PROJETO DE PREFÁCIO
Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.
Mario Quintana
DO AMOROSO ESQUECIMENTO
Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
Mario Quintana - Espelho Mágico
Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
Mario Quintana - Espelho Mágico
AH! OS RELÓGIOS
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...
Mario Quintana - A Cor do Invisível
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...
Mario Quintana - A Cor do Invisível
DAS UTOPIAS
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!
Mario Quintana - Espelho Mágico
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!
Mario Quintana - Espelho Mágico
POEMINHO DO CONTRA
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!
Mario Quintana
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!
Mario Quintana
O SILÊNCIO
Convivência entre o poeta e o leitor, só no
silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não
quer saber de terceiros, n ão quer que interpretem, que cantem, que dancem um
poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo
EU ESCREVI UM POEMA TRISTE
Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
Mario Quintana - A Cor do Invisível
SINÔNIMOS
Esses que pensam que existem sinônimos,
desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.
Mario Quintana (Caderno H)
CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO
Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com a tua boca fresca de
madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel, sem
compreender
nada, numa alegria atônita...
nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho
inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.
Aonde viessem pousar os passarinhos.
Mario Quintana
POEMA
Mas
por que datar um poema?
Os
poetas que põem datas nos seus poemas
me
lembram essas galinhas que carimbam os ovos...
Mario Quintana (Caderno H)
RECORDO AINDA
Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...
Mario Quintana
Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...
Mario Quintana
O TRÁGICO DILEMA
Quando alguém pergunta a um autor o que este
quis dizer, é porque um dos dois é burro.
Mario Quintana (Caderno H)
BILHETE
Se tu me amas,
ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,
.....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.
Mario Quintana
Se tu me amas,
ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,
.....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.
Mario Quintana
OS POEMAS
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mario Quintana - Esconderijos do Tempo
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mario Quintana - Esconderijos do Tempo
SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS
A vida é uns deveres que nós trouxemos para
fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente ...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente ...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Mario Quintana ( In: Esconderijo do tempo)
O amor é quando a gente mora um no outro.
Mario Quintana
SIMULTANEIDADE
- Eu
amo o mundo!
Eu
detesto o mundo!
Eu
creio em Deus!
Deus é
um absurdo!
Eu vou
me matar!
Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.
- Você é louco?
- Não, sou poeta.
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo (Poesia
Completa, p. 535)
ESPELHO
Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste...
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste...
Mario Quintana
Um bom poema é aquele que nos dá a impressão
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo
A RUA DOS CATAVENTOS
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
Mario Quintana
CLAREIRAS
Se um autor faz você voltar atrás na leitura,
seja de um período ou de uma simples frase, não o julgue profundo demais, não
fique complexado: o inferior é ele.
A atual crise de expressão, que tanto vem
alarmando a velha-guarda que morre mas não se entrega, não deve ser
propriamente de expressão, mas de pensamento. Como é que pode escrever certo
quem não sabe ao certo o que procura dizer?
Em meio à intrincada selva selvaggia de nossa
literatura encontram-se às vezes, no entanto, repousantes clareiras. E clareira
pertence à mesma família etimológica de clareza... Que o leitor me desculpe
umas considerações tão óbvias. É que eu desejava agradecer, o quanto antes, o alerta
repouso que me proporcionaram três livros que li na última semana: Rio
1900 de Brito Broca, Fronteira,
de Moysés Vellinho e Alguns Estudos, de Carlos
Dante de Moraes.
Porque, ao ler alguém que consegue
expressar-se com toda a limpidez, nem sentimos que estamos lendo um livro: é
como se o estivéssemos pensando.
E, como também estive a folhear o velho
Pascall, na edição Globo, encontrei providencialmente em meu apoio estas
palavras, à pág. 23 dos Pensamentos:
"Quando deparamos com o estilo natural,
ficamos pasmados e encantados, como se esperássemos ver um autor e
encontrássemos um homem".
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo
PEQUENO ESCLARECIMENTO
Os poetas não são azuis nem nada, como pensam
alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que
eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer
escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio
em que escrevo e em que tu me lês.
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo
POEMA DA GARE DE ASTAPOVO
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos
oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
Mario Quintana
I
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
Mario Quintana - A Rua dos Cataventos
DO ESTILO
O estilo é uma dificuldade de expressão.
Mario Quintana (Caderno H)
OBSESSÃO DO MAR OCEANO
Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.
Mario Quintana - O Aprendiz de Feiticeiro
DA OBSERVAÇÃO
Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...
Mario Quintana - Espelho Mágico
DOS MUNDOS
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.
Mario Quintana - Espelho Mágico
DA DISCRIÇÃO
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...
Mario Quintana - Espelho Mágico
A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR
A gente sempre deve sair à rua como quem foge
de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
Mario Quintana - A verdadeira cor do
invisível
O MAPA
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
Mario Quintana - Apontamentos de História
Sobrenatural
OS DEGRAUS
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
Mario Quintana - Baú de Espantos
DESTINO ATROZ
Um poeta sofre três vezes:
primeiro quando
ele os sente,
depois quando ele os escreve
e, por último, quando declamam os
seus versos.
Mario Quintana (Caderno H)
POEMINHA SENTIMENTAL
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
Mario Quintana - Preparativos de Viagem
SEMPRE QUE CHOVE
Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!
Mario Quintana - Preparativos de Viagem
INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO
Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"
Mario Quintana - A Cor do Invisível
O PIOR
O pior dos problemas da gente é que ninguém
tem nada com isso.
Mario Quintana - Caderno H
EXAME DE CONSCIÊNCIA
Se eu amo o meu semelhante?
Sim. Mas onde
encontrar o meu semelhante?
Mario Quintana - Caderno H
A GRANDE SURPRESA
Mas que susto não irão levar essas velhas
carolas se Deus existe mesmo...
Mario Quintana - Caderno H
EVOLUÇÃO
O que me impressiona, à vista de um macaco,
não é que ele tenha sido nosso passado:
é este pressentimento de que ele venha
a ser nosso futuro.
Mario Quintana - Caderno H
MÚSICA
O que mais me comove em música
São estas notas soltas
- pobres notas únicas -
Que do teclado arranca o afinador de pianos.
Mario Quintana
São estas notas soltas
- pobres notas únicas -
Que do teclado arranca o afinador de pianos.
Mario Quintana
URBANÍSTICA
Como seriam belas as estátuas equestres se
constassem apenas dos cavalos!
Mario Quintana
Mario Quintana
Canção do dia de sempre
Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
Mario Quintana
Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
Mario Quintana
PRESENÇA
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas
perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.
Mario Quintana
DA INQUIETA ESPERANÇA
Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é
aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.
Mario Quintana
DOS NOSSOS MALES
A nós bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...
Mario Quintana
TROVA
Coração que bate-bate...
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão passando sem sofrer.
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão passando sem sofrer.
Mario Quintana
DOS MILAGRES
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Mario Quintana
DAS ESCOLAS
Pertencer a uma escola poética é o mesmo que
ser condenado à prisão perpétua.
Mario Quintana (Caderno H)
ESPERANÇA
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Mario Quintana
CUIDADO
A poesia não se entrega a quem a define.
Mario Quintana (Caderno H)
SE EU FOSSE UM PADRE
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!
... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!
Mario Quintana
CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO
Os verdadeiros analfabetos são os que
aprenderam a ler e não leem.
Mario Quintana (Caderno H)
VERSO AVULSO
...O luar é a luz do sol que está dormindo...
Mario Quintana
(Mario Quintana - Poesia Completa
Da Preguiça como Método de Trabalho
Editora Nova Aguilar
p. 672)
Da Preguiça como Método de Trabalho
Editora Nova Aguilar
p. 672)
A SAUDADE
A saudade é o que faz as coisas pararem
no Tempo.
no Tempo.
Mario Quintana
(Mario Quintana - Poesia Completa
Preparativos de Viagem
p. 773)
Preparativos de Viagem
p. 773)
O BERÇO E O TERREMOTO
Os versos, em geral, são versos de embalar,
como eu às vezes os tenho feito,
não sei se por simples complacência...
ou pura
piedade.
Contudo, os verdadeiros versos não são para
embalar
- mas para abalar.
Mesmo a mais simples canção,
quando a canta
um Camela Lorca,
desperta-te a alma para um mundo de espanto.
Mario Quintana
(Mario Quintana - Poesia Completa
Caderno H
Editora Nova Aguilar
p. 334)
Caderno H
Editora Nova Aguilar
p. 334)
BIOGRAFIA
Era um grande nome — ora que dúvida!
Uma
verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua...
E continuaram a pisar
em cima dele.
Mario Quintana (Caderno H)
CANÇÃO DE BARCO E DE OLVIDO
Para Augusto Meyer
Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
Tudo o de que te lembrares.
Mario Quintana (Canções)
ARTE POÉTICA
Esquece todos os poemas que fizeste.
Que cada
poema seja o número um.
Mario Quintana (Caderno H)
XII
Para Érico Veríssimo
O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...
Mario Quintana (A Rua dos Cataventos)
A ARTE DE LER
O leitor que mais admiro é aquele que não
chegou até a presente linha.
Neste momento já interrompeu a leitura e está
continuando a viagem por conta própria.
Mario Quintana (Caderno H)
O AUTO-RETRATO
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Mario Quintana (Apontamentos de História
Sobrenatural)
A CARTA
Quando completei quinze anos,
meu
compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito,
muito séria: tinha até
ponto-e-vírgula!
Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.
Mario Quintana (Caderno H)
O MORTO
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!
Mario Quintana (Apontamentos de História
Sobrenatural)
A COISA
A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo
outra e o leitor entende uma terceira coisa...
e, enquanto se passa tudo isso,
a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
Mario Quintana (Caderno H)
A CANÇÃO DA VIDA
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
Mario Quintana (Esconderijos do Tempo)
AS INDAGAÇÕES
A resposta certa, não importa nada: o
essencial é que as perguntas estejam certas.
Mario Quintana (Caderno H)
OS ARROIOS
Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...
Mario Quintana (Baú de Espantos)
ARS LONGA
Um poema só termina por acidente de
publicação ou de morte do autor.
Mario Quintana (Caderno H)
EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!
Mario Quintana (Quintana de Bolso)
A VOZ
Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter
uma voz reconhecível dentre todas as outras.
Mario Quintana (Caderno H)
CARTA
Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido
resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não
possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive
de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e
onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso
(ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada;
algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema
seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma
carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá.
Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje
que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio.
Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na
posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para
o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos,
está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A
única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social,
porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos
, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E
eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa,
refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no
humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o
poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a
minha verdade." E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois
cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a
compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja
tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os
meus poemas sejam apócrifos!
Meu poeta, se estas linhas estão te
aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre
poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste
conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas
meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer
pesquisas com perguntas assim: "O que é poesia? Por que se tornou poeta?
Como escrevem os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz
mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute;
perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves
ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles
fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma
palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer
parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes
uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações
de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da
poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel.
Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de
memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto
logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão
bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento
lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o
essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for
com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o
mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta
constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto.
Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há
na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando
Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: "Eu não te largarei até que me
abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com
o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega.
Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que
deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o
público e trazer-te uma efêmera popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica.
Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos
moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas
rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente
desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos
de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho
grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade
e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto
clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as
canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos
(ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal:
não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te
recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo
com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o
espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa
óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas
linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os
poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu
a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece
consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas
confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome
nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De
ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus
versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?
Mario Quintana
MARIO QUINTANA POR MARIO QUINTANA
( texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984 )
( texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984 )
Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906.
Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale
sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela
arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo,
nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há ! mas o que querem
são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade.
Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais,
pois foi-nos prometida a eternidade.
Nasci do rigor do inverno, temperatura : 1
grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois
achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo
como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac
Newton ! Excusez du peu.
Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim.
Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que
escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de
auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada
disso ! sou é caladão, instrospectivo. Não sei por que sujeitam os
introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros ?
Exatamente por execrar a chatice, a
longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da
forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu
cuidado o fato de ter sido prático de fármacia durante 5 anos. Note-se que é o
mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico
Veríssimo – que bem sabem ( ou souberam) , o que é a luta amorosa com as
palavras.
Mario Quintana ( texto escrito pelo poeta
para a revista Isto É de 14/11/1984 )
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