Andrea Trompczynski |
Comecei, então, nas incursões que iriam mudar minha vida para sempre. O
primeiro lugar em que fui foi uma antiga sala de cinema, onde conheci um
daqueles que hoje é meu grande amigo. Uma amizade que formou-se aos poucos,
noite após noite, da sala aos e-mails, às antigas cartas, seladas e
carimbadas, daí para os telefonemas e, a chamada pelos especialistas, vida
real. Tremíamos os dois, habituados ao quarto fechado e o computador, no
primeiro encontro. Rimos, achando tudo aquilo muito nonsense e
nos abraçamos numa rodoviária de cidade do interior. Um abraço que dura até
hoje.
O irmão insistia, aos brados, que eu precisava conhecer aquele site de
nome estranho, o Digestivo Cultural. Relutei, por um tempo, afeita
que estava ao bate-papo virtual, como todos já estivemos um dia. Cultural? Eu
pensava que haveria lá um bando de senhores resmungões escrevendo didaticamente
sobre as artes, a cultura. Curiosa, já em 2001, num certo dia em que meus
amigos ainda não haviam chegado na sala para que matássemos novamente a
pedradas o cinema iraniano ou para que pudéssemos incensar Barbarella, nas delícias de pensar sermos os donos de toda a verdade, entrei pela
primeira vez neste que seria o meu primeiro guia em meio a uma cegueira da qual
eu ainda não tinha conhecimento.
Li um texto do Julio Daio Borges e comentei; qual não foi minha surpresa
quando ele, rapidamente, respondeu. Doce e inocentemente, como eu, à época.
Conversávamos os dois, jovens e ainda um pouco idealistas, sobre livros e a
vontade de escrever. Ah, então era assim? Poderíamos conversar com o autor?
Discordar, trocar idéias e opiniões? Que novidade! Para mim, autores eram
aquelas figuras casmurras das noites de autógrafos, e, pobrezinha de mim, eu
nem sequer imaginava, à época, que havia autores da minha idade. Comecei a ler
os colunistas, primeiro, o Alexandre Soares Silva, já falando em livros que iria publicar,
ensinando-me os primeiros passos para uma ironia que me acompanha até hoje. O
Alexandre falava, era lei; dizia que leu, eu lia. Ouviu? Ah, eu ouvia. Demorei
para, lembro-me, ter a coragem de discordar do Alexandre.
O Fabio Danesi Rossi. Minha relação com ele, como leitora contumaz,
daria um capítulo, meus caros, um capítulo! Incitava-me a discordar da minha
professora de literatura, "meu gosto pela leitura sobreviveu aos professores
de literatura". Ver que meu santo ― minha professora era, na época, um
ídolo ― tinha pés-de-barro? Deus! E era ateu! E falava isso assim, como se isso
fosse um "bom dia", o que, para mim, acostumada à vidinha católica
provinciana, era um palavrão. Hoje, sem fé que sou, o que causa a estranheza e
olhares piedosos das pessoas, o releio, compreendendo.
E como releio... Releio, quase que diariamente o Paulo Polzonoff Jr. Vi aquela fotografia, em sua apresentação,
que não é mais a mesma de hoje, do menino de semblante triste, óculos, sentado
à uma mesa de um bar. A fotografia era de uma solidão tremenda. Se alguém me
perguntasse hoje qual meu texto favorito, direi hoje e diria sempre que foi o
"Está Consumado", coluna histórica do Digestivo
Cultural, que, à época, causou frisson nos mais
moralistas, caindo como uma bomba: "este texto não é recomendado para quem
faz uso contínuo de antidepressivos". E seguia o Paulo me guiando pelo
labirinto da solidão, pelo labirinto da descoberta de nós mesmos.
Luis Eduardo Matta, meu caríssimo. Quanto devo à você. Imaginem vocês
se a clássica menininha algum dia gritaria contra James Joyce, imaginem vocês
se a conservadora guria algum dia defenderia o direito de ler
escondido Agatha Christie. Não mais colocar sobre o exemplar de algum livro
do Frederick Forsyth uma capa falsa de Ulisses, para
levar ao parque e impressionar as senhoras bordadeiras. Ao LEM, obrigada. Hoje
eu leio você sem culpa. E posse falar que leio você sem medo. Tenho até disso
um certo orgulho iconoclasta. Posso lhe escrever agora, ou deixar um scrap no
seu Orkut, contando-lhe o único desejo verdadeiro que tenho hoje: por favor,
não mate a Evelyn Wakim! Que morra oLeopold Bloom, mas não a Evelyn Wakim. E eu sei que você irá
responder.
Ontem, eu procurava meu próprio nome no Google, sim, sim, tenho essa
torpeza de espírito. Num fórum havia um leitor um pouco empolgado que me colocava
como parte de "uma geração da internet brasileira". Juntamente com
todos que citei acima. Exagero, é claro, já que eu mesma escrevi pouco por
perder muito tempo andando pelo mundo procurando a mim mesma. No mundo, eu
pedia ao querido irmão que me enviasse as páginas impressas do Digestivo
Cultural. E eu as lia, desesperada pela distância que separava-me de meu
computador e meu riquíssimo "quarto de livros", em beliches e camas e
sofás de casas de amigos pelo mundo.
Falaremos do Digestivo, todos nós, daqui a muitos anos.
Começamos quase todos aqui, seja em colunas, em participações antigas, links para
os blogs, comentários que valem por uma coluna. Uma geração que se
iniciou há dez anos, vivenciamos o boom da internet,
aprendemos a pensar, criticar, discutir. Olhando para trás, para esses dez
anos, concordo com o empolgado leitor: faço, sim, parte dessa geração. Ah,
amigo verdadeiro e real, amores que morreram tragicamente, inimigos fiéis e
até, pasmem!, uma filha.
Sento-me aqui em frente ao meu computador. Leio, converso, amo, vivo.
Quem disse que isso é vida virtual?
Andrea Trompczynski ® 2011
Andrea Trompczynski ® 2011
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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim.
Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição
de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes
Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais
difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música,
sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era
o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a
humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres
perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e
hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a
natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando
conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse
muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair
do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o
mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros.
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