Introdução ao Tema da Incerteza da Memória
Em
“Dom Casmurro”, Machado de Assis mergulha na profundidade da psique humana para
expor a fragilidade da memória e suas limitações, explorando a incerteza e
ambiguidade que atravessam as lembranças de Bentinho. Narrado em primeira
pessoa, o romance apresenta um protagonista que, ao revisitar suas memórias,
lança sombras sobre os eventos e as pessoas que compuseram sua vida, em
especial sua amada Capitu. Esse recurso não apenas desperta dúvidas no leitor,
mas coloca em xeque a própria confiabilidade da memória, sugerindo que o
passado, moldado por sentimentos como o ciúme, talvez não seja tão fiel à
realidade.
Bentinho
assume o papel de narrador e testemunha dos eventos que descreve. No entanto,
sua narrativa é impregnada por sentimentos de posse e insegurança,
transformando a memória numa ferramenta que mistura recordação com defesa. Ao
revisitar o passado, Bentinho parece moldá-lo de acordo com suas fragilidades e
inseguranças, interpretando gestos, olhares e situações de maneira a validar
suas suspeitas. A memória, então, se torna um reflexo dos seus temores, ao
invés de um testemunho fiel dos fatos. A incerteza e a seletividade de suas
lembranças fazem com que ele acabe acusando Capitu de infidelidade, embora a
verdade jamais seja clara para o leitor.
Machado
de Assis constrói uma narrativa ambígua, onde o leitor é levado a questionar a
veracidade das memórias de Bentinho. O próprio título do livro, Dom Casmurro,
alude ao estado de isolamento e melancolia do narrador, sugerindo que sua
perspectiva está profundamente marcada por suas experiências emocionais e por
seu ressentimento. A partir disso, o leitor se vê no papel de interpretar ou
até desconfiar daquilo que é narrado, uma vez que a subjetividade e a
influência do ciúme sobre a memória de Bentinho não são disfarçadas. Dessa
forma, Machado de Assis posiciona o leitor não como um receptor passivo, mas
como alguém que deve ativamente questionar e buscar a verdade por trás das
palavras do narrador.
O
ciúme de Bentinho atua como um veneno, que corrompe suas lembranças e distorce
sua percepção da realidade. Com o passar do tempo, ele passa a ver em cada
detalhe um indício de traição, transformando situações triviais em evidências
de uma suposta infidelidade de Capitu. Ao registrar suas memórias, Bentinho
parece ajustar o passado para que ele se conforme a esse ciúme, como se seu
sofrimento justificasse a sua suspeita. Assim, o ciúme é visto não apenas como
um sentimento, mas como uma espécie de distúrbio da memória, que faz com que o
narrador não apenas reviva o passado, mas o remodele para dar sentido ao seu
sofrimento.
Bentinho
não apenas relembra o passado, mas parece criá-lo e recriá-lo conforme escreve
sua história. Ao manipular suas memórias, ele constrói uma versão de si mesmo e
dos outros que lhe permite justificar o ressentimento e a dor que o acompanham.
Machado de Assis utiliza essa manipulação para sugerir que a memória é, em si,
uma forma de ficção. A dúvida que atravessa a narrativa revela que o próprio
narrador talvez nunca tenha conhecido a verdade, sendo prisioneiro de suas
projeções e ressentimentos. Bentinho, então, é uma espécie de autor de sua
própria realidade, manipulando as lembranças para adequá-las ao seu relato
pessoal de sofrimento.
Capitu
é o objeto central da incerteza na memória de Bentinho. Sua figura permanece
ambígua, oscilando entre a fidelidade e a traição, sem que nenhuma das
possibilidades seja confirmada ou refutada pelo narrador. Machado de Assis cria
uma personagem que nunca é totalmente desvendada, e cuja verdadeira natureza
permanece um mistério. Esse enigma é fundamental para a estrutura da obra, pois
reforça a ideia de que a memória não é capaz de captar toda a complexidade dos
sentimentos e intenções. A incerteza sobre Capitu, longe de ser um mero
capricho narrativo, serve como um lembrete da limitação de nossas lembranças e
da impossibilidade de uma verdade absoluta.
Machado
de Assis utiliza a incerteza da memória para tecer uma crítica à sociedade e ao
próprio ato de narrar. Ao desconstruir a confiança que podemos depositar nas memórias
de Bentinho, o autor questiona a validade de qualquer narrativa, seja ela
pessoal, histórica ou literária. Machado antecipa, de certa forma, a ideia de
que toda lembrança é, ao mesmo tempo, uma criação, uma interpretação que
reflete tanto a realidade quanto a subjetividade de quem recorda. Essa
percepção revolucionária torna Dom Casmurro uma obra inovadora e atemporal, que
não apenas explora o ciúme e a traição, mas também o próprio conceito de
verdade e autenticidade no relato.
Em
Dom Casmurro, a incerteza da memória de Bentinho não é apenas um aspecto
psicológico, mas a essência do romance. A dúvida sobre a fidelidade de Capitu
transforma-se numa metáfora para a incapacidade de apreendermos o passado com
precisão absoluta. Machado de Assis, ao explorar essa incerteza, oferece uma
reflexão. O passado não é um registro imutável, mas uma construção que oscila
conforme nossos sentimentos e interpretações. Dessa forma, o romance não é
apenas uma história de ciúme, mas uma profunda meditação sobre a memória, a
verdade e a ficção que moldam a nossa percepção do mundo.
A Alcunha de Dom Casmurro e seu Significado
A
alcunha “Dom Casmurro” revela, desde o título, o caráter introspectivo e
ressentido de Bento Santiago, o protagonista do romance de Machado de Assis. A
expressão “Casmurro” sugere alguém taciturno, fechado, pouco dado a
confidências e muito inclinado à introspecção. Esse traço de personalidade é
essencial para entender a maneira como Bentinho conta sua própria história,
carregada de ressentimento e marcada pela dúvida. Ao adotar esse nome, Bentinho
abraça, quase com ironia, a imagem de alguém que se fechou para o mundo,
preferindo o recolhimento das memórias a qualquer interação ou julgamento
exterior.
A
narrativa de “Dom Casmurro” é um fluxo de recordações, filtradas pelo olhar
desconfiado de Bentinho. O ciúme que ele sente em relação a Capitu e a suposta
traição dela com Escobar formam o cerne do seu ressentimento. A desconfiança
não é apenas um tema central, mas também uma técnica narrativa: Bentinho
reconstrói os eventos com um viés que parece sempre apontar para a confirmação
de suas suspeitas. Essa incerteza projetada sobre os acontecimentos faz com que
o leitor questione a veracidade das lembranças de Bentinho, tornando-se, assim,
cúmplice de sua dúvida.
A
memória em “Dom Casmurro” é subjetiva e, muitas vezes, distorcida pelo
ressentimento e pela dor. Bentinho revisita os eventos de sua juventude e as
relações de sua vida adulta com Capitu e Escobar, porém, cada lembrança é
tingida por sua perspectiva amarga. Machado de Assis usa essa subjetividade
para mostrar como a memória é volúvel, suscetível às interpretações e aos
sentimentos daquele que recorda. Não temos certeza de que a traição de Capitu
realmente ocorreu, mas sabemos que, na mente de Bentinho, essa traição é tão
real quanto seu próprio nome.
O
ciúme de Bentinho não é apenas uma emoção passageira, mas o motor que move a
narrativa. Ele revisita momentos aparentemente insignificantes do passado,
buscando sinais que confirmem suas suspeitas. O ciúme se torna uma lente que
distorce e amplifica, fazendo com que Bentinho veja em Capitu não apenas uma
esposa, mas uma “inimiga” que lhe traiu. Essa emoção é explorada por Machado de
Assis para mostrar como o ciúme é capaz de corromper até as lembranças mais
queridas, transformando-as em fontes de dor e ressentimento.
A
incerteza que permeia “Dom Casmurro” reside na impossibilidade de encontrar uma
“verdade” única. Bentinho nunca é capaz de comprovar, de forma objetiva, a
traição de Capitu, e o leitor nunca recebe uma resposta definitiva sobre o que
realmente aconteceu. Machado de Assis constrói a narrativa de forma ambígua,
mantendo a dúvida como uma constante. A verdade, em “Dom Casmurro”, é ambígua,
não porque os fatos sejam incertos, mas porque a mente de Bentinho distorce e
reconstrói esses fatos de acordo com seu ciúme e sua insegurança.
Um
dos símbolos mais fortes da obra são os “olhos de ressaca” de Capitu, descritos
como profundos e irresistíveis. Para Bentinho, os olhos de Capitu tornam-se uma
representação visual de sua suposta traição, uma metáfora para a capacidade de
ocultar segredos. O significado ambíguo dos olhos revela como Bentinho
interpreta a aparência de Capitu como reflexo de uma culpa nunca comprovada.
Através dos olhos de ressaca, Machado nos mostra a tendência de Bentinho em
projetar suas próprias inseguranças e desconfianças nos outros, tornando-o
vítima de sua própria visão distorcida da realidade.
A
postura de Bentinho ao longo do romance é de afastamento e reclusão, refletindo
o seu isolamento emocional. Sua transformação em “Dom Casmurro” representa a
decisão de se fechar para o mundo, vivendo em função de suas lembranças e
ressentimentos. Este isolamento é tanto físico quanto psicológico; ele se torna
um prisioneiro de sua própria memória e de sua própria versão dos
acontecimentos. Machado de Assis constrói Bentinho como um homem consumido pelo
arrependimento e pela dúvida, alguém que prefere o conforto da solidão ao
confronto com a possível verdade.
Capitu
é, ao mesmo tempo, uma personagem viva e um produto das lembranças de Bentinho.
Como narrador, ele é incapaz de retratá-la de forma imparcial, sempre
inclinando a narrativa para sugerir sua culpa ou, pelo menos, sua suspeição.
Machado de Assis constrói Capitu com essa dualidade, uma figura que se
transforma aos olhos do leitor de acordo com o olhar desconfiado de Bentinho.
Essa dualidade reflete a complexidade do ser humano, e Capitu se torna tanto
uma vítima quanto uma figura enigmática, cujo verdadeiro caráter permanece
oculto.
A
mente de Bentinho é o campo de batalha onde travam-se as lutas entre o desejo
de amar e a certeza do abandono. Sua incapacidade de lidar com a incerteza é
sua maior tragédia. Ele se torna um exemplo da fraqueza humana diante da
dúvida, alguém que prefere viver no amargor das suspeitas a aceitar a
vulnerabilidade da incerteza. Bentinho é, de certo modo, um “eu dividido”: o
jovem apaixonado por Capitu é irreversivelmente destruído pelo homem que, anos
depois, revisita suas memórias com uma lente de ciúme e desconfiança.
O
legado de “Dom Casmurro” reside na complexidade de sua construção psicológica e
na universalidade da dúvida que assola o ser humano. Ao escrever um romance em
que a memória e a subjetividade são os pilares da narrativa, Machado de Assis
propõe uma reflexão sobre a natureza volátil da verdade. Em “Dom Casmurro”, a
memória é traiçoeira, moldada por medos e desejos que nem sempre correspondem
aos fatos. A obra convida o leitor a questionar a realidade construída pelas
memórias, a ponderar se a verdade pode existir sem a influência de nossas
emoções.
O Conflito Religioso e a Promessa ao
Seminário
A
construção de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, repousa em grande parte
sobre o dilema entre a memória e a realidade. Na obra, o narrador Bentinho — ou
“Dom Casmurro”, como é apelidado — procura reconstituir a sua história,
revisitando eventos que moldaram sua vida e seu relacionamento com Capitu. Mas
suas recordações, impregnadas de incertezas e ressentimentos, instigam o leitor
a questionar a veracidade de seu relato.
O
conflito religioso introduzido com a promessa de D. Glória de enviar Bentinho
ao seminário emerge como o primeiro marco decisivo da trama. Esse compromisso,
feito em nome de uma tradição familiar e de uma devoção, impõe-se sobre o
protagonista, que vê seus próprios desejos esmagados por uma expectativa
religiosa que não escolheu. A tensão entre o dever filial e o amor por Capitu
configura um dilema que não apenas molda sua personalidade como também deixa
cicatrizes em sua memória.
A
promessa ao seminário é mais do que um simples fato biográfico; ela representa
a primeira grande fonte de insegurança e ambiguidade na narrativa de Bentinho.
Como narrador, ele está condicionado pelo peso dessa promessa, e seu relato é
repleto de dúvidas que oscilam entre o que recorda e o que deseja lembrar. Esta
incerteza torna-se uma estrutura narrativa, influenciando a interpretação do
leitor e destacando a natureza fragmentada de sua memória. Esse recurso
machadiano não é apenas um estilo, mas uma provocação ao leitor, que precisa
decifrar a verdade por trás de cada lembrança.
D.
Glória, mãe de Bentinho, é uma personagem que encarna tanto a devoção quanto o
controle. Seu amor por Bentinho se expressa na decisão de enviá-lo ao
seminário, vista por ela como uma promessa sagrada que transcende os interesses
pessoais. Essa promessa, feita ainda em sua infância, demonstra o conflito
entre a religião e a autonomia pessoal, além de consolidar em Bentinho uma
noção de destino inescapável. Esse peso se reflete no modo como ele conta sua
história, enfatizando as perdas e sacrifícios em vez das escolhas e vontades
próprias.
No
seminário, Bentinho é apresentado a uma atmosfera de repressão e controle, que
se cristaliza em sua lembrança. A educação religiosa, destinada a moldar sua
vocação e submetê-lo à fé, distancia-o do mundo que deseja — o amor de Capitu,
o convívio com amigos, a liberdade de escolher. Essa experiência reverbera na
construção de suas memórias, resultando numa narrativa onde a culpa e a
obediência se entrelaçam. Bentinho nunca se desvincula completamente dessa
experiência, que permanece como uma sombra nas suas recordações e impregna seu
olhar para o mundo.
A
dicotomia entre o dever e o desejo é uma constante na psique de Bentinho e
interfere diretamente na sua relação com Capitu. A promessa ao seminário não é
apenas uma tradição familiar a ser cumprida, mas um fardo que redefine sua
própria liberdade de escolha. Ele anseia por Capitu, mas o senso de dever o
retém, aprofundando suas dúvidas sobre si mesmo e sobre os outros. Esse
conflito molda a relação dos dois e abre uma brecha para o ciúme e a
desconfiança, que mais tarde influenciarão de modo decisivo sua versão dos
fatos.
A
subjetividade das memórias de Bentinho é uma das maiores provocações de Machado
ao leitor. Ao descrever a jovem Capitu, o famoso “olhar de ressaca” surge como
um elemento ambíguo e enigmático. Esse detalhe se repete de forma obsessiva,
tornando-se quase um símbolo do mistério e da incerteza. O leitor nunca sabe ao
certo se o olhar de Capitu é realmente enigmático ou se é apenas um reflexo das
próprias ansiedades e inseguranças de Bentinho. A memória torna-se, assim, um
espelho distorcido onde o desejo e o medo coexistem, turvando a verdade.
A
promessa de D. Glória, transformada em uma experiência traumática, faz com que
a culpa atravesse a narrativa de Bentinho. Sua memória é construída não apenas
em função do que viveu, mas das interpretações que atribui aos eventos,
especialmente ao amor por Capitu. Ao recontar sua história, Bentinho oscila
entre justificativas e acusações veladas, revelando um narrador marcado pelo
ressentimento e pela incerteza. A promessa ao seminário, dessa forma, é mais do
que uma lembrança; é um dispositivo que justifica seu caráter introspectivo e
suas dúvidas eternas.
Bentinho
busca na escrita uma forma de compreender e, talvez, redimir sua vida. Contudo,
a narrativa também assume um tom de vingança, especialmente em relação a
Capitu. A incerteza em torno de seu amor se mistura com a suspeita de traição,
de modo que a lembrança de Capitu é moldada por traços de suspeita. O amor e o
ressentimento se entrelaçam, resultando numa narrativa que, em vez de
esclarecer, complica ainda mais os eventos. A memória de Bentinho, contaminada
pelo ciúme, é usada para justificar seus sentimentos e para construir uma
história que demoniza Capitu.
Machado
de Assis utiliza a ambiguidade como estratégia para tornar a incerteza da
memória um elemento central da obra. Em “Dom Casmurro”, cada cena e diálogo é
reconstruído sob a ótica de um narrador que não tem plena certeza do que
realmente viveu. Ao escrever, Bentinho não busca uma verdade objetiva, mas uma
narrativa que satisfaça suas emoções e dores. Essa ambiguidade desafia o leitor
a aceitar que não há respostas definitivas sobre o caráter de Capitu ou a
lealdade de Escobar, deixando-o imerso no campo das hipóteses.
A
incerteza da memória em “Dom Casmurro” configura uma das grandes questões da
literatura machadiana. A obra convida o leitor a questionar a veracidade das
lembranças e a aceitar a subjetividade inerente ao ato de recordar. Machado de
Assis oferece um narrador que é, ao mesmo tempo, herói e anti-herói, vítima e
algoz, e que apresenta uma versão dos fatos tão confusa quanto a memória. A
promessa ao seminário, marcada pelo peso do dever religioso, representa o
primeiro passo numa jornada onde a incerteza da memória se torna o verdadeiro
protagonista.
A Influência de José Dias e sua Ambiguidade
Em
“Dom Casmurro”, de Machado de Assis, a figura de José Dias, o agregado da
família Santiago, emerge como um elemento central que molda as percepções e
decisões de Bentinho, especialmente em relação à dúvida que atravessa sua
narrativa. José Dias é uma figura ambígua e manipuladora, cujo papel não apenas
afeta diretamente o protagonista, mas também representa o poder das palavras e
da retórica na criação de memórias e percepções duvidosas. Ele atua como um
sutil catalisador dos eventos, cujas ações indiretas alimentam a crescente
incerteza de Bentinho, ao longo da história.
José
Dias é caracterizado pela sua capacidade de manipulação e, ao mesmo tempo, por
uma postura dúbia, que confunde o leitor quanto às suas intenções. Ele
desempenha uma função de conselheiro informal da família, mas sua relação com
Bentinho vai além do convencional. Em várias passagens, o agregado utiliza um
tom insidioso para convencer ou sugerir ao jovem Bentinho certos cursos de
ação. A partir desse papel ambíguo, suas palavras ressoam nas percepções do
protagonista, moldando a maneira como ele vê as pessoas ao seu redor,
especialmente Capitu.
Esse
personagem se destaca pela habilidade de usar a linguagem para atingir seus
próprios interesses, mesmo que indiretamente. José Dias insere pequenas dúvidas
e insinuações, as quais, à primeira vista, parecem ingênuas ou inofensivas,
mas, com o tempo, sedimentam-se no pensamento de Bentinho, criando uma visão
distorcida e enviesada do mundo. Em diversos momentos, ele sutilmente introduz
conceitos e desconfianças que se tornam bases para as inseguranças do
protagonista, como o presságio de que a vocação religiosa de Bentinho deveria
ser mantida, ou as sugestões de que Capitu poderia não ser uma escolha
adequada.
Ao
explorar a incerteza da memória em “Dom Casmurro”, Machado de Assis utiliza a
ambiguidade de José Dias como uma metáfora para a natureza mutável das
percepções. José Dias não é apenas um personagem manipulador; ele encarna a
capacidade da memória de ser seletiva e influenciável. As palavras ambíguas e
calculadas do agregado são como sementes de dúvida plantadas no solo fértil da
insegurança juvenil. A influência de José Dias ajuda a forjar a base para a
eterna dúvida de Bentinho sobre a fidelidade de Capitu, um dos pontos centrais
do romance. Através de suas insinuações, José Dias faz com que o protagonista
duvide até mesmo de suas próprias lembranças, criando uma visão fragmentada e
instável de suas memórias.
A
ambiguidade de José Dias torna-se, assim, o símbolo da desconfiança e da
incerteza que cruzam a narrativa de “Dom Casmurro”. Esse personagem ilustra
como a memória e a percepção podem ser moldadas por influências externas,
demonstrando que o passado, quando revisitado, está sempre sujeito a
interpretações e reconstruções. Através de José Dias, Machado de Assis propõe
uma reflexão sobre a fragilidade das lembranças e a facilidade com que elas
podem ser manipuladas e distorcidas, seja por terceiros, seja por nós mesmos.
José Dias representa o poder das palavras de moldar não apenas a visão que
temos do presente, mas também a reconstrução do passado, revelando o quanto
nossa memória é vulnerável à interferência e à ambiguidade.
A Paixão por Capitu e sua Significação
Em
“Dom Casmurro”, de Machado de Assis, Capitu é mais do que o objeto do amor de
Bentinho; ela é um enigma que transcende a mera narrativa de uma história de
amor e se torna um símbolo da própria condição feminina. O romance explora a
complexidade das emoções e a fragilidade da memória, questionando até que ponto
somos capazes de interpretar e lembrar com precisão os eventos do passado.
Bentinho, cuja perspectiva centraliza a narrativa, é um narrador marcado pela
dúvida e pela obsessão, e, ao apresentar a história de sua vida e de seu amor
por Capitu, constrói uma relação na qual o desejo se mescla inextricavelmente
com a incerteza.
A
paixão de Bentinho por Capitu surge na infância e carrega consigo a aura de um
amor idealizado. No entanto, essa idealização é impregnada de um intenso ciúme
que revela uma ambiguidade central: Capitu é ao mesmo tempo o objeto de
admiração e de suspeita. Bentinho vê em Capitu algo que lhe é irresistível, mas
também inquietante — a famosa descrição dos “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada” sugere uma personalidade que ele não consegue desvendar por
completo, tornando-a um reflexo da dúvida que lhe assombra. A incerteza em
relação ao caráter de Capitu se infiltra gradualmente na relação dos dois,
convertendo o amor numa experiência quase dolorosa, atravessada pela
desconfiança.
Capitu,
enquanto personagem, representa o que Bentinho não pode controlar ou
compreender. Sua presença é uma projeção dos desejos e temores dele, e Machado
de Assis constrói a personagem de maneira a ampliar as ambiguidades. Capitu é
vista através dos olhos de Bentinho, cuja perspectiva é contaminada pelo medo
de traição e pela insegurança, algo que se intensifica com o nascimento de
Ezequiel, o filho do casal. O suposto adultério de Capitu, que nunca é
comprovado ou negado de forma definitiva, desafia o leitor a confrontar a
fragilidade da memória e da percepção. A dúvida de Bentinho é uma metáfora para
a incerteza que atravessa todas as relações — uma incerteza que, em sua
intensidade, tende a obscurecer a verdade.
Machado
de Assis, ao criar essa incerteza, não se limita a narrar a história de um amor
atormentado pelo ciúme; ele constrói uma alegoria sobre a natureza do amor e da
memória. Bentinho, em sua obsessão por entender Capitu, perde-se numa busca que
nunca pode satisfazer, pois a memória, que ele tenta utilizar como ferramenta
de compreensão, revela-se falha e mutável. É interessante notar como a
narrativa de Bentinho é uma tentativa de reconstruir e justificar suas emoções
e ações, mas a própria estrutura do romance, com suas idas e vindas e com o
estilo introspectivo e fragmentado, sugere que a verdade é inalcançável.
Capitu
torna-se um espelho da subjetividade de Bentinho. Sua “culpa” ou “inocência”
não é algo que possa ser provado, mas é uma questão de perspectiva e de
lembrança. Machado de Assis utiliza essa ambiguidade para questionar até que
ponto podemos realmente conhecer o outro ou mesmo a nós mesmos. A paixão de
Bentinho por Capitu é tão intensa quanto destrutiva, e o sentimento que ele
nutre por ela parece alimentar tanto seu desejo quanto seu temor. A paixão,
para ele, é inseparável da posse, e a suspeita de traição surge como uma ameaça
à sua visão idealizada do amor.
Em
“Dom Casmurro”, Machado de Assis revela a fragilidade das nossas percepções e a
dificuldade de compreender a verdade através de uma memória imperfeita. Ao fim,
o amor por Capitu deixa de ser apenas uma história romântica e se transforma numa
narrativa sobre a impossibilidade de controlar e compreender completamente os
sentimentos humanos e os mistérios do outro.
A Amizade com Escobar e o Papel na Narrativa
Na
complexidade de “Dom Casmurro”, a figura de Escobar emerge como um ponto de
equilíbrio para Bentinho e, ao mesmo tempo, um catalisador de suas mais
profundas inseguranças. No romance de Machado de Assis, Escobar é apresentado
como amigo íntimo de Bentinho, quase uma extensão de si mesmo, tanto no aspecto
de confiança como na afinidade de valores. Contudo, esse vínculo estreito,
longe de fortalecer Bentinho, alimenta uma teia de dúvidas e desconfianças que
o corroem silenciosamente.
A
amizade entre Bentinho e Escobar não é apenas um elemento superficial de
companheirismo; ela carrega nuances que vão muito além da camaradagem comum.
Desde cedo, Escobar assume o papel de confidente e orientador, sendo uma figura
quase fraternal para Bentinho, ao contrário da proximidade amorosa e frágil que
este mantém com Capitu. Com uma postura racional e pragmática, Escobar encarna,
para Bentinho, o oposto de sua personalidade mais emocional e inclinada ao
devaneio. A admiração que Bentinho sente por Escobar beira a devoção, um ideal
que ele busca emular, mas que, paradoxalmente, o deixa ainda mais vulnerável.
Quando
Escobar se aproxima de Capitu, a narrativa ganha uma nova camada de
ambiguidade. Embora não haja nenhuma prova explícita de uma traição entre
Escobar e Capitu, o ciúme de Bentinho é inflamado pela própria incerteza da
memória que ele constrói ao longo do romance. Escobar, em vida, é uma figura de
segurança, mas, em sua morte, transforma-se num espectro que atormenta Bentinho
com dúvidas sobre a lealdade de Capitu. Esse sentimento se agrava pelo fato de
Bentinho não ter meios concretos de confirmar ou negar suas suspeitas, o que o
leva a reinterpretar toda a história sob uma ótica de traição imaginada.
O
papel de Escobar é, portanto, duplo: ele é o amigo leal e também a fonte
involuntária da desconfiança. Bentinho projeta nele uma série de valores e
virtudes que tornam Escobar um exemplo quase inalcançável. Ao mesmo tempo, a
mera possibilidade de que Capitu possa ter se envolvido com Escobar transforma
essa amizade num tormento que consome Bentinho, deixando-o incapaz de aceitar a
memória de seu amigo de forma pura e intacta. No universo machadiano, Escobar é
a prova de como a amizade pode ser distorcida pela insegurança, um reflexo da
fragilidade emocional que Bentinho nunca consegue dominar.
A
morte de Escobar cristaliza sua influência na vida de Bentinho, tornando-o uma
presença fantasmagórica, cujas intenções Bentinho não consegue esquecer ou
compreender totalmente. Essa amizade, que deveria ser um porto seguro, acaba
por se converter numa tempestade de incertezas. A história de Bentinho e
Escobar revela a incapacidade de se lembrar objetivamente, a dificuldade de se
lidar com sentimentos ambíguos e o poder destrutivo das dúvidas quando se
permite que a memória, manipulada pelo ciúme, dite a narrativa pessoal. Em “Dom
Casmurro”, Machado de Assis faz da amizade um terreno fértil para explorar a
incerteza da memória e a natureza instável da confiança.
A Morte de Escobar e o Ponto de Ruptura
No
universo de “Dom Casmurro”, Machado de Assis elabora um estudo sobre a natureza
da memória, a confiança nas próprias percepções e a influência das emoções
sobre as lembranças. A morte de Escobar emerge como um evento definidor, um
ponto de ruptura no qual o luto de Bentinho, suas inseguranças e o início de
uma obsessão pela suposta traição de Capitu se entrelaçam, gerando uma
atmosfera de desconfiança e ambiguidade que envolve o leitor num enigma irresolvível.
Escobar,
amigo próximo e confiável, exerce sobre Bentinho um fascínio que beira a
idolatria. Sua morte, marcada por um afogamento repentino e inesperado, não só
abala a estrutura emocional de Bentinho como cria um vazio que ele parece
incapaz de suportar. A amizade com Escobar sempre fora um alicerce, uma
presença que equilibrava a própria incerteza e insegurança de Bentinho em
relação à sua identidade e a seu papel como marido de Capitu. Com a perda de
Escobar, a relação de Bentinho com Capitu — que até então parecia relativamente
estável — começa a se transformar, ganhando uma sombra de suspeita e
hostilidade. A morte de Escobar funciona como um catalisador, revelando medos e
dúvidas que estavam latentes, ampliando as inquietações de Bentinho.
Este
é o ponto em que se delineia um dos temas centrais da obra: a paternidade de
Ezequiel. A aparência de Ezequiel, que Bentinho julga semelhante à de Escobar,
intensifica suas suspeitas e a convicção de uma traição. Porém, essa suspeita é
construída unicamente pela mente de Bentinho, sem provas concretas, sendo
sustentada pela sua interpretação enviesada dos acontecimentos e pela projeção
de suas inseguranças. Machado de Assis coloca o leitor na posição de cúmplice
da dúvida, não oferecendo certezas sobre o adultério, mas, ao contrário,
sugerindo que a realidade pode ser distorcida pela maneira como a enxergamos.
A
questão da paternidade de Ezequiel, portanto, surge menos como uma dúvida
objetiva sobre os fatos e mais como um reflexo da incerteza que governa a
própria percepção de Bentinho. Ele projeta suas desconfianças e medos sobre a
figura de Capitu, interpretando gestos e olhares que, antes da morte de
Escobar, talvez não lhe causassem qualquer suspeita. A narrativa torna-se,
então, uma exploração dos limites da memória e da confiança na própria mente,
revelando que a verdade pode se esconder nas dobras da interpretação subjetiva,
onde a realidade se dilui nas águas turvas do ressentimento.
É
interessante notar que, a partir do momento da morte de Escobar, Bentinho passa
a desconfiar de Capitu de maneira obsessiva, até mesmo irracional. Ao relembrar
os fatos — ou talvez ao reinterpretá-los — ele molda suas memórias para
sustentar suas desconfianças. Neste ponto, Machado de Assis nos mostra como a
memória pode ser enganadora, influenciada pelas emoções e pelos conflitos
internos. Bentinho, em sua narrativa, manipula os acontecimentos de maneira
que, aos olhos dele, pareçam corroborar a traição, enquanto o leitor é
constantemente lembrado de que esta é uma visão unilateral e potencialmente
distorcida.
Dessa
forma, a morte de Escobar não só define um ponto de ruptura na trama, mas
também simboliza a perda de estabilidade na psique de Bentinho. A dúvida sobre
a paternidade de Ezequiel se transforma na metáfora maior da incerteza que atravessa
a vida do protagonista, questionando até que ponto podemos confiar em nossas
próprias recordações e na integridade de nossas emoções. Machado de Assis,
assim, desafia o leitor a ponderar sobre os limites da verdade subjetiva,
apresentando uma narrativa onde a realidade é construída e desconstruída pela
memória incerta e, muitas vezes, traiçoeira de Bentinho.
Amor, Ciúme e Obsessão
O
romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, é uma obra que desafia o leitor a
questionar a realidade através dos olhos de um narrador extremamente subjetivo
e, possivelmente, pouco confiável. Bentinho, o protagonista, narra a história
de seu amor por Capitu e, ao longo da obra, vemos esse sentimento de carinho
inicial se transformar numa obsessão consumida pelo ciúme. É esse ciúme
patológico que não apenas define a trajetória de Bentinho, mas também configura
uma lente distorcida pela qual ele analisa cada gesto, cada palavra e cada
detalhe da vida de sua amada, levando a uma narrativa fragmentada e incerta.
Bentinho
é um narrador profundamente ambíguo, cuja visão é contaminada pela dúvida e
pelo ressentimento, criando um panorama onde o passado se mistura à imaginação
e a memória se revela falha e contraditória. A subjetividade de Bentinho faz
com que ele não relate os eventos com uma precisão fidedigna, mas sim com um
filtro de desconfiança. Assim, o ciúme, que é o eixo central da trama,
transforma-se numa lente através da qual ele reinterpreta os momentos mais
simples, instigando o leitor a questionar a veracidade de suas conclusões. Como
resultado, Machado de Assis convida o leitor a refletir sobre os riscos de
interpretar o amor e o ciúme como verdades absolutas.
No
começo do romance, o amor entre Bentinho e Capitu é descrito de forma singela e
envolvente. Eles são dois jovens unidos por uma amizade que se transforma em
afeto e, eventualmente, num compromisso amoroso. Entretanto, o receio de
Bentinho em perder Capitu para qualquer outro homem faz com que esse amor seja
manchado pela insegurança. Ele passa a observar Capitu de forma minuciosa, não
mais como um companheiro confiável, mas como alguém que busca identificar
sinais de traição. A partir deste ponto, o romance se torna uma crônica da
incerteza, e Machado utiliza essa desconfiança crescente para retratar o lado
sombrio do ciúme.
A
transformação de Bentinho é sutil, mas intensa. O sentimento de posse e o medo
de perder Capitu para outro homem o levam a enxergar no comportamento dela uma
ameaça constante. Isso revela como o ciúme é um sentimento que se alimenta de
suposições e pode transformar até o mais inocente dos gestos em algo suspeito e
condenável. Bentinho começa a desconfiar de tudo ao seu redor, e é por meio
dessa progressiva desconfiança que ele reconstrói a história de sua vida com
Capitu, marcada pelo que ele acredita ser uma traição.
O
ciúme de Bentinho se transforma numa verdadeira obsessão quando ele se convence
de que Capitu teria traído sua confiança. Ao narrar os acontecimentos, ele
revisita o passado de forma seletiva, encaixando detalhes que corroboram sua
visão distorcida. É nesse ponto que a habilidade de Machado de Assis se
destaca: a incerteza da memória de Bentinho é usada para criar um espaço de
ambiguidade, no qual não sabemos se Capitu realmente cometeu adultério ou se
tudo não passa de uma criação da mente atormentada de seu marido.
O
foco obsessivo de Bentinho nos leva a questionar a natureza da verdade e como a
percepção pode ser manipulada por sentimentos intensos e irracionais. Machado
coloca em evidência a falibilidade da memória e como ela pode ser influenciada
pela emoção, especialmente pelo ciúme. Bentinho, ao narrar sua própria versão
dos fatos, transforma a realidade num reflexo de seus medos e ressentimentos.
Ele é incapaz de separar o amor da insegurança, e sua memória se torna uma ferramenta
para confirmar seus piores temores, ao invés de ser um registro fidedigno do
passado.
O
que torna o ciúme de Bentinho tão trágico é justamente o fato de que ele não
consegue ver além de sua própria perspectiva. Mesmo que Capitu fosse inocente,
sua obsessão pela possibilidade de traição se torna tão poderosa que o impede
de viver em paz. Bentinho destrói o que havia de mais puro em sua vida — o amor
por Capitu — ao substituir esse sentimento pela desconfiança e pelo desejo de
controle. O ciúme patológico é, assim, a verdadeira causa da ruína de Bentinho,
e não uma traição concreta.
No
entanto, Machado de Assis mantém o mistério até o fim: a ambiguidade permanece
e, assim, o leitor se torna parte desse dilema. A dúvida sobre a infidelidade
de Capitu nunca é resolvida, o que obriga o leitor a experimentar a mesma
sensação de incerteza que consome o narrador. Machado habilmente nos coloca numa
posição de constante questionamento, explorando a subjetividade e a
complexidade das relações afetivas.
“Dom
Casmurro” permanece um clássico da literatura justamente por sua habilidade de
explorar temas como o ciúme e a obsessão de forma complexa e universal. A
incerteza da memória, a perspectiva distorcida de Bentinho e a ausência de uma
verdade definitiva transformam o romance numa análise atemporal sobre como o
ciúme pode consumir o ser humano, distorcendo sua percepção da realidade. Machado
de Assis nos convida a refletir sobre como nossas próprias memórias e
percepções podem ser moldadas por sentimentos intensos, questionando até que
ponto podemos confiar em nossas interpretações do passado.
A Metáfora do Olhar de Capitu
No
clássico “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, a “memória” surge como um
território ambíguo e desconcertante, moldado pelas inseguranças e obsessões do
protagonista, Bentinho. A dúvida sobre a fidelidade de Capitu, sua esposa, é um
mistério sem resposta clara, sustentado pela narrativa enviesada de Bentinho,
que transparece em seu relato. Nesse contexto, o “olhar de ressaca” de Capitu é
mais do que uma característica física; é uma metáfora que capsula os mistérios
insondáveis de sua personalidade e da relação entre os dois. O olhar de Capitu
torna-se, assim, o centro simbólico das inquietações e inseguranças de
Bentinho, destacando a ambivalência da memória e das percepções no romance.
Esse
“olhar de ressaca” tem o poder de sugerir tanto atração quanto ameaça. O termo,
cuidadosamente escolhido por Machado, carrega conotações que remetem ao
movimento das ondas do mar, em que a água avança e recua, num movimento de
constante fluxo e refluxo. Esse olhar não apenas fascina Bentinho, mas também o
desconcerta. Ele nunca consegue apreender completamente o que se esconde por
trás da aparência enigmática de Capitu. Mais do que um simples traço físico, o
“olhar de ressaca” torna-se símbolo de uma profundidade que Bentinho se vê
incapaz de compreender. É uma metáfora que se desdobra ao longo do romance e
que captura a complexidade de uma personagem que nunca é inteiramente revelada.
O
impacto desse olhar vai além da mera descrição: ele acentua o sentimento de
insegurança de Bentinho, que projeta em Capitu seus próprios medos e
desconfianças. O “olhar de ressaca” se torna uma lente pela qual ele enxerga e
distorce a realidade. Esse processo de distorção é essencial para a ambiguidade
que atravessa o romance, fazendo o leitor questionar até que ponto as suspeitas
de Bentinho são justificadas ou fruto de uma memória contaminada pela dúvida. A
metáfora do olhar sugere uma resistência ao desvelamento da verdade,
estabelecendo Capitu como uma figura cuja essência permanece elusiva e
inacessível.
Machado
de Assis usa essa metáfora para explorar a fragilidade da memória. Em “Dom
Casmurro”, a memória não é uma coleção de fatos objetivos, mas sim uma
construção cheia de lacunas e distorções, moldada pela perspectiva limitada de
quem recorda. Bentinho, enquanto narrador, está aprisionado por seu próprio
ponto de vista, e o leitor é constantemente convidado a questionar a veracidade
de suas lembranças. A memória de Bentinho, assombrada pela imagem do “olhar de
ressaca”, é repleta de contradições e incertezas, revelando que a busca pela
verdade pode ser minada pela subjetividade e pela vulnerabilidade emocional.
Nesse
jogo de ilusões e incertezas, o leitor é conduzido por uma história que se
recusa a fornecer respostas definitivas. Capitu permanece uma personagem
envolta em mistério, e o “olhar de ressaca” sintetiza essa qualidade fugidia. A
ambiguidade do romance, acentuada pela metáfora do olhar, cria uma experiência
de leitura que é ao mesmo tempo intrigante e desconcertante, onde o leitor,
assim como Bentinho, é confrontado com os limites da compreensão e da memória.
A
incerteza da memória em “Dom Casmurro” se desdobra na figura de Capitu e em seu
enigmático “olhar de ressaca”. Esse olhar torna-se um espelho das inseguranças
de Bentinho, das ambiguidades do amor e das impossibilidades da certeza.
Machado de Assis nos oferece, por meio dessa metáfora, uma reflexão sobre a
natureza da percepção e da lembrança, convidando-nos a considerar que talvez
certas verdades sejam, por natureza, inalcançáveis.
As Diferenças entre Bentinho e Capitu
Machado
de Assis, em “Dom Casmurro”, não apenas tece uma história de amor e traição,
mas constrói uma narrativa em que a memória e a subjetividade de seu narrador,
Bentinho, questionam a própria natureza dos eventos. A estrutura do romance
permite que o leitor se mova entre as lembranças de Bentinho e as
características que ele atribui à sua amada, Capitu, criando uma atmosfera onde
a verdade permanece nebulosa.
Capitu
é uma personagem que fascina e inquieta, marcada por uma ambiguidade que a
torna difícil de decifrar e, justamente por isso, irresistível aos olhos do
narrador. A força de Capitu se expressa em sua segurança, determinação e,
sobretudo, em sua capacidade de adaptação e resiliência. Mesmo sendo jovem,
Capitu demonstra uma maturidade incomum e uma capacidade de lidar com os
desafios e as pressões sociais. Esse contraste com Bentinho não é apenas uma
diferença de personalidade, mas também uma fonte de inquietação e ciúme,
fatores que atravessam a narrativa e plantam as sementes de dúvidas em Bentinho.
Bentinho,
por outro lado, é apresentado como um homem introspectivo e muitas vezes
indeciso, um personagem para quem o amor por Capitu se mistura com uma
crescente desconfiança e insegurança. Seu ciúme é alimentado pela própria
dúvida sobre sua memória e pela personalidade esfuziante de Capitu. Bentinho é
incapaz de enfrentar seus próprios sentimentos sem interpretá-los como evidências
de uma traição, e é por meio dessa hesitação que ele se torna vulnerável a
acreditar em suas suspeitas. A própria construção do romance pela perspectiva
de Bentinho é um testemunho de sua insegurança; ele narra sua história, mas
nunca consegue oferecer provas conclusivas. Sua memória é incerta, seus
sentimentos são nebulosos, e isso se reflete em sua narrativa parcial e
obsessiva.
As
diferenças de personalidade entre Bentinho e Capitu são o cerne do drama
psicológico que Machado constrói. O ciúme, a incerteza e a obsessão se tornam
forças que ditam as ações de Bentinho, transformando-o em um narrador não
confiável, perdido em sua própria narrativa. Capitu, ao ser descrita através do
olhar de Bentinho, ganha contornos míticos e misteriosos, enquanto ele mesmo
não consegue enxergar suas próprias limitações. A cada página, o leitor se
depara com a pergunta: quem é Capitu? O enigma dela reflete a dificuldade de
Bentinho em aceitar as diferenças entre eles e em confiar na própria memória.
Afinal, é ela realmente a figura manipuladora e infiel que ele retrata, ou
Bentinho é vítima de sua própria incerteza e insegurança?
Machado
de Assis deixa essa pergunta sem resposta, dando ao leitor a tarefa de decidir
sobre a natureza de Capitu e a confiabilidade de Bentinho. A obra, portanto,
não é apenas uma história de amor e ciúme, mas um estudo profundo sobre a
fragilidade da memória e a dificuldade de enxergar a realidade quando esta é
filtrada pelas lentes da obsessão.
A Ironia e a Promessa de Felicidade
A
complexidade de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, reside em sua abordagem
sutil e profunda sobre a memória, a dúvida e a interpretação. Narrado por Bento
Santiago, o famoso Casmurro, o romance explora até onde a subjetividade e o
ressentimento podem contaminar a percepção dos fatos. A memória, ao mesmo tempo
falha e seletiva, serve como fio condutor de um enredo em que o leitor se
questiona sobre a verdade do ciúme, das traições e dos desentendimentos.
Capitu, com seus “olhos de ressaca”, emerge como a figura de um mistério que
Bento tenta decifrar, mas cuja exatidão escapa até o último instante. Machado
de Assis usa a incerteza da memória para questionar a própria natureza da
narrativa, desafiando o leitor a interpretar além do narrador.
A
promessa de Capitu, ao dizer “seremos felizes”, revela-se uma trágica ironia ao
longo da obra. Machado de Assis constrói essa frase de forma ambígua: ao mesmo
tempo em que representa o desejo de Capitu por uma vida plena, aponta também
para o presságio de um final desastroso. A promessa carrega, desde o início, um
tom de precariedade e de fragilidade que se materializa na suspeita que vai se
intensificando na mente de Bento. É como se, ao fazer essa afirmação, Capitu
estivesse inscrevendo, de modo sutil, a impossibilidade de controlar os
sentimentos e as percepções alheias. Machado, portanto, explora a promessa de
felicidade como uma ironia mordaz ao destino, e, com isso, revela o quão tênue
é a linha entre o sonho de felicidade e a realidade das paixões.
Bento
Santiago, em sua condição de narrador, é a voz de uma narrativa enviesada. Ao
contar a própria história, ele se coloca como vítima e observa Capitu como um
enigma a ser desvendado, mas sempre através da lente de sua insegurança e
ciúme. A escolha de Machado de Assis por um narrador não confiável é uma
maneira de desestabilizar a leitura: ao longo do romance, é impossível saber ao
certo onde termina o relato verdadeiro e onde começam as projeções de Bento. A
incerteza da memória, que afeta a maneira como Bento lembra dos acontecimentos,
questiona o leitor sobre a veracidade de sua interpretação. Nesse sentido,
Machado desafia o conceito de verdade e torna o leitor cúmplice das dúvidas de
Bento, convidando-o a questionar a própria estrutura da história.
O
ciúme de Bento torna-se o catalisador de sua ruína emocional. Desde jovem, ele
é um personagem suscetível a inseguranças e desconfianças, o que se intensifica
com o relacionamento com Capitu. Machado de Assis magistralmente desenvolve o
ciúme de Bento como uma espécie de praga interior, que corrói suas memórias e
distorce a visão que ele tem da amada. A incerteza em relação à fidelidade de
Capitu parece crescer à medida que Bento revisita o passado, como se suas
lembranças fossem alimentadas por sua angústia e não por fatos concretos. Com
isso, o autor explora a incerteza da memória como um processo psicológico e
revela como a mente é capaz de se auto-sabotar, transformando suspeitas em
convicções e incertezas em verdades absolutas.
A
memória de Bento é seletiva, apagando ou reinterpretando certos momentos que
não se encaixam em sua narrativa de vítima. A maneira como ele recorda Capitu e
seus gestos, especialmente os “olhos de ressaca”, é uma evidência de como ele
constrói uma imagem que reforça suas próprias inseguranças. Ao narrar esses
momentos, Bento parece escolher, inconscientemente, o que melhor sustenta sua
teoria sobre a traição. Essa seleção das memórias é uma forma de autodefesa e
uma tentativa de justificar seus sentimentos. Machado de Assis explora esse mecanismo
psicológico para ilustrar como a memória é moldável e sujeita a interpretações
emocionais, colocando o leitor numa posição ambígua: simpatizar com Bento ou
duvidar dele.
Machado
de Assis não oferece respostas claras, permitindo que o mistério permaneça até
o fim. Essa escolha pela ambiguidade é um recurso que confere um caráter de
suspense ao romance. A incerteza da memória de Bento se torna uma estratégia narrativa
que envolve o leitor numa espécie de investigação psicológica. Em vez de um
mistério a ser resolvido, temos uma dúvida que se aprofunda e se multiplica,
levando a conclusões inconclusivas. Machado desafia, assim, a linearidade de
uma trama resolutiva, criando um romance em que o suspense deriva do que não é
dito ou esclarecido.
Bento
é, em muitos aspectos, um personagem trágico, não apenas pela suposta traição
de Capitu, mas por sua própria incapacidade de lidar com seus sentimentos de
maneira racional. Ele se sabota, permitindo que o ciúme o domine e corroa
qualquer possibilidade de felicidade. Sua busca por respostas e sua recusa em
confiar plenamente em Capitu o leva à ruína. Machado de Assis utiliza essa
autossabotagem para acentuar o caráter trágico do personagem, que está
destinado a fracassar em seu ideal de amor e companheirismo. O autor explora,
assim, a tragicidade como uma consequência inevitável de uma mente dominada por
inseguranças, que acaba destruindo aquilo que deseja proteger.
No
fim, “Dom Casmurro” deixa o leitor com a dúvida. A obra se encerra sem uma
confirmação sobre a culpa ou inocência de Capitu, deixando apenas as memórias
fragmentadas e as interpretações enviesadas de Bento. Essa dúvida é a
verdadeira herança de Bento Santiago, que transfere ao leitor a tarefa de
decidir, ou de aceitar que não há uma verdade absoluta. Machado de Assis, ao
não resolver a questão central do enredo, faz uma reflexão sobre a própria
natureza da memória e da percepção. A incerteza final transforma o romance numa
análise profunda das contradições, onde a memória não é um registro fiel, mas
um reflexo do estado emocional daquele que recorda.
Em
“Dom Casmurro”, Machado de Assis nos convida a explorar o enigma por meio da
incerteza da memória e do efeito destrutivo do ciúme. O romance é um estudo
sobre a falibilidade das lembranças. A memória, incerta e subjetiva, emerge
como uma forma de reconstrução e autossabotagem, tornando o final da história
um enigma tão eterno quanto os olhos de Capitu.
A Ambiguidade da Relação entre Capitu e
Escobar
A
ambiguidade e a incerteza são elementos centrais no romance “Dom Casmurro”, de
Machado de Assis. A narrativa de Bentinho é entremeada de dúvidas e acusações
silenciosas, cuja origem parece estar mais em sua psique atormentada do que em
evidências palpáveis. O ponto focal dessa incerteza é a suposta traição de
Capitu com Escobar, um tema que conduz tanto a tensão da trama quanto a
complexidade moral da obra. A dúvida de Bentinho sobre a fidelidade de sua
esposa e a paternidade de seu filho Ezequiel lança uma sombra que nunca se
dissipa completamente, afetando profundamente sua relação com Capitu e sua
visão de si mesmo.
A
relação entre Capitu e Escobar, embora insinuada por Bentinho como um
adultério, permanece um mistério. Machado de Assis constrói essa ambiguidade
com tal maestria que os leitores, assim como o próprio protagonista, são
incapazes de determinar a veracidade das acusações. De fato, as insinuações de
Bentinho não são baseadas em provas concretas, mas sim em suspeitas e
impressões, como o famoso “olhar de ressaca” de Capitu, que ele interpreta como
indício de dissimulação e traição. Essa percepção é subjetiva, fruto de uma
interpretação que a mente de Bentinho desenvolve e reforça, enquanto ele
procura justificativas para sua crescente desconfiança.
Esse
aspecto de incerteza não apenas caracteriza o ciúme de Bentinho, mas também
questiona a confiabilidade da memória e da perspectiva pessoal. Machado explora
a memória de Bentinho como algo volúvel e manipulável, sugerindo que o
protagonista, ao narrar sua história anos depois dos fatos, pode estar
reinterpretando eventos para justificar sua própria amargura e ressentimento. A
memória, em Dom Casmurro, é como um espelho distorcido, onde as lembranças são
sujeitas a revisões constantes, ao ponto de perderem sua objetividade e se
tornarem indistinguíveis de impressões subjetivas.
A
possibilidade de uma traição nunca comprovada deixa o leitor num estado de
suspense moral. Machado de Assis não oferece uma resolução clara, convidando o
leitor a preencher as lacunas deixadas pelo narrador. Este suspense moral é
essencial para a experiência de leitura, pois permite múltiplas interpretações.
A cada releitura, o público pode encontrar nuances que o levam a questionar
novamente a culpa ou a inocência de Capitu. Essa indefinição é talvez a maior
contribuição de “Dom Casmurro” à literatura brasileira, pois ao recusar uma
resposta definitiva, Machado força o leitor a confrontar suas próprias
concepções sobre verdade, justiça e moralidade.
Bentinho,
em sua busca por um culpado, acaba por trair a si mesmo. Ao desconfiar de
Capitu e interpretá-la à luz de sua própria insegurança, ele revela menos sobre
ela e mais sobre as incertezas que o atormentam. A dúvida, então, torna-se um
espelho da alma de Bentinho, refletindo seu medo e sua incapacidade de lidar
com sentimentos complexos e com a liberdade de Capitu. A incerteza da memória,
a ambiguidade da percepção e a ambivalência moral são os elementos que fazem de
“Dom Casmurro” uma obra-prima, onde o verdadeiro enigma não reside na culpa ou
inocência de Capitu, mas na própria natureza da mente e suas limitações em
captar a realidade com clareza.
O Legado e a Relevância de Dom Casmurro
Em
“Dom Casmurro”, Machado de Assis estabelece uma narrativa que transcende as
barreiras do tempo e do espaço, transformando uma história aparentemente
simples em um enigma literário complexo e inesgotável. Ao abordar temas como a
incerteza da memória e a subjetividade da percepção humana, o autor cria uma
obra que desafia o leitor a questionar a própria noção de verdade. A história
de Bentinho e Capitu vai muito além da suspeita de traição, revelando-se uma
investigação sobre a fragilidade das relações e a dificuldade em discernir
realidade e fantasia.
Machado
conduz o leitor a um labirinto psicológico, onde o ponto de vista enviesado de
Bentinho é a lente que distorce tudo o que é apresentado. Através desse
narrador ambíguo, a obra questiona a veracidade de nossas próprias lembranças,
refletindo sobre como a memória pode ser manipulada pelas emoções, pelo tempo e
pelos desejos pessoais. Este jogo entre verdade e ilusão gera uma das grandes
dúvidas da literatura: afinal, Capitu traiu ou não Bentinho? Contudo, talvez
essa não seja a questão central, mas sim a maneira como os personagens e o
próprio leitor interpretam a suspeita e a incerteza.
Ao
inserir essas complexidades psicológicas e emocionais, Machado de Assis não
apenas critica o ciúme e as tensões do relacionamento entre homem e mulher, mas
também coloca em xeque as próprias bases do conhecimento humano. “Dom Casmurro”
é, assim, uma reflexão sobre a impossibilidade de acesso a uma verdade
objetiva, lembrando-nos de que somos, em grande parte, prisioneiros de nossas
próprias percepções.
Essa
capacidade de Machado de Assis de tratar a subjetividade e a inconsistência da
memória eleva “Dom Casmurro” ao nível das grandes obras universais,
consolidando-o como um marco na literatura. A narrativa permanece viva e
relevante, permitindo múltiplas interpretações e desafiando gerações de
leitores a se questionarem sobre o papel da memória, do ciúme e das armadilhas
da mente. A ambiguidade deliberada e a profunda análise psicológica fazem de “Dom
Casmurro” um legado literário que resiste ao tempo, consagrando Machado de
Assis como um dos mestres do romance psicológico e reafirmando a relevância de
sua obra no cânone literário mundial.
Vicente
Freitas Liot

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