– E assim, se foi formando, e se vai formando a
língua. Uma língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há
certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que
é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
– Que vem a ser os clássicos? – perguntou a menina.
– Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos, como o Padre Antonio Vieira, Frei Luis de Sousa, o Padre Manuel Bernardes e outros. Para os carrancas, quem não escreve como eles está errado.
Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer uma coisa, aqui dizem outra. BORRACHO, por exemplo, aqui quer dizer bêbedo; lá quer dizer filhote de pombo – vejam que diferença! ARREAR, aqui, é selar um animal; lá é enfeitar, adornar.
– Então lá há moças bem arreadas? – perguntou Emília.
– Sim – respondeu a velha. Uma dama bem arreada não espanta a ninguém lá do outro lado. Aqui, moço significa jovem; lá significa serviçal, criado.
Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui todos dizem PEITO; lá, todos dizem PAITO, embora escrevam a palavra da mesma maneira. Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO. Aqui se diz VERÃO e lá se diz V’RÃO.
– Também eles dizem por lá VATATA, VACALHAU, BACA, VESOURO – lembrou Pedrinho.
– Sim, o povo de lá troca muito o V pelo B e vice-versa.
– Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha – concluiu Narizinho.
– Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra – as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria.
A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver.
– Nós vamos ver? – exclamou Narizinho, dando uma risada. Então pensa que somos como a senhora, que vive toda a vida e mais séculos e séculos?
– Vocês também viverão séculos e séculos por meio de seus futuros filhinhos e netos e bisnetos – replicou a velha.
– Menos eu! – gritou Emília. Já me casei e me arrependi bastante. Felizmente não tive filhos – e como não pretendo casar-me de novo, não deixarei “descendência” nesse mundo...
– E se aparecer um grande pirata, como aquele Capitão Gancho, da história do Peter Pan? – cochichou Narizinho no ouvido dela.
– Isso é outro caso... – respondeu Emília, cujo sonho sempre fora ser esposa de um grande pirata – para “mandar num navio...”
Monteiro Lobato, Emília no País da Gramática, Editora Brasiliense, pp. 100-102.
– Que vem a ser os clássicos? – perguntou a menina.
– Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos, como o Padre Antonio Vieira, Frei Luis de Sousa, o Padre Manuel Bernardes e outros. Para os carrancas, quem não escreve como eles está errado.
Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer uma coisa, aqui dizem outra. BORRACHO, por exemplo, aqui quer dizer bêbedo; lá quer dizer filhote de pombo – vejam que diferença! ARREAR, aqui, é selar um animal; lá é enfeitar, adornar.
– Então lá há moças bem arreadas? – perguntou Emília.
– Sim – respondeu a velha. Uma dama bem arreada não espanta a ninguém lá do outro lado. Aqui, moço significa jovem; lá significa serviçal, criado.
Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui todos dizem PEITO; lá, todos dizem PAITO, embora escrevam a palavra da mesma maneira. Aqui se diz TENHO e lá se diz TANHO. Aqui se diz VERÃO e lá se diz V’RÃO.
– Também eles dizem por lá VATATA, VACALHAU, BACA, VESOURO – lembrou Pedrinho.
– Sim, o povo de lá troca muito o V pelo B e vice-versa.
– Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha – concluiu Narizinho.
– Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra – as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria.
A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver.
– Nós vamos ver? – exclamou Narizinho, dando uma risada. Então pensa que somos como a senhora, que vive toda a vida e mais séculos e séculos?
– Vocês também viverão séculos e séculos por meio de seus futuros filhinhos e netos e bisnetos – replicou a velha.
– Menos eu! – gritou Emília. Já me casei e me arrependi bastante. Felizmente não tive filhos – e como não pretendo casar-me de novo, não deixarei “descendência” nesse mundo...
– E se aparecer um grande pirata, como aquele Capitão Gancho, da história do Peter Pan? – cochichou Narizinho no ouvido dela.
– Isso é outro caso... – respondeu Emília, cujo sonho sempre fora ser esposa de um grande pirata – para “mandar num navio...”
Monteiro Lobato, Emília no País da Gramática, Editora Brasiliense, pp. 100-102.
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