A
poesia de Pablo Neruda sempre esteve entrelaçada com a natureza, o humano e o
mítico. Seu olhar, atento ao cotidiano e às forças elementares do mundo,
encontra no Bestiário uma expressão singular: a celebração dos animais como arquétipos
da existência, símbolos de resistência, mistério e beleza. A coletânea,
concebida inicialmente pelo próprio Neruda, em 1964, e, posteriormente,
resgatada por Giuseppe Bellini, revela-se um compêndio de homenagens e
contemplações, um cântico às criaturas que povoam o imaginário poético do autor
chileno.
Desde
suas Odes Elementares, Neruda demonstrou fascínio pelo ordinário e pelo
extraordinário, transformando objetos e seres do mundo natural em elementos de
lirismo. No Bestiário, essa inclinação ganha contornos mais específicos. Cada
poema é um retrato, uma ode a um ser vivo, visto não apenas como entidade
biológica, mas como símbolo de uma força vital que atravessa a história e a
paisagem. O poeta não se limita à observação; ele dialoga, incorpora-se ao
outro, torna-se, ele mesmo, animal.
O
cavalo, por exemplo, não é apenas um ser majestoso, mas um símbolo de
resistência e liberdade. O elefante evoca a memória ancestral da terra,
carregando em si o peso do tempo e da sabedoria. A borboleta, por sua vez,
representa a efemeridade da beleza e a transitoriedade da existência. A aranha,
tecendo pacientemente sua teia, torna-se metáfora da criação artística e da
fragilidade dos sonhos humanos.
O
tom das odes varia entre a exaltação e a melancolia, características essenciais
na poética nerudiana. O albatroz que morre na areia das praias chilenas remete
à condição do poeta como estrangeiro em sua própria terra, um exílio emocional
que se reflete na natureza ao redor. Da mesma forma, o gato é descrito com a
indiferença e o orgulho próprios de quem compreendeu a vida em sua essência
mais profunda, tornando-se mestre do poeta.
A
escolha dos animais é reveladora do olhar de Neruda sobre o mundo. Ele não se
volta apenas para as criaturas tradicionalmente glorificadas pela literatura,
mas inclui também o porco e o sapo, seres que muitas vezes são marginalizados
ou desprezados. Ao fazer isso, o poeta desafia hierarquias e celebra a
dignidade de cada forma de vida, reforçando sua visão humanista e inclusiva.
A
linguagem, sempre vibrante e imagética, confere aos poemas uma densidade
sensorial. Neruda não descreve apenas os animais; ele os sente, os incorpora em
sua existência. O Bestiário não é um mero catálogo zoológico em versos, mas um
convite ao leitor para enxergar o mundo com outros olhos, para reconhecer a
poesia que se esconde nas menores manifestações da vida.
Há,
também, uma dimensão política subjacente às odes. O poeta, que ao longo de sua
trajetória engajou-se nas causas sociais e políticas de seu tempo, encontra nos
animais metáforas para a condição humana. O cavalo pode ser o trabalhador
incansável, o elefante, a memória coletiva dos povos, a borboleta, a liberdade
efêmera. Essas leituras adicionam camadas de significado à obra, permitindo
interpretações múltiplas e enriquecedoras.
A edição, que conta com um prefácio da poeta cubana Reina María Rodríguez e tradução do poeta José Eduardo Degrazia, (Degrazia publicou livros de contos, poesia, novela e infantojuvenil. Como tradutor do espanhol e do italiano, publicou 14 livros, entre eles, 9 de Pablo Neruda), é um testemunho do impacto duradouro da obra de Neruda. O trabalho de Degrazia na tradução dos poemas reflete um respeito profundo pela intenção original do autor, ao mesmo tempo que possibilita uma nova apreciação desse conjunto poético.
A
força gráfica mencionada na introdução da edição se deve, em grande parte, à
maneira como Neruda constrói suas imagens. Seus versos são quase escultóricos,
moldando cada animal em palavras que reverberam no imaginário do leitor. Há um
lirismo palpável, uma materialidade na linguagem que transforma cada poema em
um quadro vivo.
A
musicalidade dos versos também merece destaque. O coaxar dos sapos, o voo das
borboletas, o trotar dos cavalos — tudo é transposto para o papel com um ritmo
que ressoa os sons da natureza. Essa musicalidade reforça a sensação de que os
poemas são não apenas descrições, mas celebrações, quase cânticos ritualísticos.
O
Bestiário, de Neruda, se insere em uma tradição literária que remonta aos
bestiários medievais, mas ao contrário destes, não busca classificar os animais
em categorias morais ou simbólicas rígidas. Em vez disso, Neruda os observa em
sua liberdade, em seu mistério, e os deixa falar por si mesmos.
A
relação entre o poeta e os animais, no entanto, não é meramente contemplativa.
Há um desejo de fusão, de aprendizado. Neruda quer ser albatroz, quer dialogar
com os porcos, quer aprender a paciência e a altivez dos gatos. Esse anseio de
aproximação reflete uma inquietação existencial e uma busca por pertencimento a
algo maior do que o humano.
O
caráter panteísta da poesia de Neruda encontra no Bestiário uma de suas
expressões mais belas. O poeta dissolve as fronteiras entre homem e natureza,
celebrando a interconexão de todas as formas de vida. Esse sentimento de
unidade cósmica, tão presente em sua obra, adquire aqui uma concretude
singular.
Ao
final da leitura, o leitor não apenas conhece os animais descritos, mas sente
que os encontrou de maneira íntima e profunda. O Bestiário não é apenas uma
coletânea de poemas sobre animais; é um testemunho do olhar de Neruda sobre o
mundo, uma reafirmação de sua crença na poesia como forma de celebrar a vida em
todas as suas manifestações.
Vicente
Freitas Liot
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