quarta-feira, novembro 06, 2024

OLHA, TOMÉ, O TEU PÁSSARO FOI-SE EMBORA: UMA ANÁLISE FUTURISTA DE SOARES FEITOSA

          

Em “Olha, Tomé, o Teu Pássaro Foi-se Embora”, Soares Feitosa explora um cenário futurista e absurdamente cômico: a cela do Carandiru, oitenta séculos à frente. Feitosa usa o ambiente carcerário como um palco de discussões filosóficas e literárias, onde as restrições físicas contrastam com a liberdade dos pensamentos extravagantes de seus personagens. Esta atmosfera claustrofóbica e anacrônica cria uma distorção temporal que desafia os limites da compreensão literária. Este texto e outros mais, capítulos de SALOMÃO.

 

Salomão, o “Salo”, representa o idoso à beira da morte, uma figura que se aproxima do mito do sábio à espera do último ato. O octogenário carrega a força de sua experiência, mas está prestes a se despedir do mundo. O diálogo de Salo é marcado por uma sabedoria resignada, criando uma tensão entre sua fragilidade e o peso de suas palavras, que parecem profetizar o absurdo do mundo ao redor.

 

O Coronel é, sem dúvida, o mais provocador. Descrito como um “escravagista e libertário”, ele personifica uma contradição ambulante. Amante das obras de Saramago, ele acredita piamente na inocência do autor e o defende como santo, conferindo ao texto de Saramago um valor quase espiritual. O Coronel opera em uma lógica que ignora as convenções, estabelecendo uma crítica à visão simplista e literalista dos textos religiosos.

 

Inspirado no personagem de “O Nome da Rosa”, o monge Jorge de Burgos encarna o dogmatismo e a censura. Cego, mas feroz em sua vigilância, ele busca condenar o texto de Saramago, assumindo o papel de inquisidor. Sua cegueira física é uma metáfora clara para a cegueira interpretativa que afeta os que, como ele, julgam as obras apenas pelo conteúdo superficial.

 

O cerne da narrativa se revela quando o Coronel levanta o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” em defesa de Saramago. Ao sustentar que a obra é um instrumento divino para humilhar Satanás, o Coronel inverte a lógica inquisitória. Para ele, Saramago não ataca a fé; ao contrário, ele a subverte para desnudar o Mal. A frase “Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!” torna-se um símbolo da libertação.

 

Como narrador-observador, Djalma Ribeiro Cavalcante é a voz cética e ponderada. Sua perspectiva de bibliotecário confere-lhe um respeito pela palavra escrita, mas também uma apreensão diante da ousadia do Coronel. Ele serve como contraponto crítico, questionando até onde a interpretação pode desafiar o texto original sem o distorcer.

 

Feitosa convoca poetas como Eça, Machado, e Saramago ao tribunal literário do monge Jorge de Burgos. A presença desses escritores evoca a grandeza literária, que agora se vê sujeita a um julgamento absurdo. Esta metáfora coloca em questão o destino das grandes obras quando submetidas a interpretações dogmáticas e anacrônicas.

 

No momento crucial, o Coronel decide “ressuscitar” o poema “Pensamentos Provisórios” de Hildeberto Barbosa Filho. O poema, que expressa “morte”, é lido pelo Coronel como um manifesto de vida. O paradoxo da ressurreição do poema revela a insistência de Feitosa na reinterpretação, mostrando que a literatura é uma entidade viva, apta a transcender seu próprio significado.

 

A ironia do Coronel ao usar o comando “shift”, “windows” e “s” como técnica de leitura reflete a influência da tecnologia na construção da narrativa. Em um cenário futurista, a mecânica de “copiar e colar” torna-se uma metáfora da revisão textual. Ao inserir elementos tecnológicos em sua leitura, Feitosa questiona o papel da mediação digital na subjetividade interpretativa.

 

A narrativa é impregnada de um humor ácido que desarma as críticas ao absurdo da censura. O Coronel, com sua retórica extravagante e sua defesa apaixonada de Saramago, representa uma resistência alegre e anárquica à tirania das interpretações rígidas. O riso, para Feitosa, é um ato de rebeldia.

 

A tentativa do Coronel de ressuscitar o poema de Hildeberto simboliza uma visão da literatura como algo imortal. Esta busca por dar vida ao que é considerado “morto” reflete uma crítica à leitura literal, sugerindo que as obras literárias ganham novas vidas quando reinterpretadas. A morte e ressurreição do poema é uma metáfora da transformação constante que a literatura permite.

 

O enigmático “Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!” simboliza a ideia de uma fé que se desvanece e de uma crença que deve ser reconquistada. Em seu uso ambíguo, Feitosa sugere que o leitor deve, assim como Tomé, buscar ver e compreender além do que é oferecido.

 

O texto de Feitosa é uma meditação sobre a interpretação textual, que aqui se multiplica e fragmenta. As diferentes perspectivas — a do Coronel, do monge e de Djalma — revelam que um texto nunca é unívoco. Ele nos lembra que a interpretação é sempre uma construção subjetiva, muitas vezes mais reveladora de quem interpreta do que do próprio texto.

 

Ao recusar uma conclusão fechada, Feitosa deixa claro que a literatura pertence a quem a lê. Sua narrativa instiga o leitor a tomar parte ativa no processo interpretativo, conferindo ao leitor o poder de moldar o significado das obras. O Coronel, com sua leitura extravagante, simboliza o leitor emancipado que se apropria do texto.

 

A narrativa termina com o narrador suspenso diante do desfecho incerto. Este final aberto sublinha a incerteza inerente à leitura e interpretação, e o poder transformador do texto que, mesmo após oitenta séculos, ainda pode ressuscitar. O enredo revela a ironia de que, em meio ao futuro distópico, a literatura permanece um espaço de liberdade.

 

“Olha, Tomé, o Teu Pássaro Foi-se Embora”, de Soares Feitosa, capítulo de SALOMÃO, conduz o leitor a uma profunda meditação sobre a censura, a liberdade interpretativa e a resistência da literatura frente ao tempo e aos limites impostos. Com um toque de humor, uma pitada de sátira e diversas referências, Feitosa constrói uma crítica incisiva ao dogmatismo, exaltando a literatura como fonte perene de renovação e vitalidade. Para mim, em especial, essa obra guarda um valor inestimável, pois traz uma dedicatória que me enche de orgulho e gratidão — como expressar tamanho reconhecimento?

 

 

Vicente Freitas Liot

 


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