segunda-feira, novembro 04, 2024

DOM CASMURRO: A SUBJETIVIDADE DA MEMÓRIA



Introdução ao Tema da Incerteza da Memória

 

Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis mergulha na profundidade da psique humana para expor a fragilidade da memória e suas limitações, explorando a incerteza e ambiguidade que atravessam as lembranças de Bentinho. Narrado em primeira pessoa, o romance apresenta um protagonista que, ao revisitar suas memórias, lança sombras sobre os eventos e as pessoas que compuseram sua vida, em especial sua amada Capitu. Esse recurso não apenas desperta dúvidas no leitor, mas coloca em xeque a própria confiabilidade da memória, sugerindo que o passado, moldado por sentimentos como o ciúme, talvez não seja tão fiel à realidade.

Bentinho assume o papel de narrador e testemunha dos eventos que descreve. No entanto, sua narrativa é impregnada por sentimentos de posse e insegurança, transformando a memória numa ferramenta que mistura recordação com defesa. Ao revisitar o passado, Bentinho parece moldá-lo de acordo com suas fragilidades e inseguranças, interpretando gestos, olhares e situações de maneira a validar suas suspeitas. A memória, então, se torna um reflexo dos seus temores, ao invés de um testemunho fiel dos fatos. A incerteza e a seletividade de suas lembranças fazem com que ele acabe acusando Capitu de infidelidade, embora a verdade jamais seja clara para o leitor.

Machado de Assis constrói uma narrativa ambígua, onde o leitor é levado a questionar a veracidade das memórias de Bentinho. O próprio título do livro, Dom Casmurro, alude ao estado de isolamento e melancolia do narrador, sugerindo que sua perspectiva está profundamente marcada por suas experiências emocionais e por seu ressentimento. A partir disso, o leitor se vê no papel de interpretar ou até desconfiar daquilo que é narrado, uma vez que a subjetividade e a influência do ciúme sobre a memória de Bentinho não são disfarçadas. Dessa forma, Machado de Assis posiciona o leitor não como um receptor passivo, mas como alguém que deve ativamente questionar e buscar a verdade por trás das palavras do narrador.

O ciúme de Bentinho atua como um veneno, que corrompe suas lembranças e distorce sua percepção da realidade. Com o passar do tempo, ele passa a ver em cada detalhe um indício de traição, transformando situações triviais em evidências de uma suposta infidelidade de Capitu. Ao registrar suas memórias, Bentinho parece ajustar o passado para que ele se conforme a esse ciúme, como se seu sofrimento justificasse a sua suspeita. Assim, o ciúme é visto não apenas como um sentimento, mas como uma espécie de distúrbio da memória, que faz com que o narrador não apenas reviva o passado, mas o remodele para dar sentido ao seu sofrimento.

Bentinho não apenas relembra o passado, mas parece criá-lo e recriá-lo conforme escreve sua história. Ao manipular suas memórias, ele constrói uma versão de si mesmo e dos outros que lhe permite justificar o ressentimento e a dor que o acompanham. Machado de Assis utiliza essa manipulação para sugerir que a memória é, em si, uma forma de ficção. A dúvida que atravessa a narrativa revela que o próprio narrador talvez nunca tenha conhecido a verdade, sendo prisioneiro de suas projeções e ressentimentos. Bentinho, então, é uma espécie de autor de sua própria realidade, manipulando as lembranças para adequá-las ao seu relato pessoal de sofrimento.

Capitu é o objeto central da incerteza na memória de Bentinho. Sua figura permanece ambígua, oscilando entre a fidelidade e a traição, sem que nenhuma das possibilidades seja confirmada ou refutada pelo narrador. Machado de Assis cria uma personagem que nunca é totalmente desvendada, e cuja verdadeira natureza permanece um mistério. Esse enigma é fundamental para a estrutura da obra, pois reforça a ideia de que a memória não é capaz de captar toda a complexidade dos sentimentos e intenções. A incerteza sobre Capitu, longe de ser um mero capricho narrativo, serve como um lembrete da limitação de nossas lembranças e da impossibilidade de uma verdade absoluta.

Machado de Assis utiliza a incerteza da memória para tecer uma crítica à sociedade e ao próprio ato de narrar. Ao desconstruir a confiança que podemos depositar nas memórias de Bentinho, o autor questiona a validade de qualquer narrativa, seja ela pessoal, histórica ou literária. Machado antecipa, de certa forma, a ideia de que toda lembrança é, ao mesmo tempo, uma criação, uma interpretação que reflete tanto a realidade quanto a subjetividade de quem recorda. Essa percepção revolucionária torna Dom Casmurro uma obra inovadora e atemporal, que não apenas explora o ciúme e a traição, mas também o próprio conceito de verdade e autenticidade no relato.

Em Dom Casmurro, a incerteza da memória de Bentinho não é apenas um aspecto psicológico, mas a essência do romance. A dúvida sobre a fidelidade de Capitu transforma-se numa metáfora para a incapacidade de apreendermos o passado com precisão absoluta. Machado de Assis, ao explorar essa incerteza, oferece uma reflexão. O passado não é um registro imutável, mas uma construção que oscila conforme nossos sentimentos e interpretações. Dessa forma, o romance não é apenas uma história de ciúme, mas uma profunda meditação sobre a memória, a verdade e a ficção que moldam a nossa percepção do mundo.

 

A Alcunha de Dom Casmurro e seu Significado

 

A alcunha “Dom Casmurro” revela, desde o título, o caráter introspectivo e ressentido de Bento Santiago, o protagonista do romance de Machado de Assis. A expressão “Casmurro” sugere alguém taciturno, fechado, pouco dado a confidências e muito inclinado à introspecção. Esse traço de personalidade é essencial para entender a maneira como Bentinho conta sua própria história, carregada de ressentimento e marcada pela dúvida. Ao adotar esse nome, Bentinho abraça, quase com ironia, a imagem de alguém que se fechou para o mundo, preferindo o recolhimento das memórias a qualquer interação ou julgamento exterior.

A narrativa de “Dom Casmurro” é um fluxo de recordações, filtradas pelo olhar desconfiado de Bentinho. O ciúme que ele sente em relação a Capitu e a suposta traição dela com Escobar formam o cerne do seu ressentimento. A desconfiança não é apenas um tema central, mas também uma técnica narrativa: Bentinho reconstrói os eventos com um viés que parece sempre apontar para a confirmação de suas suspeitas. Essa incerteza projetada sobre os acontecimentos faz com que o leitor questione a veracidade das lembranças de Bentinho, tornando-se, assim, cúmplice de sua dúvida.

A memória em “Dom Casmurro” é subjetiva e, muitas vezes, distorcida pelo ressentimento e pela dor. Bentinho revisita os eventos de sua juventude e as relações de sua vida adulta com Capitu e Escobar, porém, cada lembrança é tingida por sua perspectiva amarga. Machado de Assis usa essa subjetividade para mostrar como a memória é volúvel, suscetível às interpretações e aos sentimentos daquele que recorda. Não temos certeza de que a traição de Capitu realmente ocorreu, mas sabemos que, na mente de Bentinho, essa traição é tão real quanto seu próprio nome.

O ciúme de Bentinho não é apenas uma emoção passageira, mas o motor que move a narrativa. Ele revisita momentos aparentemente insignificantes do passado, buscando sinais que confirmem suas suspeitas. O ciúme se torna uma lente que distorce e amplifica, fazendo com que Bentinho veja em Capitu não apenas uma esposa, mas uma “inimiga” que lhe traiu. Essa emoção é explorada por Machado de Assis para mostrar como o ciúme é capaz de corromper até as lembranças mais queridas, transformando-as em fontes de dor e ressentimento.

A incerteza que permeia “Dom Casmurro” reside na impossibilidade de encontrar uma “verdade” única. Bentinho nunca é capaz de comprovar, de forma objetiva, a traição de Capitu, e o leitor nunca recebe uma resposta definitiva sobre o que realmente aconteceu. Machado de Assis constrói a narrativa de forma ambígua, mantendo a dúvida como uma constante. A verdade, em “Dom Casmurro”, é ambígua, não porque os fatos sejam incertos, mas porque a mente de Bentinho distorce e reconstrói esses fatos de acordo com seu ciúme e sua insegurança.

Um dos símbolos mais fortes da obra são os “olhos de ressaca” de Capitu, descritos como profundos e irresistíveis. Para Bentinho, os olhos de Capitu tornam-se uma representação visual de sua suposta traição, uma metáfora para a capacidade de ocultar segredos. O significado ambíguo dos olhos revela como Bentinho interpreta a aparência de Capitu como reflexo de uma culpa nunca comprovada. Através dos olhos de ressaca, Machado nos mostra a tendência de Bentinho em projetar suas próprias inseguranças e desconfianças nos outros, tornando-o vítima de sua própria visão distorcida da realidade.

A postura de Bentinho ao longo do romance é de afastamento e reclusão, refletindo o seu isolamento emocional. Sua transformação em “Dom Casmurro” representa a decisão de se fechar para o mundo, vivendo em função de suas lembranças e ressentimentos. Este isolamento é tanto físico quanto psicológico; ele se torna um prisioneiro de sua própria memória e de sua própria versão dos acontecimentos. Machado de Assis constrói Bentinho como um homem consumido pelo arrependimento e pela dúvida, alguém que prefere o conforto da solidão ao confronto com a possível verdade.

Capitu é, ao mesmo tempo, uma personagem viva e um produto das lembranças de Bentinho. Como narrador, ele é incapaz de retratá-la de forma imparcial, sempre inclinando a narrativa para sugerir sua culpa ou, pelo menos, sua suspeição. Machado de Assis constrói Capitu com essa dualidade, uma figura que se transforma aos olhos do leitor de acordo com o olhar desconfiado de Bentinho. Essa dualidade reflete a complexidade do ser humano, e Capitu se torna tanto uma vítima quanto uma figura enigmática, cujo verdadeiro caráter permanece oculto.

A mente de Bentinho é o campo de batalha onde travam-se as lutas entre o desejo de amar e a certeza do abandono. Sua incapacidade de lidar com a incerteza é sua maior tragédia. Ele se torna um exemplo da fraqueza humana diante da dúvida, alguém que prefere viver no amargor das suspeitas a aceitar a vulnerabilidade da incerteza. Bentinho é, de certo modo, um “eu dividido”: o jovem apaixonado por Capitu é irreversivelmente destruído pelo homem que, anos depois, revisita suas memórias com uma lente de ciúme e desconfiança.

O legado de “Dom Casmurro” reside na complexidade de sua construção psicológica e na universalidade da dúvida que assola o ser humano. Ao escrever um romance em que a memória e a subjetividade são os pilares da narrativa, Machado de Assis propõe uma reflexão sobre a natureza volátil da verdade. Em “Dom Casmurro”, a memória é traiçoeira, moldada por medos e desejos que nem sempre correspondem aos fatos. A obra convida o leitor a questionar a realidade construída pelas memórias, a ponderar se a verdade pode existir sem a influência de nossas emoções.    

 

O Conflito Religioso e a Promessa ao Seminário   

 

A construção de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, repousa em grande parte sobre o dilema entre a memória e a realidade. Na obra, o narrador Bentinho — ou “Dom Casmurro”, como é apelidado — procura reconstituir a sua história, revisitando eventos que moldaram sua vida e seu relacionamento com Capitu. Mas suas recordações, impregnadas de incertezas e ressentimentos, instigam o leitor a questionar a veracidade de seu relato.

O conflito religioso introduzido com a promessa de D. Glória de enviar Bentinho ao seminário emerge como o primeiro marco decisivo da trama. Esse compromisso, feito em nome de uma tradição familiar e de uma devoção, impõe-se sobre o protagonista, que vê seus próprios desejos esmagados por uma expectativa religiosa que não escolheu. A tensão entre o dever filial e o amor por Capitu configura um dilema que não apenas molda sua personalidade como também deixa cicatrizes em sua memória.

A promessa ao seminário é mais do que um simples fato biográfico; ela representa a primeira grande fonte de insegurança e ambiguidade na narrativa de Bentinho. Como narrador, ele está condicionado pelo peso dessa promessa, e seu relato é repleto de dúvidas que oscilam entre o que recorda e o que deseja lembrar. Esta incerteza torna-se uma estrutura narrativa, influenciando a interpretação do leitor e destacando a natureza fragmentada de sua memória. Esse recurso machadiano não é apenas um estilo, mas uma provocação ao leitor, que precisa decifrar a verdade por trás de cada lembrança.

D. Glória, mãe de Bentinho, é uma personagem que encarna tanto a devoção quanto o controle. Seu amor por Bentinho se expressa na decisão de enviá-lo ao seminário, vista por ela como uma promessa sagrada que transcende os interesses pessoais. Essa promessa, feita ainda em sua infância, demonstra o conflito entre a religião e a autonomia pessoal, além de consolidar em Bentinho uma noção de destino inescapável. Esse peso se reflete no modo como ele conta sua história, enfatizando as perdas e sacrifícios em vez das escolhas e vontades próprias.

No seminário, Bentinho é apresentado a uma atmosfera de repressão e controle, que se cristaliza em sua lembrança. A educação religiosa, destinada a moldar sua vocação e submetê-lo à fé, distancia-o do mundo que deseja — o amor de Capitu, o convívio com amigos, a liberdade de escolher. Essa experiência reverbera na construção de suas memórias, resultando numa narrativa onde a culpa e a obediência se entrelaçam. Bentinho nunca se desvincula completamente dessa experiência, que permanece como uma sombra nas suas recordações e impregna seu olhar para o mundo.

A dicotomia entre o dever e o desejo é uma constante na psique de Bentinho e interfere diretamente na sua relação com Capitu. A promessa ao seminário não é apenas uma tradição familiar a ser cumprida, mas um fardo que redefine sua própria liberdade de escolha. Ele anseia por Capitu, mas o senso de dever o retém, aprofundando suas dúvidas sobre si mesmo e sobre os outros. Esse conflito molda a relação dos dois e abre uma brecha para o ciúme e a desconfiança, que mais tarde influenciarão de modo decisivo sua versão dos fatos.

A subjetividade das memórias de Bentinho é uma das maiores provocações de Machado ao leitor. Ao descrever a jovem Capitu, o famoso “olhar de ressaca” surge como um elemento ambíguo e enigmático. Esse detalhe se repete de forma obsessiva, tornando-se quase um símbolo do mistério e da incerteza. O leitor nunca sabe ao certo se o olhar de Capitu é realmente enigmático ou se é apenas um reflexo das próprias ansiedades e inseguranças de Bentinho. A memória torna-se, assim, um espelho distorcido onde o desejo e o medo coexistem, turvando a verdade.

A promessa de D. Glória, transformada em uma experiência traumática, faz com que a culpa atravesse a narrativa de Bentinho. Sua memória é construída não apenas em função do que viveu, mas das interpretações que atribui aos eventos, especialmente ao amor por Capitu. Ao recontar sua história, Bentinho oscila entre justificativas e acusações veladas, revelando um narrador marcado pelo ressentimento e pela incerteza. A promessa ao seminário, dessa forma, é mais do que uma lembrança; é um dispositivo que justifica seu caráter introspectivo e suas dúvidas eternas.

Bentinho busca na escrita uma forma de compreender e, talvez, redimir sua vida. Contudo, a narrativa também assume um tom de vingança, especialmente em relação a Capitu. A incerteza em torno de seu amor se mistura com a suspeita de traição, de modo que a lembrança de Capitu é moldada por traços de suspeita. O amor e o ressentimento se entrelaçam, resultando numa narrativa que, em vez de esclarecer, complica ainda mais os eventos. A memória de Bentinho, contaminada pelo ciúme, é usada para justificar seus sentimentos e para construir uma história que demoniza Capitu.

Machado de Assis utiliza a ambiguidade como estratégia para tornar a incerteza da memória um elemento central da obra. Em “Dom Casmurro”, cada cena e diálogo é reconstruído sob a ótica de um narrador que não tem plena certeza do que realmente viveu. Ao escrever, Bentinho não busca uma verdade objetiva, mas uma narrativa que satisfaça suas emoções e dores. Essa ambiguidade desafia o leitor a aceitar que não há respostas definitivas sobre o caráter de Capitu ou a lealdade de Escobar, deixando-o imerso no campo das hipóteses.

A incerteza da memória em “Dom Casmurro” configura uma das grandes questões da literatura machadiana. A obra convida o leitor a questionar a veracidade das lembranças e a aceitar a subjetividade inerente ao ato de recordar. Machado de Assis oferece um narrador que é, ao mesmo tempo, herói e anti-herói, vítima e algoz, e que apresenta uma versão dos fatos tão confusa quanto a memória. A promessa ao seminário, marcada pelo peso do dever religioso, representa o primeiro passo numa jornada onde a incerteza da memória se torna o verdadeiro protagonista.

 

A Influência de José Dias e sua Ambiguidade

 

Em “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, a figura de José Dias, o agregado da família Santiago, emerge como um elemento central que molda as percepções e decisões de Bentinho, especialmente em relação à dúvida que atravessa sua narrativa. José Dias é uma figura ambígua e manipuladora, cujo papel não apenas afeta diretamente o protagonista, mas também representa o poder das palavras e da retórica na criação de memórias e percepções duvidosas. Ele atua como um sutil catalisador dos eventos, cujas ações indiretas alimentam a crescente incerteza de Bentinho, ao longo da história.

José Dias é caracterizado pela sua capacidade de manipulação e, ao mesmo tempo, por uma postura dúbia, que confunde o leitor quanto às suas intenções. Ele desempenha uma função de conselheiro informal da família, mas sua relação com Bentinho vai além do convencional. Em várias passagens, o agregado utiliza um tom insidioso para convencer ou sugerir ao jovem Bentinho certos cursos de ação. A partir desse papel ambíguo, suas palavras ressoam nas percepções do protagonista, moldando a maneira como ele vê as pessoas ao seu redor, especialmente Capitu.

Esse personagem se destaca pela habilidade de usar a linguagem para atingir seus próprios interesses, mesmo que indiretamente. José Dias insere pequenas dúvidas e insinuações, as quais, à primeira vista, parecem ingênuas ou inofensivas, mas, com o tempo, sedimentam-se no pensamento de Bentinho, criando uma visão distorcida e enviesada do mundo. Em diversos momentos, ele sutilmente introduz conceitos e desconfianças que se tornam bases para as inseguranças do protagonista, como o presságio de que a vocação religiosa de Bentinho deveria ser mantida, ou as sugestões de que Capitu poderia não ser uma escolha adequada.

Ao explorar a incerteza da memória em “Dom Casmurro”, Machado de Assis utiliza a ambiguidade de José Dias como uma metáfora para a natureza mutável das percepções. José Dias não é apenas um personagem manipulador; ele encarna a capacidade da memória de ser seletiva e influenciável. As palavras ambíguas e calculadas do agregado são como sementes de dúvida plantadas no solo fértil da insegurança juvenil. A influência de José Dias ajuda a forjar a base para a eterna dúvida de Bentinho sobre a fidelidade de Capitu, um dos pontos centrais do romance. Através de suas insinuações, José Dias faz com que o protagonista duvide até mesmo de suas próprias lembranças, criando uma visão fragmentada e instável de suas memórias.

A ambiguidade de José Dias torna-se, assim, o símbolo da desconfiança e da incerteza que cruzam a narrativa de “Dom Casmurro”. Esse personagem ilustra como a memória e a percepção podem ser moldadas por influências externas, demonstrando que o passado, quando revisitado, está sempre sujeito a interpretações e reconstruções. Através de José Dias, Machado de Assis propõe uma reflexão sobre a fragilidade das lembranças e a facilidade com que elas podem ser manipuladas e distorcidas, seja por terceiros, seja por nós mesmos. José Dias representa o poder das palavras de moldar não apenas a visão que temos do presente, mas também a reconstrução do passado, revelando o quanto nossa memória é vulnerável à interferência e à ambiguidade.

 

A Paixão por Capitu e sua Significação

 

Em “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, Capitu é mais do que o objeto do amor de Bentinho; ela é um enigma que transcende a mera narrativa de uma história de amor e se torna um símbolo da própria condição feminina. O romance explora a complexidade das emoções e a fragilidade da memória, questionando até que ponto somos capazes de interpretar e lembrar com precisão os eventos do passado. Bentinho, cuja perspectiva centraliza a narrativa, é um narrador marcado pela dúvida e pela obsessão, e, ao apresentar a história de sua vida e de seu amor por Capitu, constrói uma relação na qual o desejo se mescla inextricavelmente com a incerteza.

A paixão de Bentinho por Capitu surge na infância e carrega consigo a aura de um amor idealizado. No entanto, essa idealização é impregnada de um intenso ciúme que revela uma ambiguidade central: Capitu é ao mesmo tempo o objeto de admiração e de suspeita. Bentinho vê em Capitu algo que lhe é irresistível, mas também inquietante — a famosa descrição dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” sugere uma personalidade que ele não consegue desvendar por completo, tornando-a um reflexo da dúvida que lhe assombra. A incerteza em relação ao caráter de Capitu se infiltra gradualmente na relação dos dois, convertendo o amor numa experiência quase dolorosa, atravessada pela desconfiança.

Capitu, enquanto personagem, representa o que Bentinho não pode controlar ou compreender. Sua presença é uma projeção dos desejos e temores dele, e Machado de Assis constrói a personagem de maneira a ampliar as ambiguidades. Capitu é vista através dos olhos de Bentinho, cuja perspectiva é contaminada pelo medo de traição e pela insegurança, algo que se intensifica com o nascimento de Ezequiel, o filho do casal. O suposto adultério de Capitu, que nunca é comprovado ou negado de forma definitiva, desafia o leitor a confrontar a fragilidade da memória e da percepção. A dúvida de Bentinho é uma metáfora para a incerteza que atravessa todas as relações — uma incerteza que, em sua intensidade, tende a obscurecer a verdade.

Machado de Assis, ao criar essa incerteza, não se limita a narrar a história de um amor atormentado pelo ciúme; ele constrói uma alegoria sobre a natureza do amor e da memória. Bentinho, em sua obsessão por entender Capitu, perde-se numa busca que nunca pode satisfazer, pois a memória, que ele tenta utilizar como ferramenta de compreensão, revela-se falha e mutável. É interessante notar como a narrativa de Bentinho é uma tentativa de reconstruir e justificar suas emoções e ações, mas a própria estrutura do romance, com suas idas e vindas e com o estilo introspectivo e fragmentado, sugere que a verdade é inalcançável.

Capitu torna-se um espelho da subjetividade de Bentinho. Sua “culpa” ou “inocência” não é algo que possa ser provado, mas é uma questão de perspectiva e de lembrança. Machado de Assis utiliza essa ambiguidade para questionar até que ponto podemos realmente conhecer o outro ou mesmo a nós mesmos. A paixão de Bentinho por Capitu é tão intensa quanto destrutiva, e o sentimento que ele nutre por ela parece alimentar tanto seu desejo quanto seu temor. A paixão, para ele, é inseparável da posse, e a suspeita de traição surge como uma ameaça à sua visão idealizada do amor.

Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis revela a fragilidade das nossas percepções e a dificuldade de compreender a verdade através de uma memória imperfeita. Ao fim, o amor por Capitu deixa de ser apenas uma história romântica e se transforma numa narrativa sobre a impossibilidade de controlar e compreender completamente os sentimentos humanos e os mistérios do outro.

 

A Amizade com Escobar e o Papel na Narrativa

 

Na complexidade de “Dom Casmurro”, a figura de Escobar emerge como um ponto de equilíbrio para Bentinho e, ao mesmo tempo, um catalisador de suas mais profundas inseguranças. No romance de Machado de Assis, Escobar é apresentado como amigo íntimo de Bentinho, quase uma extensão de si mesmo, tanto no aspecto de confiança como na afinidade de valores. Contudo, esse vínculo estreito, longe de fortalecer Bentinho, alimenta uma teia de dúvidas e desconfianças que o corroem silenciosamente.

A amizade entre Bentinho e Escobar não é apenas um elemento superficial de companheirismo; ela carrega nuances que vão muito além da camaradagem comum. Desde cedo, Escobar assume o papel de confidente e orientador, sendo uma figura quase fraternal para Bentinho, ao contrário da proximidade amorosa e frágil que este mantém com Capitu. Com uma postura racional e pragmática, Escobar encarna, para Bentinho, o oposto de sua personalidade mais emocional e inclinada ao devaneio. A admiração que Bentinho sente por Escobar beira a devoção, um ideal que ele busca emular, mas que, paradoxalmente, o deixa ainda mais vulnerável.

Quando Escobar se aproxima de Capitu, a narrativa ganha uma nova camada de ambiguidade. Embora não haja nenhuma prova explícita de uma traição entre Escobar e Capitu, o ciúme de Bentinho é inflamado pela própria incerteza da memória que ele constrói ao longo do romance. Escobar, em vida, é uma figura de segurança, mas, em sua morte, transforma-se num espectro que atormenta Bentinho com dúvidas sobre a lealdade de Capitu. Esse sentimento se agrava pelo fato de Bentinho não ter meios concretos de confirmar ou negar suas suspeitas, o que o leva a reinterpretar toda a história sob uma ótica de traição imaginada.

O papel de Escobar é, portanto, duplo: ele é o amigo leal e também a fonte involuntária da desconfiança. Bentinho projeta nele uma série de valores e virtudes que tornam Escobar um exemplo quase inalcançável. Ao mesmo tempo, a mera possibilidade de que Capitu possa ter se envolvido com Escobar transforma essa amizade num tormento que consome Bentinho, deixando-o incapaz de aceitar a memória de seu amigo de forma pura e intacta. No universo machadiano, Escobar é a prova de como a amizade pode ser distorcida pela insegurança, um reflexo da fragilidade emocional que Bentinho nunca consegue dominar.

A morte de Escobar cristaliza sua influência na vida de Bentinho, tornando-o uma presença fantasmagórica, cujas intenções Bentinho não consegue esquecer ou compreender totalmente. Essa amizade, que deveria ser um porto seguro, acaba por se converter numa tempestade de incertezas. A história de Bentinho e Escobar revela a incapacidade de se lembrar objetivamente, a dificuldade de se lidar com sentimentos ambíguos e o poder destrutivo das dúvidas quando se permite que a memória, manipulada pelo ciúme, dite a narrativa pessoal. Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis faz da amizade um terreno fértil para explorar a incerteza da memória e a natureza instável da confiança.

 

A Morte de Escobar e o Ponto de Ruptura

 

No universo de “Dom Casmurro”, Machado de Assis elabora um estudo sobre a natureza da memória, a confiança nas próprias percepções e a influência das emoções sobre as lembranças. A morte de Escobar emerge como um evento definidor, um ponto de ruptura no qual o luto de Bentinho, suas inseguranças e o início de uma obsessão pela suposta traição de Capitu se entrelaçam, gerando uma atmosfera de desconfiança e ambiguidade que envolve o leitor num enigma irresolvível.

Escobar, amigo próximo e confiável, exerce sobre Bentinho um fascínio que beira a idolatria. Sua morte, marcada por um afogamento repentino e inesperado, não só abala a estrutura emocional de Bentinho como cria um vazio que ele parece incapaz de suportar. A amizade com Escobar sempre fora um alicerce, uma presença que equilibrava a própria incerteza e insegurança de Bentinho em relação à sua identidade e a seu papel como marido de Capitu. Com a perda de Escobar, a relação de Bentinho com Capitu — que até então parecia relativamente estável — começa a se transformar, ganhando uma sombra de suspeita e hostilidade. A morte de Escobar funciona como um catalisador, revelando medos e dúvidas que estavam latentes, ampliando as inquietações de Bentinho.  

Este é o ponto em que se delineia um dos temas centrais da obra: a paternidade de Ezequiel. A aparência de Ezequiel, que Bentinho julga semelhante à de Escobar, intensifica suas suspeitas e a convicção de uma traição. Porém, essa suspeita é construída unicamente pela mente de Bentinho, sem provas concretas, sendo sustentada pela sua interpretação enviesada dos acontecimentos e pela projeção de suas inseguranças. Machado de Assis coloca o leitor na posição de cúmplice da dúvida, não oferecendo certezas sobre o adultério, mas, ao contrário, sugerindo que a realidade pode ser distorcida pela maneira como a enxergamos.

A questão da paternidade de Ezequiel, portanto, surge menos como uma dúvida objetiva sobre os fatos e mais como um reflexo da incerteza que governa a própria percepção de Bentinho. Ele projeta suas desconfianças e medos sobre a figura de Capitu, interpretando gestos e olhares que, antes da morte de Escobar, talvez não lhe causassem qualquer suspeita. A narrativa torna-se, então, uma exploração dos limites da memória e da confiança na própria mente, revelando que a verdade pode se esconder nas dobras da interpretação subjetiva, onde a realidade se dilui nas águas turvas do ressentimento.

É interessante notar que, a partir do momento da morte de Escobar, Bentinho passa a desconfiar de Capitu de maneira obsessiva, até mesmo irracional. Ao relembrar os fatos — ou talvez ao reinterpretá-los — ele molda suas memórias para sustentar suas desconfianças. Neste ponto, Machado de Assis nos mostra como a memória pode ser enganadora, influenciada pelas emoções e pelos conflitos internos. Bentinho, em sua narrativa, manipula os acontecimentos de maneira que, aos olhos dele, pareçam corroborar a traição, enquanto o leitor é constantemente lembrado de que esta é uma visão unilateral e potencialmente distorcida.

Dessa forma, a morte de Escobar não só define um ponto de ruptura na trama, mas também simboliza a perda de estabilidade na psique de Bentinho. A dúvida sobre a paternidade de Ezequiel se transforma na metáfora maior da incerteza que atravessa a vida do protagonista, questionando até que ponto podemos confiar em nossas próprias recordações e na integridade de nossas emoções. Machado de Assis, assim, desafia o leitor a ponderar sobre os limites da verdade subjetiva, apresentando uma narrativa onde a realidade é construída e desconstruída pela memória incerta e, muitas vezes, traiçoeira de Bentinho.

 

Amor, Ciúme e Obsessão

 

O romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, é uma obra que desafia o leitor a questionar a realidade através dos olhos de um narrador extremamente subjetivo e, possivelmente, pouco confiável. Bentinho, o protagonista, narra a história de seu amor por Capitu e, ao longo da obra, vemos esse sentimento de carinho inicial se transformar numa obsessão consumida pelo ciúme. É esse ciúme patológico que não apenas define a trajetória de Bentinho, mas também configura uma lente distorcida pela qual ele analisa cada gesto, cada palavra e cada detalhe da vida de sua amada, levando a uma narrativa fragmentada e incerta.

Bentinho é um narrador profundamente ambíguo, cuja visão é contaminada pela dúvida e pelo ressentimento, criando um panorama onde o passado se mistura à imaginação e a memória se revela falha e contraditória. A subjetividade de Bentinho faz com que ele não relate os eventos com uma precisão fidedigna, mas sim com um filtro de desconfiança. Assim, o ciúme, que é o eixo central da trama, transforma-se numa lente através da qual ele reinterpreta os momentos mais simples, instigando o leitor a questionar a veracidade de suas conclusões. Como resultado, Machado de Assis convida o leitor a refletir sobre os riscos de interpretar o amor e o ciúme como verdades absolutas.

No começo do romance, o amor entre Bentinho e Capitu é descrito de forma singela e envolvente. Eles são dois jovens unidos por uma amizade que se transforma em afeto e, eventualmente, num compromisso amoroso. Entretanto, o receio de Bentinho em perder Capitu para qualquer outro homem faz com que esse amor seja manchado pela insegurança. Ele passa a observar Capitu de forma minuciosa, não mais como um companheiro confiável, mas como alguém que busca identificar sinais de traição. A partir deste ponto, o romance se torna uma crônica da incerteza, e Machado utiliza essa desconfiança crescente para retratar o lado sombrio do ciúme.

A transformação de Bentinho é sutil, mas intensa. O sentimento de posse e o medo de perder Capitu para outro homem o levam a enxergar no comportamento dela uma ameaça constante. Isso revela como o ciúme é um sentimento que se alimenta de suposições e pode transformar até o mais inocente dos gestos em algo suspeito e condenável. Bentinho começa a desconfiar de tudo ao seu redor, e é por meio dessa progressiva desconfiança que ele reconstrói a história de sua vida com Capitu, marcada pelo que ele acredita ser uma traição.

O ciúme de Bentinho se transforma numa verdadeira obsessão quando ele se convence de que Capitu teria traído sua confiança. Ao narrar os acontecimentos, ele revisita o passado de forma seletiva, encaixando detalhes que corroboram sua visão distorcida. É nesse ponto que a habilidade de Machado de Assis se destaca: a incerteza da memória de Bentinho é usada para criar um espaço de ambiguidade, no qual não sabemos se Capitu realmente cometeu adultério ou se tudo não passa de uma criação da mente atormentada de seu marido.

O foco obsessivo de Bentinho nos leva a questionar a natureza da verdade e como a percepção pode ser manipulada por sentimentos intensos e irracionais. Machado coloca em evidência a falibilidade da memória e como ela pode ser influenciada pela emoção, especialmente pelo ciúme. Bentinho, ao narrar sua própria versão dos fatos, transforma a realidade num reflexo de seus medos e ressentimentos. Ele é incapaz de separar o amor da insegurança, e sua memória se torna uma ferramenta para confirmar seus piores temores, ao invés de ser um registro fidedigno do passado.

O que torna o ciúme de Bentinho tão trágico é justamente o fato de que ele não consegue ver além de sua própria perspectiva. Mesmo que Capitu fosse inocente, sua obsessão pela possibilidade de traição se torna tão poderosa que o impede de viver em paz. Bentinho destrói o que havia de mais puro em sua vida — o amor por Capitu — ao substituir esse sentimento pela desconfiança e pelo desejo de controle. O ciúme patológico é, assim, a verdadeira causa da ruína de Bentinho, e não uma traição concreta.

No entanto, Machado de Assis mantém o mistério até o fim: a ambiguidade permanece e, assim, o leitor se torna parte desse dilema. A dúvida sobre a infidelidade de Capitu nunca é resolvida, o que obriga o leitor a experimentar a mesma sensação de incerteza que consome o narrador. Machado habilmente nos coloca numa posição de constante questionamento, explorando a subjetividade e a complexidade das relações afetivas.

“Dom Casmurro” permanece um clássico da literatura justamente por sua habilidade de explorar temas como o ciúme e a obsessão de forma complexa e universal. A incerteza da memória, a perspectiva distorcida de Bentinho e a ausência de uma verdade definitiva transformam o romance numa análise atemporal sobre como o ciúme pode consumir o ser humano, distorcendo sua percepção da realidade. Machado de Assis nos convida a refletir sobre como nossas próprias memórias e percepções podem ser moldadas por sentimentos intensos, questionando até que ponto podemos confiar em nossas interpretações do passado.

 

A Metáfora do Olhar de Capitu

 

No clássico “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, a “memória” surge como um território ambíguo e desconcertante, moldado pelas inseguranças e obsessões do protagonista, Bentinho. A dúvida sobre a fidelidade de Capitu, sua esposa, é um mistério sem resposta clara, sustentado pela narrativa enviesada de Bentinho, que transparece em seu relato. Nesse contexto, o “olhar de ressaca” de Capitu é mais do que uma característica física; é uma metáfora que capsula os mistérios insondáveis de sua personalidade e da relação entre os dois. O olhar de Capitu torna-se, assim, o centro simbólico das inquietações e inseguranças de Bentinho, destacando a ambivalência da memória e das percepções no romance.

Esse “olhar de ressaca” tem o poder de sugerir tanto atração quanto ameaça. O termo, cuidadosamente escolhido por Machado, carrega conotações que remetem ao movimento das ondas do mar, em que a água avança e recua, num movimento de constante fluxo e refluxo. Esse olhar não apenas fascina Bentinho, mas também o desconcerta. Ele nunca consegue apreender completamente o que se esconde por trás da aparência enigmática de Capitu. Mais do que um simples traço físico, o “olhar de ressaca” torna-se símbolo de uma profundidade que Bentinho se vê incapaz de compreender. É uma metáfora que se desdobra ao longo do romance e que captura a complexidade de uma personagem que nunca é inteiramente revelada.

O impacto desse olhar vai além da mera descrição: ele acentua o sentimento de insegurança de Bentinho, que projeta em Capitu seus próprios medos e desconfianças. O “olhar de ressaca” se torna uma lente pela qual ele enxerga e distorce a realidade. Esse processo de distorção é essencial para a ambiguidade que atravessa o romance, fazendo o leitor questionar até que ponto as suspeitas de Bentinho são justificadas ou fruto de uma memória contaminada pela dúvida. A metáfora do olhar sugere uma resistência ao desvelamento da verdade, estabelecendo Capitu como uma figura cuja essência permanece elusiva e inacessível.

Machado de Assis usa essa metáfora para explorar a fragilidade da memória. Em “Dom Casmurro”, a memória não é uma coleção de fatos objetivos, mas sim uma construção cheia de lacunas e distorções, moldada pela perspectiva limitada de quem recorda. Bentinho, enquanto narrador, está aprisionado por seu próprio ponto de vista, e o leitor é constantemente convidado a questionar a veracidade de suas lembranças. A memória de Bentinho, assombrada pela imagem do “olhar de ressaca”, é repleta de contradições e incertezas, revelando que a busca pela verdade pode ser minada pela subjetividade e pela vulnerabilidade emocional.

Nesse jogo de ilusões e incertezas, o leitor é conduzido por uma história que se recusa a fornecer respostas definitivas. Capitu permanece uma personagem envolta em mistério, e o “olhar de ressaca” sintetiza essa qualidade fugidia. A ambiguidade do romance, acentuada pela metáfora do olhar, cria uma experiência de leitura que é ao mesmo tempo intrigante e desconcertante, onde o leitor, assim como Bentinho, é confrontado com os limites da compreensão e da memória.

A incerteza da memória em “Dom Casmurro” se desdobra na figura de Capitu e em seu enigmático “olhar de ressaca”. Esse olhar torna-se um espelho das inseguranças de Bentinho, das ambiguidades do amor e das impossibilidades da certeza. Machado de Assis nos oferece, por meio dessa metáfora, uma reflexão sobre a natureza da percepção e da lembrança, convidando-nos a considerar que talvez certas verdades sejam, por natureza, inalcançáveis.

 

As Diferenças entre Bentinho e Capitu

 

Machado de Assis, em “Dom Casmurro”, não apenas tece uma história de amor e traição, mas constrói uma narrativa em que a memória e a subjetividade de seu narrador, Bentinho, questionam a própria natureza dos eventos. A estrutura do romance permite que o leitor se mova entre as lembranças de Bentinho e as características que ele atribui à sua amada, Capitu, criando uma atmosfera onde a verdade permanece nebulosa.

Capitu é uma personagem que fascina e inquieta, marcada por uma ambiguidade que a torna difícil de decifrar e, justamente por isso, irresistível aos olhos do narrador. A força de Capitu se expressa em sua segurança, determinação e, sobretudo, em sua capacidade de adaptação e resiliência. Mesmo sendo jovem, Capitu demonstra uma maturidade incomum e uma capacidade de lidar com os desafios e as pressões sociais. Esse contraste com Bentinho não é apenas uma diferença de personalidade, mas também uma fonte de inquietação e ciúme, fatores que atravessam a narrativa e plantam as sementes de dúvidas em Bentinho.

Bentinho, por outro lado, é apresentado como um homem introspectivo e muitas vezes indeciso, um personagem para quem o amor por Capitu se mistura com uma crescente desconfiança e insegurança. Seu ciúme é alimentado pela própria dúvida sobre sua memória e pela personalidade esfuziante de Capitu. Bentinho é incapaz de enfrentar seus próprios sentimentos sem interpretá-los como evidências de uma traição, e é por meio dessa hesitação que ele se torna vulnerável a acreditar em suas suspeitas. A própria construção do romance pela perspectiva de Bentinho é um testemunho de sua insegurança; ele narra sua história, mas nunca consegue oferecer provas conclusivas. Sua memória é incerta, seus sentimentos são nebulosos, e isso se reflete em sua narrativa parcial e obsessiva.

As diferenças de personalidade entre Bentinho e Capitu são o cerne do drama psicológico que Machado constrói. O ciúme, a incerteza e a obsessão se tornam forças que ditam as ações de Bentinho, transformando-o em um narrador não confiável, perdido em sua própria narrativa. Capitu, ao ser descrita através do olhar de Bentinho, ganha contornos míticos e misteriosos, enquanto ele mesmo não consegue enxergar suas próprias limitações. A cada página, o leitor se depara com a pergunta: quem é Capitu? O enigma dela reflete a dificuldade de Bentinho em aceitar as diferenças entre eles e em confiar na própria memória. Afinal, é ela realmente a figura manipuladora e infiel que ele retrata, ou Bentinho é vítima de sua própria incerteza e insegurança?

Machado de Assis deixa essa pergunta sem resposta, dando ao leitor a tarefa de decidir sobre a natureza de Capitu e a confiabilidade de Bentinho. A obra, portanto, não é apenas uma história de amor e ciúme, mas um estudo profundo sobre a fragilidade da memória e a dificuldade de enxergar a realidade quando esta é filtrada pelas lentes da obsessão.

 

A Ironia e a Promessa de Felicidade

 

A complexidade de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, reside em sua abordagem sutil e profunda sobre a memória, a dúvida e a interpretação. Narrado por Bento Santiago, o famoso Casmurro, o romance explora até onde a subjetividade e o ressentimento podem contaminar a percepção dos fatos. A memória, ao mesmo tempo falha e seletiva, serve como fio condutor de um enredo em que o leitor se questiona sobre a verdade do ciúme, das traições e dos desentendimentos. Capitu, com seus “olhos de ressaca”, emerge como a figura de um mistério que Bento tenta decifrar, mas cuja exatidão escapa até o último instante. Machado de Assis usa a incerteza da memória para questionar a própria natureza da narrativa, desafiando o leitor a interpretar além do narrador.

A promessa de Capitu, ao dizer “seremos felizes”, revela-se uma trágica ironia ao longo da obra. Machado de Assis constrói essa frase de forma ambígua: ao mesmo tempo em que representa o desejo de Capitu por uma vida plena, aponta também para o presságio de um final desastroso. A promessa carrega, desde o início, um tom de precariedade e de fragilidade que se materializa na suspeita que vai se intensificando na mente de Bento. É como se, ao fazer essa afirmação, Capitu estivesse inscrevendo, de modo sutil, a impossibilidade de controlar os sentimentos e as percepções alheias. Machado, portanto, explora a promessa de felicidade como uma ironia mordaz ao destino, e, com isso, revela o quão tênue é a linha entre o sonho de felicidade e a realidade das paixões.

Bento Santiago, em sua condição de narrador, é a voz de uma narrativa enviesada. Ao contar a própria história, ele se coloca como vítima e observa Capitu como um enigma a ser desvendado, mas sempre através da lente de sua insegurança e ciúme. A escolha de Machado de Assis por um narrador não confiável é uma maneira de desestabilizar a leitura: ao longo do romance, é impossível saber ao certo onde termina o relato verdadeiro e onde começam as projeções de Bento. A incerteza da memória, que afeta a maneira como Bento lembra dos acontecimentos, questiona o leitor sobre a veracidade de sua interpretação. Nesse sentido, Machado desafia o conceito de verdade e torna o leitor cúmplice das dúvidas de Bento, convidando-o a questionar a própria estrutura da história.

O ciúme de Bento torna-se o catalisador de sua ruína emocional. Desde jovem, ele é um personagem suscetível a inseguranças e desconfianças, o que se intensifica com o relacionamento com Capitu. Machado de Assis magistralmente desenvolve o ciúme de Bento como uma espécie de praga interior, que corrói suas memórias e distorce a visão que ele tem da amada. A incerteza em relação à fidelidade de Capitu parece crescer à medida que Bento revisita o passado, como se suas lembranças fossem alimentadas por sua angústia e não por fatos concretos. Com isso, o autor explora a incerteza da memória como um processo psicológico e revela como a mente é capaz de se auto-sabotar, transformando suspeitas em convicções e incertezas em verdades absolutas.

A memória de Bento é seletiva, apagando ou reinterpretando certos momentos que não se encaixam em sua narrativa de vítima. A maneira como ele recorda Capitu e seus gestos, especialmente os “olhos de ressaca”, é uma evidência de como ele constrói uma imagem que reforça suas próprias inseguranças. Ao narrar esses momentos, Bento parece escolher, inconscientemente, o que melhor sustenta sua teoria sobre a traição. Essa seleção das memórias é uma forma de autodefesa e uma tentativa de justificar seus sentimentos. Machado de Assis explora esse mecanismo psicológico para ilustrar como a memória é moldável e sujeita a interpretações emocionais, colocando o leitor numa posição ambígua: simpatizar com Bento ou duvidar dele.

Machado de Assis não oferece respostas claras, permitindo que o mistério permaneça até o fim. Essa escolha pela ambiguidade é um recurso que confere um caráter de suspense ao romance. A incerteza da memória de Bento se torna uma estratégia narrativa que envolve o leitor numa espécie de investigação psicológica. Em vez de um mistério a ser resolvido, temos uma dúvida que se aprofunda e se multiplica, levando a conclusões inconclusivas. Machado desafia, assim, a linearidade de uma trama resolutiva, criando um romance em que o suspense deriva do que não é dito ou esclarecido.  

Bento é, em muitos aspectos, um personagem trágico, não apenas pela suposta traição de Capitu, mas por sua própria incapacidade de lidar com seus sentimentos de maneira racional. Ele se sabota, permitindo que o ciúme o domine e corroa qualquer possibilidade de felicidade. Sua busca por respostas e sua recusa em confiar plenamente em Capitu o leva à ruína. Machado de Assis utiliza essa autossabotagem para acentuar o caráter trágico do personagem, que está destinado a fracassar em seu ideal de amor e companheirismo. O autor explora, assim, a tragicidade como uma consequência inevitável de uma mente dominada por inseguranças, que acaba destruindo aquilo que deseja proteger.

No fim, “Dom Casmurro” deixa o leitor com a dúvida. A obra se encerra sem uma confirmação sobre a culpa ou inocência de Capitu, deixando apenas as memórias fragmentadas e as interpretações enviesadas de Bento. Essa dúvida é a verdadeira herança de Bento Santiago, que transfere ao leitor a tarefa de decidir, ou de aceitar que não há uma verdade absoluta. Machado de Assis, ao não resolver a questão central do enredo, faz uma reflexão sobre a própria natureza da memória e da percepção. A incerteza final transforma o romance numa análise profunda das contradições, onde a memória não é um registro fiel, mas um reflexo do estado emocional daquele que recorda.

Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis nos convida a explorar o enigma por meio da incerteza da memória e do efeito destrutivo do ciúme. O romance é um estudo sobre a falibilidade das lembranças. A memória, incerta e subjetiva, emerge como uma forma de reconstrução e autossabotagem, tornando o final da história um enigma tão eterno quanto os olhos de Capitu.

 

A Ambiguidade da Relação entre Capitu e Escobar

 

A ambiguidade e a incerteza são elementos centrais no romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. A narrativa de Bentinho é entremeada de dúvidas e acusações silenciosas, cuja origem parece estar mais em sua psique atormentada do que em evidências palpáveis. O ponto focal dessa incerteza é a suposta traição de Capitu com Escobar, um tema que conduz tanto a tensão da trama quanto a complexidade moral da obra. A dúvida de Bentinho sobre a fidelidade de sua esposa e a paternidade de seu filho Ezequiel lança uma sombra que nunca se dissipa completamente, afetando profundamente sua relação com Capitu e sua visão de si mesmo.

A relação entre Capitu e Escobar, embora insinuada por Bentinho como um adultério, permanece um mistério. Machado de Assis constrói essa ambiguidade com tal maestria que os leitores, assim como o próprio protagonista, são incapazes de determinar a veracidade das acusações. De fato, as insinuações de Bentinho não são baseadas em provas concretas, mas sim em suspeitas e impressões, como o famoso “olhar de ressaca” de Capitu, que ele interpreta como indício de dissimulação e traição. Essa percepção é subjetiva, fruto de uma interpretação que a mente de Bentinho desenvolve e reforça, enquanto ele procura justificativas para sua crescente desconfiança.

Esse aspecto de incerteza não apenas caracteriza o ciúme de Bentinho, mas também questiona a confiabilidade da memória e da perspectiva pessoal. Machado explora a memória de Bentinho como algo volúvel e manipulável, sugerindo que o protagonista, ao narrar sua história anos depois dos fatos, pode estar reinterpretando eventos para justificar sua própria amargura e ressentimento. A memória, em Dom Casmurro, é como um espelho distorcido, onde as lembranças são sujeitas a revisões constantes, ao ponto de perderem sua objetividade e se tornarem indistinguíveis de impressões subjetivas.

A possibilidade de uma traição nunca comprovada deixa o leitor num estado de suspense moral. Machado de Assis não oferece uma resolução clara, convidando o leitor a preencher as lacunas deixadas pelo narrador. Este suspense moral é essencial para a experiência de leitura, pois permite múltiplas interpretações. A cada releitura, o público pode encontrar nuances que o levam a questionar novamente a culpa ou a inocência de Capitu. Essa indefinição é talvez a maior contribuição de “Dom Casmurro” à literatura brasileira, pois ao recusar uma resposta definitiva, Machado força o leitor a confrontar suas próprias concepções sobre verdade, justiça e moralidade.

Bentinho, em sua busca por um culpado, acaba por trair a si mesmo. Ao desconfiar de Capitu e interpretá-la à luz de sua própria insegurança, ele revela menos sobre ela e mais sobre as incertezas que o atormentam. A dúvida, então, torna-se um espelho da alma de Bentinho, refletindo seu medo e sua incapacidade de lidar com sentimentos complexos e com a liberdade de Capitu. A incerteza da memória, a ambiguidade da percepção e a ambivalência moral são os elementos que fazem de “Dom Casmurro” uma obra-prima, onde o verdadeiro enigma não reside na culpa ou inocência de Capitu, mas na própria natureza da mente e suas limitações em captar a realidade com clareza.

 

O Legado e a Relevância de Dom Casmurro

 

Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis estabelece uma narrativa que transcende as barreiras do tempo e do espaço, transformando uma história aparentemente simples em um enigma literário complexo e inesgotável. Ao abordar temas como a incerteza da memória e a subjetividade da percepção humana, o autor cria uma obra que desafia o leitor a questionar a própria noção de verdade. A história de Bentinho e Capitu vai muito além da suspeita de traição, revelando-se uma investigação sobre a fragilidade das relações e a dificuldade em discernir realidade e fantasia.

Machado conduz o leitor a um labirinto psicológico, onde o ponto de vista enviesado de Bentinho é a lente que distorce tudo o que é apresentado. Através desse narrador ambíguo, a obra questiona a veracidade de nossas próprias lembranças, refletindo sobre como a memória pode ser manipulada pelas emoções, pelo tempo e pelos desejos pessoais. Este jogo entre verdade e ilusão gera uma das grandes dúvidas da literatura: afinal, Capitu traiu ou não Bentinho? Contudo, talvez essa não seja a questão central, mas sim a maneira como os personagens e o próprio leitor interpretam a suspeita e a incerteza.

Ao inserir essas complexidades psicológicas e emocionais, Machado de Assis não apenas critica o ciúme e as tensões do relacionamento entre homem e mulher, mas também coloca em xeque as próprias bases do conhecimento humano. “Dom Casmurro” é, assim, uma reflexão sobre a impossibilidade de acesso a uma verdade objetiva, lembrando-nos de que somos, em grande parte, prisioneiros de nossas próprias percepções.

Essa capacidade de Machado de Assis de tratar a subjetividade e a inconsistência da memória eleva “Dom Casmurro” ao nível das grandes obras universais, consolidando-o como um marco na literatura. A narrativa permanece viva e relevante, permitindo múltiplas interpretações e desafiando gerações de leitores a se questionarem sobre o papel da memória, do ciúme e das armadilhas da mente. A ambiguidade deliberada e a profunda análise psicológica fazem de “Dom Casmurro” um legado literário que resiste ao tempo, consagrando Machado de Assis como um dos mestres do romance psicológico e reafirmando a relevância de sua obra no cânone literário mundial.

 

Vicente Freitas Liot

 

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