Havia, em Acaraú,
um tempo em que o teatro não precisava de cortinas de veludo, nem de palcos
italianos, para incendiar corações. Bastava o brilho de uma mulher: Dona Adélia
Louzada, figura de porte sereno e voz firme, nascida de uma linhagem
antiga de famílias interioranas que misturavam o rigor das tradições com a
ousadia dos sonhos. Filha dos Louzada por casamento e herdeira de um sobrenome
que, na região, já sussurrava histórias de fazendas, memórias de patriarcas e
uma certa vocação para a arte do convívio, Dona Adélia tornara-se, por escolha
do destino e pela força de seu próprio talento, a dama do Teatro de
Acaraú e adjacências.
Dona Adélia Louzada
Casou-se com José
Júlio Louzada, homem respeitado no comércio local e apreciado pela
serenidade com que observava o mundo. Era ele quem sustentava, com generosidade
e orgulho, o impulso criativo da esposa, compreendendo que a chama que a movia
era maior do que a rotina do lar, e que aquela mulher iluminada precisava de um
palco, não apenas de paredes. José Júlio, de ascendência ligada às famílias
tradicionais de pescadores e comerciantes do Baixo Acaraú, tornou-se o
companheiro silencioso de uma epopeia cultural que marcou uma geração inteira.
Foi assim que
nasceu o Recreio Dramático Familiar, espécie de templo
improvisado onde, noite após noite, Acaraú se encontrava com a poesia viva da
cena. Sob a direção exigente de Dona Adélia, os ensaios aconteciam com o rigor
de quem sabia que o teatro é feito de disciplina e de entrega. Seu elenco,
escolhido com cuidado entre jovens talentos e veteranos apaixonados, era mais
do que um grupo teatral: era uma família. Alguns diziam que Dona Adélia tinha
um sexto sentido para encontrar bons intérpretes; outros preferiam acreditar
que era o palco que ganhava vida nas mãos dela.
Seu talento era de
uma organicidade rara. Dona Adélia não representava: ela vivia
cada personagem, fosse a lavadeira resignada, a matriarca altiva, a santa ou a
pecadora. E fazia isso sem jamais perder a postura — aquela postura que muitos,
em Acaraú, insistiam em dizer que tinha herdado de sua própria mãe, mulher de
fibra e palavra firme, que lhe transmitira o apreço pela honra familiar e pelo
poder da fala. A genealogia dos Louzada e das famílias às quais se uniram era
como uma tapeçaria de nomes e histórias que ela, com sua arte, ajudava a
enraizar ainda mais profundamente no imaginário da região.
Nos dias de
espetáculo, o Recreio Dramático Familiar fervilhava. As cadeiras de madeira
rangiam sob o peso da expectativa; as lamparinas, antes da chegada da luz
elétrica mais regular, tremulavam sombras nas paredes; e, quando o pano
improvisado subia, era Dona Adélia quem comandava tudo: gestos, silêncios,
respirações. A plateia — composta de comerciantes, pescadores, professores,
curiosos de toda parte — via-se envolvida por uma força que não se explicava,
apenas se sentia.
Havia quem jurasse
que ela nascera para os grandes palcos de Fortaleza, talvez até do Rio de
Janeiro. Mas Dona Adélia preferia Acaraú. Preferia o cheiro do rio encontrando
o mar, o burburinho das praças, a cumplicidade do público local. Preferia,
sobretudo, ver a cultura de sua terra florescer pelas próprias mãos. E isso fez
com devoção.
Hoje, quando se
fala em teatro no Vale do Acaraú, o nome dela surge como uma estrela inevitável
e luminosa. Não apenas pela qualidade das peças apresentadas, mas pela coragem
de ter criado, quase do nada, uma tradição de palco e afeto. Dona
Adélia Louzada, com seu marido José Júlio e seu elenco dedicado,
plantou uma árvore generosa cujas raízes seguem vivas na memória de todos que a
viram agir — e no coração de quem ouviu contar.
Era, afinal, mais
do que uma atriz: era a guardiã de uma herança. E, em cada gesto seu, Acaraú
inteiro respirava um pouco mais de arte.
Vicente Freitas
Liot
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