colheita”. É nesse momento que Dimas Carvalho nos encanta com “Mínimo Plural” (1998), livro superior aos anteriores, sendo no momento sua obra mais importante.
"Mínimo Plural” se mostra em três divisões: As visões - parte I, As visões - parte II, e Mínimo Plural, título análogo ao do livro. A primeira divisão se distingue das demais, por concentrar todos os poemas num único título -invocação - através de uma concordância lógica.
Diversas são as visões que norteiam a poesia de Dimas Carvalho, aceitáveis num plano metafísico ou existencialista. O poeta no entanto, não busca a verdade mas a verossimelhança que pode ser no contexto de sua literatura uma espécie de verdade interpretada pelo leitor.
Nota-se em “Frauta Ruda, Agreste Avena” manifestações do existencialismo Sartreano, que se reitera em “Mínimo Plural”, enfatizando o ser pleno de nada na sua caminhada para a morte, embalado pela canção dos ventos que calam as vozes, decretando a verdade final do silêncio.
A poesia de Dimas Carvalho não é só manifestação filosófica, transborda lirismo, encantamento e leitura própria da história e da mitologia. Sua poesia é também a expressão das suas reminiscências litorâneas, onde se percebe a relação que o poeta mantém com o ar, com o vento e com o mar. Isto talvez justifique a intensidade eólica que se faz na sua poética.
O poema “Ápice” de Dimas Carvalho estabelece uma aproximação com “Traduzir-se” de Ferreira Gullar, ambos os poemas nos apresentam duas metades que irão se encontrar por uma “questão de vida ou morte”, ou de incompletude:

sou feito de duas partes
que não se encontram jamais metade de mim é tudo,
metade de mim é nada

e passo a vida incompleto:algumas vezes demais,
as outras vezes faltando,
mas nunca a medida certa

só no último momento
- transitório diamante -
quando as duas se encontrarem
serei tudo e serei nada

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


Destaca-se no poema “Ao crepúsculo” versos que não denunciam, mas afirmam a existência da exploração do trabalho infantil, realidade social ainda predominante em nosso país. O poeta mostra-se contemporâneo no seu relato, ansioso por novas consciências geradoras de mudanças:

uivos tristes se ouvem mais além
magras crianças, descalços pés no chão,
caixas conduzem em seus fracos ombros;
e quanto peso mais neles carregam?


A metalinguagem tornou-se uma prática constante na poesia moderna. Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, e Ferreira Gullar, nos dão exemplos significantes que nos servem até de princípios teóricos, que melhor explicam o fazer poético. O poema “Ars Longa” de Dimas Carvalho não se esquiva deste contexto:

a poesia não diz
a poesia não canta
não adverte não protesta
não afirma não nega
a poesia não

a poesia é
nada, vazio absoluto

a poesia é silêncio,
bloco de branco esplendor
entre o inexistente e o impossível,
ela imota, sem pesa, move-se,
circularmente
a poesia não traz
o tempo passado de volta,
não o evoca
não constrói o antecipadamente desabado futuro
a poesia não está
nem no poema nem no leitor,
nem na leitura

espectro de névoa
brilha uma luz apagada, obscura


Como tudo é permitido ao poeta, Dimas Carvalho faz uso dessa permissão tecendo todos os seus versos com letras minúsculas, negando-se à tradição poética que geralmente inicia os versos com maiúsculas. Inovação? Rompimento com as normas gramaticais?, o que se pode dizer é que o poeta é inventivo e se dá aos moldes da criação, tornando-se um demiurgo que só descansa no sétimo dia.
“Mínimo Plural” triunfa entre os homens por ser uma obra de qualidade, permitindo-nos múltiplas leituras e interpretações que nos garantem a certeza de sua existência, mesmo que a crítica não lhe direcione sua total atenção.

Inocêncio de Melo Filho - professor da Universidade Vale do Acaraú.

quarta-feira, setembro 21, 2011

E as pedras rolaram

Ali, no píncaro do Alto
onde vicejam florais,
o meu castelo erigi,
de pedras brancas, ovais.

Era sublime... Era nobre!
Todo dourado de sol!
Foi coroado de sonhos,
meu santuário e farol.

Edifiquei, só de amor,
o meu castelo encantado.
Fibras uni, de carinho,
às do minério ovalado.

Sobre uma pedra dourada
pus uma lâmpada acesa
para aquecer e proteger
meu coração, da tristeza.

Que belos dias vivi!
Felicidade, encontrei.
Mas hoje aqui, de saudade,
copiosamente chorei.

Do meu castelo encantado,
tristes ruínas, pranteio,
sentada, aqui, na calçada
da ruazinha do meio.

Uma tristeza invadiu
todo o meu ser, num lamento...
No topo do Alto ficou,
perambulando, o vento.

De todos aqueles sonhos
que meu castelo guardou,
ao cair pedra por pedra,
a solidão me restou.

Maria de Jesus Carvalho   

quinta-feira, setembro 15, 2011

200 Livros Indispensáveis


Will Durant – filósofo, historiador, escritor americano – fez, há muitos anos, uma lista dos cem livros que ninguém, culto, poderia deixar de ter lido. Mas o rol me pareceu, de imediato, muito sujeito ao lugar e à época em que nasceu e viveu seu autor, donde deduzi que uma relação minha teria de ser em grande parte diferente da dele. E aqui está ela, a pedido do poeta de Ilhéus, Fabrício Brandão, claro que sujeita às minhas limitações. Uma delas foi a de que não consegui levantar cem, mas duzentas obras sem as quais não poderíamos nos dar por satisfeitos.
Pra começo de conversa: que obras teríamos em comum com o mundo de Durant? 1) a Bíblia, como base da cultura religiosa de nossos povos; 2) a Ilíada e 3) a Odisseia, clássicos do grego Homero, fonte primeira de toda a visão do mundo ocidental. Aí teríamos de incluir em nossas leituras, pelo menos uma peça de cada autor da grande tríade do teatro helênico: o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (4); o Édipo Rei, de Sófocles (5); e Medeia, de Eurípedes (6), para não falar de todas outras grandes tragédias, além de comédias do ciclo. A História, de Heródoto (7), é obrigatória por estabelecer os fundamentos da ciência que estuda a passagem do Homem pelo tempo e pelo espaço. E seria terrível deixar a Grécia de lado, agora, sem conhecermos pelo menos um livro de cada um de seus dois maiores filósofos, como A República, de Platão(8), e a Política, de Aristóteles (9), com grande esforço meu pra omitir outras obras dessas duas sumidades, como O Banquete, do primeiro e a Poética, do segundo.

Do Império Romano não se sai sem passar pela Eneida (10) de Virgílio, pela Guerra das Gálias (11) de Júlio César, pelo Asno de Ouro (12) de Apuleio, por um dos muitos volumes das Vidas Paralelas, de Plutarco – a exemplo do César e Alexandre (13) -, além da comédia Anfitrião (14) de Plauto, As Catilinárias (15) de Cícero, As Odes (16) de Horácio, A Arte de Amar (17) de Ovídio, a História (18) de Tito Lívio, e A Vida dos Doze Césares (19) de Suetônio.
Com isso já temos muito de nossa base estabelecida.
Aí podemos saltar para As Confissões (20) de Santo Agostinho, a Suma Teológica (21) de Tomás de Aquino, o Leviatã (22) de Hobbes, o Discurso sobre o Método (23) de Descartes, a Ética (24) de Spínoza. Por outro lado, seria uma lacuna de grande porte desconhecermos o Príncipe (25) de Maquiavel e o Elogio da Loucura (26) de Erasmo de Roterdã. E, é claro, temos de dar uma parada em Shakespeare. Seria impossível limitarmo-nos a apenas uma das 36 peças, dele. Hamlet (27)? Muito bem. Mas não dá pra passar por cima de Rei Lear (28), de Macbeth (29), Júlio César (3o), Henrique V (31) e Romeu e Julieta (32)… pelo menos. Fora da Inglaterra, não se pode omitir, jamais, a Divina Comédia (33) do italiano Dante, o Fausto (34), do alemão Goethe, A Vida é Sonho (35) e o Don Quixote (36), dos espanhóis Calderón de La Barca e Cervantes, além de Os Lusíadas (37), do português Camões.
Há uma série de filósofos – Locke, Berkeley, Hume, Diderot, Rousseau, Fichte, Schelling, – importantíssimos, claro, mas cujas ideias uma boa História da Filosofia Ocidental, como a de Bertrand Russell (38), pode resumir, situar e interpretar melhor do que nós. Sem falar que essa História lhe entregará bastante simplificado o pensamento de outras figuras essenciais mas bastante complexas, como Kant, Hegel e Heidegger. É indispensável, também, uma boa História da Arte (39 ) como as de Sheldon Cheney, Élie Faure, W. H. Janson ou Gombrich. Para atualizá-la, é necessária a colossal Arte Moderna, de Giulio Carlo Argan (40), e a Arte Contemporânea (41) de Klaus Honnef. Para penetrar nos mecanismos da pintura, nada melhor do que Universos da Arte (42), de Fayga Ostrower. Não se pode esquecer, nesse levantamento, a importância da fotografia, conforme se pode ver no Icons of Photography (the 20th) century (43) da editora Prestel.
Há outros nomes que não podem ser passados às pressas. Descartes com seu Dicionário Filosófico (44), Schopenhauer com seu O Mundo como Vontade e Representação (45), Marx com O Capital (46), Nietzsche com seu Assim Falava Zaratustra (47), Bergson com seu Evolução Criadora (48).
Paralelamente, você tem que conhecer a Teoria da Evolução com A Origem das Espécies (49) de Darwin, tem de entender o liberalismo clássico na economia com o Riqueza das Nações, de Adam Smith (50), repassar a história da economia até os anos 70, com A Era da Incerteza (51) de John Kenneth Galbraith, e a História do século XX, com A Era dos Extremos (52) de Eric Hobsbawm.
Freud não pode ser descartado, claro. A Interpretação dos Sonhos (53) é uma obra fundamental. Também Psicopatologia da Vida Cotidiana (54), como todos os outros livros do Pai da Psicanálise. De seu discípulo – depois dissidente – Jung, temos Tipos Psicológicos (55) e O Eu e o Inconsciente (56). Importantíssimo, também, o livro organizado por ele, O Homem e seus Símbolos (57).
A Rússia do século XIX nos deixou uma literatura poderosa. Aí temos as obras de Tólstoi, principalmente Guerra e Paz (58) e Ana Kariênina (59); as de Dostoiévsky, com destaque para Irmãos Karamazov (60) e Crime e Castigo (61); o teatro (62) e os contos (63) de Tchécov; o Capote (64) de Gogol, e A Mãe (65) de Górki. A Rússia do século XX produziu Dr. Jivago (66) de Pasternak, O Arquipélago Gulag (67) e O Pavilhão dos Cancerosos (68) de Soljenitsin, o 150.000.000 (69) do poeta Maiakóvski. Pra entender a Revolução de 1917, são indispensáveis a densa História da Revolução Russa (70) de Trótsky, e Dez Dias que Abalaram o Mundo (71) de John Reed.
Marcante, no século XX, foi o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com seus Poemas (72) e inúmeras peças, como Galileu Galilei (73), Mãe Coragem (74), Os Fuzis da Senhora Carrar (75), Terror e Miséria no Terceiro Reich (76) e muitas outras. Alemão notável, também, foi Hermann Hesse, pelos romances Demian (77), O Lobo da Estepe (78) e O Jogo das Contas de Vidro (79). Thomas Mann marcou também forte presença com Buddenbrock (80), A Montanha Mágica (81), Morte em Veneza (82) e Doutor Faustus (83).
A França tem uma infinidade de nomes significativos, como Corneille, Racine, Molière, Montaigne, Rabelais, Ronsard, Montesquieu, Verlaine e Mallarmé, mas podemos nos ater a romances como Os Miseráveis (84) de Victor Hugo, O Germinal ( 85), de Zola, Os Três Mosqueteiros (86) de Dumas, O Vermelho e o Negro (87) de Stendhal e Madame Bovary (88) de Flaubert. Balzac tem uma obra romanesca imensa, englobada sob o título geral de A Comédia Humana, mas podemos destacar dela os romances Ilusões Perdidas (89), A Mulher de Trinta Anos (90), Pai Goriot (91) e Eugênia Grandet (92). Ah, claro, não podemos eliminar os grandes poetas Baudelaire, com Flores do Mal (93), e Rimbaud, com Uma Temporada no Inferno (94). No século XX, marcaram presença Proust, com os sete volumes do Em Busca do Tempo Perdido (95), Camus , com os romances O Estrangeiro (96) e A Peste (97), mais a bela peça teatral Calígula (98); Sartre, com suas obras filosóficas – que, como as de Camus e Wittgenstein, prefiro ver resumidas e analisadas por Bryan Magee, por exemplo, em sua História da Filosofia (99) – Sartre tem como suas mais notáveis criações seu romance A Náusea (99), seu livro de contos O Muro (100), além das peças A Prostituta Respeitosa (101) e Mortos sem Sepultura (102).
A Itália vem de longe com o Decameron de Boccaccio(103), o Orlando Furioso (104) de Ariosto, o Jerusalém Libertada (105) de Tasso, e chega ao século XIX e XX com a peça Seis Personagens em busca de um Autor, de Pirandello(106), além dos romances O Conformista ( 107) de Moravia e O Leopardo (108) de Lampedusa.
Da velha Inglaterra destacam-se Ivanhoé (109) de Walter Scott; Orgulho e Preconceito (110) de Jane Austen; Jane Eyre (111) de Charlotte Brontë, e O Morro dos Ventos Uivantes (112) de Emily Brontë. Computem-se aí, ainda, A Ilha do Tesouro (113) e Dr. Jeckyll e Mr. Hyde (114), de Robert Louis Stevenson.
Como pude me esquecer do francês Júlio Verne e de sua prole inumerável de sucessos, entre os quais Vinte Mil Léguas Submarinas (115), Miguel Strogoff (116), A Volta ao Mundo em Oitenta Dias (117), Da Terra à Lua (118) e Viagem ao Centro da Terra (119)? E do inglês George Bernard Shaw, com suas peças teatrais Santa Joana (120) e Pigmalião (121)? E do também inglês Oscar Wilde, com seu romance O Retrato de Dorian Gray (122) e peças como Salomé (123) e A Importância de se chamar Ernesto (124)? E da também inglesa Virginia Woolf, com seus belos romances Orlando (125) e Mrs Dalloway (126)? E de Anthony Burgess com seus romances Laranja Mecânica (127) e Sinfonia Napoleão (128)?
Dos Estados Unidos vêm, enormes, o Folhas de Relva (129) de Walt Whitman, o romance de James Fenimore Cooper – O Último dos Moicanos (130), os Poemas (131) de Edgar Allan Poe (incluindo o famosíssimo O Corvo), bem como seus Contos (132), entre os quais se incluem O Poço e o Pêndulo, Os crimes da rua Morgue, e A Queda da Casa de Usher. Há Mark Twain, com seus fabulosos Tom Sawyer (133) e Huckleberry Finn (134). Há Melville, com Moby Dick (135). Há Theodore Dreiser e seu romance Uma Tragédia Americana (136), e Steinbeck com As Vinhas da Ira (137). E Eliot com a poesia intensa de Terra Devastada (138).
Hemingway tem pelo menos quatro obras-primas indispensáveis: Adeus às Armas (139), Por Quem os Sinos Dobram (140), O Velho e o Mar (141) e O Sol Também se Levanta (142). Como se não bastasse, Faulkner criou Enquanto Agonizo (143), O Som e a Fúria (144), Luz em Agosto (145), etc, etc.
Não se pode omitir, também, Lorca, na Espanha, com suas peças densas – Bodas de Sangue (146), A Casa de Bernarda Alba (147) e Yerma (148), sem falar da Antologia Poética (149), envolvendo poemas como Romancero Gitano, Ode a Walt Whitman, Poema del Cante Jondo, etc, etc.
E o inglês Aldous Huxley, com seus romances Contraponto (149) e Admirável Mundo Novo (150)?
E o francês Teilhard de Chardin, com seu profético O Fenômeno Humano (151)? E temos Einstein, com seu Como vejo o Mundo (152). Temos o irlandês James Joyce com seu monumental Ulisses (153), seus maravilhosos Dublinenses (154) e Retrato do Artista enquanto Jovem (155). Já nem me atrevo a falar do Finnegans Wake… porque esse romance nunca esteve, está ou estará ao meu alcance.
E há o argentino José Hernández, com seu poema clássico Martin Fierro (152); e o chileno Pablo Neruda, com seu Canto Geral (153) e seus Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada (154); e o argentino Jorge Luís Borges, com seus livros de contos – Ficções (155), Aleph (156), O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (157) , além de sua fantástica Obra Poética (158).
E há Cortázar, com seus romances Jogo da Amarelinha (159), Os Prêmios (160) e Livro de Emanuel (161), mais os livros de contos Bestiário (162), Final de Jogo (163), Todos os Fogos o Fogo (164), A Volta ao Dia em Oitenta Mundos (165), Octaedro (166), Queremos tanto a Glenda (167).
Claro: temos o Gabriel García Marquez, lá da Colômbia, com Cem Anos de Solidão (168), considerado por Eric Hobsbawm, na supramencionada A Era dos Extremos, como o último romance de consenso universal.
Resta-nos o Brasil. Aqui temos, indispensáveis, o Casa Grande & Senzala (169) de Gilberto Freire; Raízes do Brasil (170), de Sérgio Buarque que Holanda; Macunaíma (171) e Pauliceia Desvairada (172), de Mário de Andrade; Oito Anos de Nassau no Brasil (173), de Gustavo Barleus; a História do Brasil (174) de Frei Vicente do Salvador; O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade na Restauração de Pernambuco (175), de Frei Manuel Calado; Os Sermões (176) do Padre Vieira; Geografia da Fome (177), de Josué de Castro; Os Sertões (178) de Euclides da Cunha; o Grande Sertão:Veredas (179) do Guimarães Rosa; o Vidas Secas (180), do Graciliano Ramos; Fogo Morto (181) e Menino de Engenho (182) de José Lins do Rego. E ainda há o Eu (183) do Augusto dos Anjos. Morte e Vida Severina (184) de João Cabral de Melo Neto. Que País é Este? (185), de Affonso Romano de Sant´Anna. Poema Sujo ( 186), de Ferreira Gullar.

Há o Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço, de Frederico Pernambucano de Mello (187). Formação Econômica do Brasil (188), de Celso Furtado. O Dilema da América Latina (189), de Darcy Ribeiro.
Ia me esquecendo de As Veias Abertas da América Latina (190), de Eduardo Galeano! Claro, nenhum brasileiro pode deixar de ler alguns romances de Machado de Assis, como Memórias Póstumas de Brás Cubas (191) e Dom Casmurro (192). Nem os Poemas (193) de Castro Alves, em que se incluem o Navio Negreiro e Espumas Flutuantes. Nem os Poemas (193) de Manuel Bandeira. Nem os Poemas (194) de Carlos Drummond, em que se incluem José, Claro Enigma e Rosa do Povo. Ariano Suassuna, claro, comparece com A Pedra do Reino (195) e O Auto da Compadecida (196).
O teatro brasileiro tem no Vestido de Noiva ( 197), do Nelson Rodrigues, sem dúvida, um divisor de águas para a modernidade. E a educação tem na Pedagogia do Oprimido (198), do Paulo Freire, uma saída que a ditadura desestruturou. Chatô, o Rei do Brasil (199), de Fernando Morais, retrata com fidelidade um personagem paraibano que revolucionou o país.
Ah: e as Poesias (200) de Fernando Pessoa, pra fechar a relação com chave de ouro!

Claro que ao rememorar todas essas obras de um jato só, sem me dar tempo de correções ou inclusões, devo ter cometido omissões imperdoáveis. Ah, faltaram os portugueses Eça de Queiroz, Camilo de Castelo Branco, Saramago, Florbela Espanca; faltaram os brasileiros José J. Veiga, Antonio Torres, Érico Veríssimo, Ubaldo Ribeiro, … e Jorge Amado, caramba! O paraibano Paulo Pontes!!!

segunda-feira, setembro 12, 2011

O Ceará e suas Universidades

Paulo Elpídio de Menezes Neto, ao lado da esposa 
Zuleide e filha Martinha Assunção, lançou
 "A Universidade Possível" e "O Ceará 
e suas Universidades", no Iate Clube.



Ex-reitor da UFC e ex-secretário da Educação do Ceará, Paulo Elpídio lança 2 publicações em que discute o ensino superior e resgata histórias das universidades do Ceará.


Políticas públicas equivocadas, falta de autonomia, estruturas acadêmicas engessadas, grades curriculares ultrapassadas, etc. São alguns pontos de entrave das universidades brasileiras, apontados pelo cientista político Paulo Elpídio de Menezes Neto. O ensino superior nacional e a realidade cearense são temas de dois livros de sua autoria que foram lançados  em Fortaleza.

Paulo Elpídio foi professor de Ciências Políticas da Universidade Federal do Ceará (UFC) por 28 anos, sendo também reitor da instituição, de 1979 a 1983, Secretário Nacional da Educação Superior (1985) e posteriormente da Educação Básica (1991) do Ministério da Educação (MEC), Secretário da Educação

 do Ceará (1987), além de professor-visitante da Universität Köln, na Alemanha (1983 e 1990,) e, mais recentemente, reitor do Centro Universitário Celso Lisboa, no Rio de Janeiro (1998).

Em "A Universidade Possível" e "O Ceará e suas universidades", editados pela Oficina da Palavra, ele reúne artigos revisados sobre temas ligados ao ensino superior e faz um resgate histórico da criação das cinco universidades cearenses.

"Poderíamos ter feito melhor do que fizemos", avalia o autor, sobre os anos em que acompanhou e atuou no desenvolvimento do ensino superior no País. A implantação das universidades pelas vias estatais para ele é premissa de muitas frustrações.

Se de um lado a vinculação com o Estado democratiza o ensino, ela é também responsável pelo travamento da estrutura funcional da universidade. "Eu acho que a universidade no Brasil é Estatal em excesso", explica. Entre os prejuízos, enumera políticas que julga equivocadas, como as tentativas de democratizar o acesso à universidade.

"A universidade tem compromisso com a qualidade. Não se pode baixar o critério de acesso por um ´bem social´, para democratizar esse acesso", diz. Para ele, o governo tenta remediar a má qualidade da rede pública de Ensino Básico e Fundamental reduzindo o nível de exigência do Ensino Superior. Como resultado dessa política, ele atesta em "A Universidade Possível" o surgimento da figura do "analfabeto funcional" do Ensino Superior.

Outra decorrência da submissão estatal é o engessamento dos currículos, fato piorado pela aversão ao mercado de muitos educadores. "Há na universidade quem se envergonha ou reage com virulência (à palavra mercado), porque a universidade deveria ter outros parâmetros", ilustra, argumentando que não se pode pensar em universidade de currículo estático, quando o mercado se desenvolve muito rápido. "Um jovem entra na universidade para se capacitar para o trabalho. Se a universidade não consegue garantir essa inserção no mercado, ela está atrapalhando a vida de muita gente", diz.

Sobre suas passagens pelo MEC e a possibilidade de interferir na formulação de políticas públicas, Paulo Elpídio é ainda mais taxativo: "O MEC não presta para pensar o ensino. É um instrumento burocrático. Falo do MEC como estrutura".

Homenagem
Os dois livros são dedicados ao fundador da UFC, Antônio Martins Filho, conhecido como "o reitor dos reitores". Em um capítulo à parte sobre a história das universidades cearenses, o autor expõe as dificuldades enfrentadas no período militar.

Em meio a tantas memórias e uma reflexão incessante sobre a realidade acadêmica, Paulo Elpídio se mostra um pouco desacreditado do futuro próximo da universidade pública brasileira. "Até agora não temos projeto de educação bem definido. Temos ainda algumas ideias boas que os governos se empenham em estragar", conclui.

MAIS INFORMAÇÕES. Contato: (85) 3263.1744.

De volta ao passado


a encantadora Fortaleza do século XIX

Um conto no passado. Cadeiras na calçada, romance de Raymundo Netto, é uma viagem no tempo, um encontro com uma Fortaleza poética e provinciana que só a imaginação pode reconstruir. De mãos dadas com Américo Lopes, o protagonista e narrador, passeamos pelas calçadas do início do século XX e andamos pelas ruas ‘descalças’ de uma cidade menina que parece se fazer mulher aos olhos do leitor.
No livro de Raymundo, o narrador é um senhor de mais de 90 anos que, após receber um pacote de cartas de seu amor de juventude, compreende a razão de ter vivido tanto, e resolve, no ano de 1998, contar a sua história como um modo de eternizar seu romance interrompido pelo destino. Trata-se de uma narrativa cíclica, cujo intróito pode perfeitamente ser colado ao final para atar as pontas do novelo da vida do personagem:

No quarto, passei a cismar sobre a minha vida, toda ela, nos momentos e caminhos que me fizeram ser o que hoje eu sou. Recapitulando os desastrados anos da minha vida, conclui o porquê de ainda estar vivo. Precisava saber, não poderia partir desse mundo sem saber, e agora finalmente eu estava pronto.
Abri o lenço à minha frente e reconheci a letra feita às pressas com o furor de quem está arquitetando um grande plano de paixão: Não esqueças de me lembrar que não foi apenas um sonho! “Voltarei a ti...Sempre!” “Voltarei a ti...Sempre!” ... por um momento senti-me naquele quarto acolhido nas asas e no sorriso de Olívia. Peguei o lenço e busquei seu cheiro: não havia nenhum, não havia nada! Pobre Américo, pensei, que sorte o destino lhe pregara. Chorei copiosamente um pranto esquecido. (p.144)
A narrativa memorialista, de que se vale o autor, tomou impulso nos anos de 1970, com o romance-reportagem, uma tendência pós-moderna que se alicerça na transdiscursividade. Segundo Walnice N. Galvão (2004), o memorialismo, há tempos praticado no país, deu um salto de qualidade ao surgir a obra de Pedro Nava: “com uma capacidade invejável de reconstituir os ambientes de sua ancestralidade até várias gerações, e criando com liberdade o que não podia propriamente reconstituir, Pedro Nava acaba por fazer também um pouco de história imaginária, ou do imaginário. Ergue-se ante nossos olhos o passado de Minas”. A narrativa biográfica tem, pois, esse mérito de reconstituir, utilizando a trajetória de um personagem real, a trajetória de uma geração, a história de uma época e de um espaço.

Assim ocorreu com Pedro Nava, que juntou imaginação e memória nos relatos de suas experiências; com Marcelo Rubens Paiva, em seu Feliz ano velho, livro que conta o acidente que o deixou paraplégico e os dias que o sucederam, entre outros que, ao modo de Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e Raquel de Queiroz, transfiguraram para a literatura episódios de suas histórias. No Ceará, destaca-se Milton Dias com suas crônicas de memórias.

Essa opção por narrar-se, ou seja, transformar-se em personagem, é curiosa e suscita uma reflexão sobre o significado da experiência vivida tanto para quem a expõe, no momento em que a expõe, pois já não é a mesma pessoa que viveu os fatos, como para o leitor. Marta Campos (1992 p.28-9) faz algumas considerações a esse respeito: “Quando um autobiógrafo confere um significado a um tempo passado, ele certamente optou por um dos muitos significados que o acontecimento pode ter tido ou talvez tenha conferido ao fato um significado totalmente novo, que ele só adquiriu muito tempo depois. Este significado, por sua vez, revela muito mais sobre a situação do autobiógrafo no momento da escritura do que sobre o homem à época do acontecimento”.

O livro de Raymundo Neto, embora traga uma narrativa autobiográfica, não confunde o narrador com o autor. O velho Américo, personagem fictício, conta sua trajetória desde a infância, na primeira década do século XX, quando perde os pais e passa a ser criado por uma tia. Paralelamente, conta-se a história da cidade, tendo-se, dessa forma, dois personagens centrais: Américo e a cidade de Fortaleza.

A onisciência do narrador em 1ª pessoa não torna o relato inverossímil, pois desenrolam-se fatos passados, utilizando-se assim de um meio fundamental para tornar o relato crível. Tudo já foi consumado, vivido. O personagem Américo é ficcional, mas a cidade e sua história são reais e fundem, num só espaço e tempo, verdade e ficção, conduzindo o leitor nessa ambivalência que o leva a duvidar se Américo é apenas um ser de papel.

A cidade 

A cidade é desenhada em sua arquitetura e pelos fatos debulhados desfilam cenas moldadas nos espaços da época, como as ruas do centro da cidade: Guilherme Rocha, Barão de Aratanha e Formosa, a Praça do Ferreira, a Coluna da Hora, a Farmácia Osvaldo Cruz, o Café Java, o Maison Art-Noveau, o Café Riche, a lanchonete Leão do Sul, o Passeio Público, a Confeitaria Crystal, o Cine-Teatro Majestic, o Cine São Luiz, o Clube Iracema, o Estoril, a Cidade da Criança (antigo Parque da liberdade, onde ficava a Ilha do Cupido), o Cemitério São João Batista, a Igreja do Pequeno Grande, a Praça General Tibúrcio, o Palácio da Luz, a cadeia pública, os palacetes, tudo cenário da vida de Américo Lopes, o menino órfão cuja vida se confunde com a da própria cidade em que nasceu e viveu.

A habilidade com que os espaços e os acontecimentos reais são colocados no relato dá a impressão de que tudo é real. Américo fala sobre o Jornal O Pão e a Padaria Espiritual, seus mentores, cita os nomes de guerra dos padeiros e até trechos do estatuto, tudo contextualizado em encontros com amigos, um deles, não despretenciosamente “primo da Sra. Maria do Carmo. Ela, há vinte anos residia na rua do trilho e casara com um alferes da polícia na Igreja do Patrocínio” (p.22) uma referência explícita à personagem de A Normalista, romance de Adolfo Caminha... não apenas uma referência, mas um registro da contemporaneidade de ambos, num jogo intertextual bem construído.

Américo – o menino e o homem.

O menino Américo, órfão de pai e mãe, é criado pela tia e madrinha, D. Severina, “viúva de natureza extremamente afável, conhecida pelo apelido de Sílvia” (p.12). Ela e o menino viviam da pensão deixada pelo marido dela (que morreu na época da grande seca) e dos serviços de costura que ela fazia para a vizinhança.
Ainda bastante jovem, começa a trabalhar como vendedor na sapataria do Sr. Campos, pai de Daniel, seu colega de colégio e amigo, um rapaz folgazão e desonesto, que rouba o pai e vive de armações. Em uma de suas provocações ao pai, convida o amigo para um baile na casa de amigos da família e leva-o vestido em um paletó (subtraído do guarda-roupa do pai) reformado, expondo-o ao ridículo. Américo começa a perceber a personalidade do companheiro, mas não se abstém de sua amizade, pois necessita do emprego e sonha com uma promoção a gerente da loja.

Na festa, conhece Olívia, uma bela moça que admira ao piano. Rouba um poema de Antero de Quental para impressioná-la e vivem um idílio até a revelação fatal: ela é casada com um rico barão, casamento por conveniência, para saldar dívidas da família, e não pode viver seu amor com o jovem rapaz. Juntos, passeiam pela cidade e descobrem a poesia da vida. Após viver uma noite de amor e na iminência de uma despedida, desesperado para não perdê-la, querendo convidá-la para fugir com ele, Américo pensa em roubar o cofre do patrão, e, num ato inconsequente e imaturo, vai à sapataria, onde encontra Daniel se apossando do dinheiro. Após a discussão, Américo permanece no local e é preso como ladrão. O pai de Daniel sabe a verdade, mas não quer expor publicamente o filho e só retira a queixa quando a dívida do roubo é paga, mais tarde se sabe, pelo marido de Olívia que, durante a prisão do amado, já voltou à sua casa no Rio de Janeiro.

A família de Daniel vai embora de Fortaleza, e Américo, aos poucos, retoma a vida, sofrendo a perda da tia, mas sempre criando forças para recomeçar. Consegue emprego nos Correios, casa-se com Guilhermina (Guiné) exatamente na época em que termina a segunda Grande Guerra Mundial. Com ela tem dois filhos: Victor e Cristina, levando uma vida pacata e confortavelmente feliz até a morte de sua companheira.

Vivendo já a velhice, recebe, um dia, a visita de Laura, filha de Olívia, que lhe entrega um pacote com cartas e um bilhete onde revela que Laura, sua única filha, não era filha do barão; é, na verdade, filha de Américo, fruto da única noite de amor que tiveram. Fica sabendo que Olívia morreu cedo e o barão voltou a se casar com outra mulher. Ele entende a dimensão do amor que viveu com Olívia e se propõe escrever sua história, cujo relato constitui o romance Um conto no passado.Cadeiras na calçada.

A obra é, pois, bem mais que um romance memorialista; é uma história de amor; é um registro histórico poético, um resgate dos espaços da cidade, da sua literatura, da sua música, dos seus símbolos, como o Bode Yoyô, a figura de Chico de Matilde, o Dragão do Mar, e tantas nuanças perdidas no tempo que precisam ser reativadas no imaginário das novas gerações.

Embora seja uma obra contemporânea, cujo tempo narrativo é o passado, a linguagem não peca quanto à adequação com o período retratado e a idade do narrador. Raymundo Netto consegue seduzir o leitor a segurar a mão do velho Américo e percorrer a cidade menina de um século atrás, envolvendo-o nas histórias de amor que se eternizaram em sua memória anciã... é como se alguém colocasse as cadeiras nas calçadas do tempo e se pusesse a contar sua vida apaixonadamente. Além dos cenários bem descritos, a obra recorre ao registro iconográfico e faz com que a saudade do tempo não vivido se revele no coração do leitor do nosso tempo.

A narrativa final transcorre com Américo sentado na Praça do Ferreira, num banco de madeira, rememorando seu amor impossível e revendo a cidade. As carta de Olívia fizeram-no renascer. De ‘chapéu de feltro azul com laço de cetim escuro, de óculos Rayban, portando um guarda-chuva preto, em camisas de mangas longas e com um pente flamengo no bolso’ ele recorda sua vida, renascido, e declara sua saudade... sua saudade de tudo.

Ao final, o autor fala do rumo que tomou aquelas vidas após a conclusão do livro, do significado que a vida passou a ter para Américo depois da certeza de que foi amado por Olívia e da sua partida “dormindo e sorrindo com uma paz de espírito impressionante”.

A obra de Raymundo Netto é um legado a essa geração e às próximas, um registro telúrico de seu amor à cidade e do seu romantismo. Leitura imperdível para os que não tiveram a oportunidade de ouvir histórias contadas com cadeiras na calçada.

PARA SABER MAIS

CAMPOS, Marta. O desejo e a morte nas memórias de Pedro Nava. Fortaleza: Edições UFC, 1992.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1995.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “A voga do biografismo nativo” http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000300026&script=sci_arttext . Acesso em 14/10/2008
NETTO, Raymundo. Um conto no passado. cadeiras na calçada. 2.ed. Fortaleza: Imprece, 2009.
Aíla Sampaio