Em
“Olha, Tomé, o Teu Pássaro Foi-se Embora”, Soares Feitosa explora um cenário
futurista e absurdamente cômico: a cela do Carandiru, oitenta séculos à frente.
Feitosa usa o ambiente carcerário como um palco de discussões filosóficas e
literárias, onde as restrições físicas contrastam com a liberdade dos
pensamentos extravagantes de seus personagens. Esta atmosfera claustrofóbica e
anacrônica cria uma distorção temporal que desafia os limites da compreensão
literária. Este texto e outros mais, capítulos de SALOMÃO.
Salomão,
o “Salo”, representa o idoso à beira da morte, uma figura que se aproxima do
mito do sábio à espera do último ato. O octogenário carrega a força de sua
experiência, mas está prestes a se despedir do mundo. O diálogo de Salo é
marcado por uma sabedoria resignada, criando uma tensão entre sua fragilidade e
o peso de suas palavras, que parecem profetizar o absurdo do mundo ao redor.
O
Coronel é, sem dúvida, o mais provocador. Descrito como um “escravagista e libertário”,
ele personifica uma contradição ambulante. Amante das obras de Saramago, ele
acredita piamente na inocência do autor e o defende como santo, conferindo ao
texto de Saramago um valor quase espiritual. O Coronel opera em uma lógica que
ignora as convenções, estabelecendo uma crítica à visão simplista e literalista
dos textos religiosos.
Inspirado
no personagem de “O Nome da Rosa”, o monge Jorge de Burgos encarna o dogmatismo
e a censura. Cego, mas feroz em sua vigilância, ele busca condenar o texto de
Saramago, assumindo o papel de inquisidor. Sua cegueira física é uma metáfora
clara para a cegueira interpretativa que afeta os que, como ele, julgam as
obras apenas pelo conteúdo superficial.
O
cerne da narrativa se revela quando o Coronel levanta o “Evangelho Segundo
Jesus Cristo” em defesa de Saramago. Ao sustentar que a obra é um instrumento
divino para humilhar Satanás, o Coronel inverte a lógica inquisitória. Para
ele, Saramago não ataca a fé; ao contrário, ele a subverte para desnudar o Mal.
A frase “Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!” torna-se um símbolo da
libertação.
Como
narrador-observador, Djalma Ribeiro Cavalcante é a voz cética e ponderada. Sua
perspectiva de bibliotecário confere-lhe um respeito pela palavra escrita, mas
também uma apreensão diante da ousadia do Coronel. Ele serve como contraponto
crítico, questionando até onde a interpretação pode desafiar o texto original
sem o distorcer.
Feitosa
convoca poetas como Eça, Machado, e Saramago ao tribunal literário do monge
Jorge de Burgos. A presença desses escritores evoca a grandeza literária, que
agora se vê sujeita a um julgamento absurdo. Esta metáfora coloca em questão o
destino das grandes obras quando submetidas a interpretações dogmáticas e
anacrônicas.
No
momento crucial, o Coronel decide “ressuscitar” o poema “Pensamentos
Provisórios” de Hildeberto Barbosa Filho. O poema, que expressa “morte”, é lido
pelo Coronel como um manifesto de vida. O paradoxo da ressurreição do poema
revela a insistência de Feitosa na reinterpretação, mostrando que a literatura
é uma entidade viva, apta a transcender seu próprio significado.
A
ironia do Coronel ao usar o comando “shift”, “windows” e “s” como técnica de
leitura reflete a influência da tecnologia na construção da narrativa. Em um
cenário futurista, a mecânica de “copiar e colar” torna-se uma metáfora da
revisão textual. Ao inserir elementos tecnológicos em sua leitura, Feitosa
questiona o papel da mediação digital na subjetividade interpretativa.
A
narrativa é impregnada de um humor ácido que desarma as críticas ao absurdo da
censura. O Coronel, com sua retórica extravagante e sua defesa apaixonada de
Saramago, representa uma resistência alegre e anárquica à tirania das
interpretações rígidas. O riso, para Feitosa, é um ato de rebeldia.
A
tentativa do Coronel de ressuscitar o poema de Hildeberto simboliza uma visão
da literatura como algo imortal. Esta busca por dar vida ao que é considerado
“morto” reflete uma crítica à leitura literal, sugerindo que as obras
literárias ganham novas vidas quando reinterpretadas. A morte e ressurreição do
poema é uma metáfora da transformação constante que a literatura permite.
O
enigmático “Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!” simboliza a ideia de uma
fé que se desvanece e de uma crença que deve ser reconquistada. Em seu uso
ambíguo, Feitosa sugere que o leitor deve, assim como Tomé, buscar ver e
compreender além do que é oferecido.
O
texto de Feitosa é uma meditação sobre a interpretação textual, que aqui se
multiplica e fragmenta. As diferentes perspectivas — a do Coronel, do monge e
de Djalma — revelam que um texto nunca é unívoco. Ele nos lembra que a
interpretação é sempre uma construção subjetiva, muitas vezes mais reveladora
de quem interpreta do que do próprio texto.
Ao
recusar uma conclusão fechada, Feitosa deixa claro que a literatura pertence a
quem a lê. Sua narrativa instiga o leitor a tomar parte ativa no processo
interpretativo, conferindo ao leitor o poder de moldar o significado das obras.
O Coronel, com sua leitura extravagante, simboliza o leitor emancipado que se
apropria do texto.
A
narrativa termina com o narrador suspenso diante do desfecho incerto. Este
final aberto sublinha a incerteza inerente à leitura e interpretação, e o poder
transformador do texto que, mesmo após oitenta séculos, ainda pode ressuscitar.
O enredo revela a ironia de que, em meio ao futuro distópico, a literatura
permanece um espaço de liberdade.
“Olha,
Tomé, o Teu Pássaro Foi-se Embora”, de Soares Feitosa, capítulo de SALOMÃO, conduz
o leitor a uma profunda meditação sobre a censura, a liberdade interpretativa e
a resistência da literatura frente ao tempo e aos limites impostos. Com um
toque de humor, uma pitada de sátira e diversas referências, Feitosa constrói
uma crítica incisiva ao dogmatismo, exaltando a literatura como fonte perene de
renovação e vitalidade. Para mim, em especial, essa obra guarda um valor
inestimável, pois traz uma dedicatória que me enche de orgulho e gratidão —
como expressar tamanho reconhecimento?
Vicente
Freitas Liot

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