quarta-feira, agosto 03, 2011

Literatura e Cangaço: e depois?

Lampião
Tenho o direito, creio, de me sentir um tanto deslocado numa mesa em que se discute o tema Literatura e Cangaço. Ocorre que sou um sujeito primordialmente urbano e meu contato com o sertão e seu entorno se deu de modo episódico. Quando estive em Sobral, no Ceará, pretendia dar prosseguimento a uma pesquisa que acabou permitindo maior contato com o calor e com a terra, mas também com o espaço. Pois foi ali que, em 1919, um eclipse solar total ficou famoso por haver comprovado a Teoria da Relatividade. Ali, naquele estado no qual Lampião encontrou uma das poucas pessoas que admirava, o Padre Cícero. Quanto à literatura que trata do cangaço e da vida sertaneja, creio estar em condições de abordar, no tempo gentilmente oferecido, alguns temas e algumas idéias que pretendo transmitir a partir de agora. Uma atitude mais correta seria a que não se deve jamais demonstrar diante do cangaceiro: a de provocação. Felizmente, estou entre debatedores que só lutam com idéias e diante de uma platéia a quem não cabe, segundo as regras estipuladas, perguntar ou reagir. Passo assim a apresentar as minhas considerações.

       Primeiramente, deve-se notar que o cangaceiro não escreve. O que implica afirmar que, estando fixado na memória dos seus contemporâneos, não deixou depoimento. Se fôssemos parodiar a fórmula de Euclides da Cunha, diríamos: o cangaceiro é, antes de tudo, um analfabeto. A sentença traz algum exagero, pois Lampião fora alfabetizado e teria lido a biografia de grandes líderes da política; e Corisco, também alfabetizado, chegou a ensinar a ler a sua mulher, Dadá. O cangaceiro se encontra, porém, na mesma situação do índio brasileiro – sua memória depende exclusivamente do depoimento alheio, do testemunho de quem o estudou. Pois, como se diz na melhor sociologia, tanto o índio quanto o cangaceiro não são plenamente sujeitos por não terem condições de escrever, eles mesmos, sobre suas experiências e pontos de vista.

       Note-se como nosso conhecimento sobre o cangaço seria diferente se um dos famosos cangaceiros houvesse deixado um depoimento à maneira, digamos, da favelada Carolina Maria de Jesus, em seu célebre Quarto de Despejo. Publicado em 1960, seu livro tornou-se um campeão de vendas e foi traduzido para dezenas de idiomas. Escrito em papéis de embrulho que ela recolhia todos os dias, num trabalho repetitivo e desgastante, o seu diário transmitia a vida da favela a partir da experiência sofrida de mulher e de negra. No Brasil marcado pela ideologia do desenvolvimentismo, as palavras de Carolina Maria de Jesus soavam como o contraponto necessário para que se tivesse consciência das implicações econômicas e políticas de um ambiente mal conhecido até mesmo dos escritores mais realistas.

       Em síntese, Carolina Maria de Jesus saía da indigência ao escrever, o que tinha muitas conseqüências. Ela era, para todos, uma catadora de papéis. Catava papéis durante o dia, mas, à noite, quando podia, defrontava-se com os papéis de seu caderno. Dia e noite, papéis do chão e papéis pautados eram o material de sua construção.

       A sua descrição da favela denota um intenso pessimismo: a escritora acompara freqüentemente a um inferno sem solução. Seu projeto é o de fugir, tão logo possível, daquela estrutura maldita. Algumas citações demonstram a eloqüência do seu sentimento: "Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui"; "O único perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga"; "Aqui nesta favela a gente vê coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o Diabo".

       O índio e o cangaceiro, portanto, precisaram de outras vozes para que se fizessem ouvir. Ambos fazem parte de um segmento importante dos estudos sociológicos e literários que procuram entender o fenômeno da sua aparição e da sua sofrida sobrevivência.

       No poema “Antonio Silvino no Engenho Poço”, João Cabral de Melo Neto parece captar a dificuldade que o cangaceiro tem de se expressar, de dizer uma palavra ou de explicar a que vem. Um dos pioneiros do cangaço, o pernambucano Antonio Silvino visita o avô do poeta, fazendeiro, que caminhava na varanda da sua casa, ao final do almoço. Depois de saudar o senhor de engenho, eis que não consegue mais prosseguir. E o poeta escreve, rememorando a história contada em família:

Uma pausa. Parou de dizer.Mas a pausa não tem por quê.Se sente sua hesitaçãoplanando no ar, como gavião. (...)
       Em seguida, e após observar que o cangaceiro fugia e viajava só, tendo sofrido um ataque da polícia que dispersara o seu bando, o poeta transcreve em versos as palavras do avô:
João de Melo chama: 

“Marocas,sabe quem veio aqui agora?Antonio Silvino: ia sozinho,sem mesmo o pajem de um menino.Não tinha mesmo um guarda-sol.Mas na garganta tinha o nóde quem quer pedir uma coisamas se afoga nela, e não ousa. (...)Mas o que terá impedidode me fazer qualquer pedido? (...)

       E o avô, nas palavras do poeta, arremata a sensação de quem não conseguiu arrancar as palavras do cangaceiro:

De gosto, o haveria atendido.Ele não é um simples bandido.E repugna-me sabê-lo caçada polícia que não o faz de graça.

       Em que pese a cautelosa opinião de João de Melo, avô do poeta, ainda subsiste, no caso do cangaceiro brasileiro, uma tendência forte de classificá-lo como “bandido social”. Como sabemos todos, foi Eric Hobsbawm quem cunhou o termo “banditismo social” num livro de 1959, intitulado Rebeldes Primitivos. O seu interesse pelas formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos XIX e XX foi revisto em Bandits, de 1976, no qual o historiador britânico deu forma definitiva à sua análise. Para ele, o quadro que propiciou o cangaço vinculava-se a movimentos de camponeses revoltados com o avanço das formas modernas de produção. Esse avanço ameaçava valores como o da importância do patriarca, o acesso à terra e a uma série de aspectos simbólicos relacionados à propriedade, à família e ao trabalho. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi classificado pelo historiador como vingador. Sua preferência compulsiva pela destruição e sua aparente incapacidade de pertencer a este ou aquele interesse de classe já promoveram diversas especulações: teria sido um psicopata, uma espécie de serial killer interessado em defender a violência como meio de se atingir a honra? Teria sido um crítico, a seu modo, da injustiça social em franco processo de protesto? Teria sido um rebelde à força da modernidade, quando esta afetava os valores do ambiente em que viveu? Lembro que já Antonio Silvino havia entrado em conflito com os engenheiros e funcionários da Great Western, quando a empresa britânica implantava trilhos no sertão paraibano.

       A análise de Eric Hobsbawm, embora prestigiada e de grande influência nos estudos de História e Sociologia, foi muito criticada ora por suas aparentes simplificações, ora pela tipificação idealizada dos exemplos citados, ora pela dificuldade de criticar o banditismo social como forma de protesto. Anton Blok, antropólogo e estudioso das famílias ou empresas mafiosas, apontou a contradição de considerar como críticos da sociedade ou mesmo guerrilheiros os bandidos que, afinal, vitimaram camponeses de sua sociedade, muitas vezes em cumplicidade com representantes da classe dominante. E foi justamente a análise profunda de tal cumplicidade que permitiu ao professor Richard Slatta – um estudioso, entre outros assuntos, do fenômeno dos cowboysnorteamericanos e dos gauchos – a empreender uma revisão das idéias de Eric Hobsbawm e identificar a possibilidade de que muitos dos bandidos sociais estivessem, de fato, à procura de uma carreira individual e de um lugar proeminente em sua sociedade.

       Nos estudos que buscam explicar o cangaço, contemporâneos ou não do fenômeno, predomina a análise sociológica, segundo a qual o homem honesto e trabalhador se vê transformado em bandido – como é a opinião, por exemplo, de Xavier de Oliveira, nascido no Cariri, e de Gustavo Barroso. O primeiro autor descreve a “feira de trabalhadores” na sua região, na qual muitos ansiavam, com enxada nos ombros, um fazendeiro que iria escolhê-los para a labuta. O fazendeiro selecionava apenas os mais fortes ou os que lhe pareciam mais aptos, e assim centenas de homens ficavam, com suas mulheres e filhos, sem ter o que fazer e o que comer. A revolta vinha dessa situação de injustiça e de desesperança, na qual os homens sem terra e sem ocupação definida ficavam expostos à exploração contínua e intensa do seu trabalho. Um relato clássico sobre o assunto nos é apresentado por Rui Facó no seu livro Cangaceiros e Fanáticos (1976), no qual passam por nossos olhos as mazelas que se encontram na origem mesma do surgimento de personalidades como Antonio Silvino, Lampião, Corisco, e tantos outros: a ausência de justiça, o analfabetismo, a precariedade dos transportes e da comunicação, problemas aos quais se somava a concentração da propriedade da terra, que concedia poder e recursos econômicos quase ilimitados a uma minoria, impondo a uma vasta massa o regime de semiservidão.

       Mas o latifúndio que produz o revoltoso também o alimenta. E sua força econômica era tamanha que tinha até mesmo meios de corromper o cangaceiro e colocá-lo a seu serviço, transformando-o em jagunço pronto para defender os interesses do proprietário. Essa mutação foi também compreendida por Rui Facó, cujas palavras, por sua expressão, valem ser citadas:
O cangaceiro rebelado se transforma em ´cangaceiro manso`. É o capanga ou jagunço (...). Os próprios bandos autônomos se vêem enredados nas malhas do latifundiário. Para fugir às perseguições da polícia, ocultam-se no melhor lugar onde podem fazê-lo com segurança – uma grande fazenda, abrigo em geral inviolável. E seu campo de ação torna-se vastíssimo sob a proteção do coiteiro.

       Num trecho de Viventes das Alagoas (1962), Graciliano Ramos conseguira definir a relação entre proprietários e cangaceiros, que muitas vezes era de integral cumplicidade: “O ladrão de cavalos é o inimigo pequeno, que se pode oprimir. O cangaceiro é o inimigo poderoso, que é necessário agradar.” (p.125)

       Assim era o quadro desolador, ao qual iria juntar-se ainda o elemento religioso, cujo representante maior era o Padre Cícero, apoiado primeiramente pela elite local.

       O cangaceiro estava, pois, sob pressão da mesma estrutura que pesava sobre o retirante Severino, do poema de João Cabral de Melo Neto. Ao deixar a sua região para trás, migra em vez de se tornar um bandoleiro em sua própria terra, mas continua acossado pela fome. É um retirante, ou seja, um fugitivo sem violência, uma pessoa sem espírito de vingança, um nômade infeliz, um passivo na sua impressionante resistência física e moral. Em busca de trabalho, percorre um caminho que afinal se mostra o do seu próprio enterro. É ele, Severino, quem se dirige a uma mulher que está na janela:

- E se pela última vezme permite perguntar;não existe outro trabalhopara mim neste lugar?E a mulher lhe responde:- Como aqui a morte é tantasó é possível trabalharnessas profissões que fazemda morte ofício ou bazar. (...)Só os roçados da mortecompensam aqui cultivar,e cultivá-los é fácil;simples questão de plantar;
       Na paisagem do sertão, já se percebeu que o inimigo do cangaceiro pode ser a volante ou o policial; mas ainda não se notou que o contrário do cangaceiro é o retirante. Comparado ao retirante, o cangaceiro é um destruidor, que avoluma a sua presença na terra seca, em vez de fugir dela. Sua sobrevivência consiste justamente em ficar, porém de maneira perturbadora e contestadora, como se estivesse pronto para transmitir a morte que já o contaminou. Talvez por ter decidido ficar na sua terra e destruir a ordem constituída, o cangaceiro seja percebido, também na literatura, como uma figura violenta, mas ambígua; sanguinária, mas polêmica. Ora o cangaceiro é um herói, ora um assassino; ora movido pelo desejo de vingar uma falta cometida, ora por uma ansiedade irracional de impor degola, tortura e sofrimento àqueles que nem mesmo conhecia. O justiceiro se confunde ao covarde. E o cangaceiro, por ser ele mesmo resultado de uma ordem política e econômica que só gera riqueza para poucos, se define assim por ser, antes de tudo, um forte-fraco.

       A sua alta mobilidade – de quem mora em movimento sobre a terra – torna-o o terror iminente de toda a região, como se ele pudesse saltar subitamente de um canavial ou da escuridão para proferir sua sentença mortal. A sua capacidade de aniquilar qualquer um foi captada de modo notável numa passagem de Seara Vermelha (1946), na qual Jorge Amado escreveu:
Aqui, na caatinga, habitam os cangaceiros. Os soldados da vingança, os donos do sertão. Não têm paz nem descanso, não têm quartel nem bivaques, não têm lar nem transporte. Sua casa é seu quartel, sua cama e sua mesa são a caatinga, para eles bem-amada. Os soldados da polícia que o perseguem não se atrevem a penetrar por entre os arbustos de espinhos, os pés de xiquexiques e coás. Ao lado das serpentes e dos lagartos, vivem os cangaceiros na caatinga, e também eles, por vezes, liquidam no tiro das suas repetições os sertanejos que descem e que sobem na contínua migração.

       O movimento como que rotativo das pessoas na paisagem sertaneja parece magistralmente registrado pelo romancista baiano: ali se encontram cangaceiros, soldados, serpentes, lagartos e o povo geral do sertão que ora encontram refúgio, ora encontram obstáculo na vegetação espinhenta. Existe uma interessante oposição entre os “soldados da vingança”, os cangaceiros, e os “soldados da polícia”. O movimento de “contínua migração” dos sertanejos parece comunicar-se a um moto perpétuo de fugas e de perseguições, sendo os cangaceiros trazidos à dimensão dos animais rastejantes. Lembro, a propósito, que muitos cangaceiros eram conhecidos somente por suas alcunhas, retiradas da flora e da fauna local: Arvoredo, Bananeira, Cajazeiras, Cajueiro, Cobra Preta, Fura Moita, Gavião, Jaçanã, Jandaia, Jararaca, Jiboião, Jitirana, Juriti, Moita Braba, Moitinha, Mourão, Saracura, entre tantos outros.

       A descrição da moradia dos cangaceiros – a terra seca – e da sua relação com a geografia não esconde, contudo, outras dimensões fascinantes que foram aproveitadas pela literatura. O banditismo não esteve apenas limitado a uma reivindicação animalesca por tudo aquilo que faltava materialmente ao homem do sertão. No exercício violento de resistência e de esperança que caracteriza a ação dos cangaceiros, também se exibia o misticismo – quase sempre protagonizado por grupos de fanáticos que igualmente ansiavam por um mundo melhor. Esses movimentos, caracterizados pelo messianismo, também impactaram a opinião pública e, nela, os escritores, por sua força dramática e pela revelação do poder que os envolvia.

       Antes mesmo de descrever a figura de Antônio Conselheiro e de narrar a campanha de Canudos, Euclides da Cunha buscou compreender o fenômeno religioso entre os sertanejos, e concluiu que “da consciência da fraqueza para debelar [os elementos da terra], resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade.” (p.97) Numa breve passagem de Os Sertões (1902), narra o episódio da Pedra Bonita, ocorrido na comarca de Pajeú, Pernambuco, em 1837. Ali houve um profeta que prometeu aos seus seguidores o ingresso no reino encantado de Dom Sebastião. Para tanto, era preciso quebrar a grande pedra “não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto (...)” (p.98). Somente assim aquele rei voltaria, “cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para odesencanto.” O fato histórico, horroroso em si, poderia ser ainda mais impressionante se o escritor lembrasse de narrar que homens e mulheres foram também sacrificados naquela ocasião – e até mesmo os cães, pois havia a promessa de que seriam transformados em dragões alados pela mesma magia prometida... Terminado o sacrifício, o que se verificou foi a impossibilidade de permanecer naquele local quando os corpos começaram a apodrecer.

       Foi esse episódio que constituiu a matéria de Pedra Bonita (1938), de José Lins do Rego no qual surpreende a afirmação do autor de que “a narrativa deste romance quase nada tem a ver com a geografia e o fato histórico desenrolado em Pernambuco nos princípios do século XIX.” É preciso salientar ao máximo o advérbio quase, pois o escritor oferece, de fato, uma mescla de relato histórico e de ficção que conduz todo livro. Esquematicamente, a história se fundamenta na tensão entre duas cidades, a Vila do Açu e Pedra Bonita. Essa tensão se agiganta porque os moradores da Vila do Açu se sentem estigmatizados por uma maldição que foi urdida na cidade vizinha, enquanto os de Pedra Bonita amaldiçoam a família Vieira, daquela cidade, pelo antepassado que denunciou os ritos religiosos que provocaram o sacrifício humano.Cangaceiros (1953) dará continuidade a um aspecto presente em Pedra Bonita, a da aparição do vingador, forjando o capitão Aparício a partir da história, em alguns pontos exagerada, de Lampião. Em ambos os romances, há uma quantidade de informações sociológicas que nem sempre se harmonizam à matéria ficcional. Mas há também a oportunidade de seguir a evolução de criações como a do cantador Dioclécio, do cantador Domício e muitos personagens populares que fazem do sertão brasileiro um lugar singular e imprevisível.

       Enfim, desde O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, até A Pedra do Reino(1971), de Ariano Suassuna, a violência do cangaço e a demência da religiosidade marcam a literatura brasileira em sua vertente regional. E agora não pretendo abrir nova vereda para a literatura popular de cordel, tema para outra conferência, uma vez que enfrenta o problema do cangaço de um modo bipolar: ora intensificando os episódios de maldade, tortura e aniquilamento; ora idealizando o mito do cangaceiro, conferindo-lhe qualidades de semideuses e de vítimas do seu meio, mas dotados de valentia assombrosa, como quis um cantador ao narrar Antonio Silvino e seu bando:

Já ensinei aos meus cabrasA comer de mês em mês,Beber água por semestre,Dormir no ano uma vez...Atirar em um soldadoE derrubar dezesseis!

       Minhas palavras finais não procuram concluir, mas buscar compreender o cangaço com conceitos que, infelizmente, se tornaram mais conhecidos nos tempos atuais. Raramente se fez referência ao cangaço como fenômeno que implica atos de terrorismo. O mais comum é perceber as ações do cangaceiro como violência, esvaziada de qualquer dimensão ou causa política. Reduzido a bandido, sem apresentar reivindicação ou sem projeto social, o cangaceiro buscaria prestígio social, enriquecimento ainda que provisório e, portanto, ascensão. Nos meios diplomáticos e nos centros de estudo internacionais, vem sendo analisado o fenômeno da radicalização e da violência política. O recente desaparecimento de Osama bin Laden fez o mundo rever a pessoa de um terrorista: outrora sua imagem aparecia tendo por fundo as montanhas e as grutas onde se escondia, como se fosse ele mesmo representante de um irredentismo que tem dimensões planetárias. Em seu discurso, havia sempre o sentido da missão entre política e religiosa e sua luta contra potências mundiais, com alta violência e ameaças de catástrofes. Relativamente isolado do mundo, se opunha aos valores das sociedades modernas e mais avançadas. Há muitos traços comuns ainda a explorar entre o cangaço e o terrorismo na forma como agora os vemos. Mas persiste a crença de que existe nos dois movimentos, antes de tudo, um elemento autodestrutivo e a impossibilidade de que persistam na sua atuação destruidora enquanto as sociedades evoluírem.

Palestra apresentada em 26 de maio, na Academia Brasileira de Letras, por ocasião do seminário “Literatura e Cangaço”.

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Felipe Fortuna
 nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. Mestre em Literatura Brasileira (PUC/RJ), é poeta e ensaísta, e vem colaborando regularmente na 
imprensa brasileira. Publicou Ou Vice-Versa (1986), Atrito (1992) e Estante (1997), poemas; A Escola da Sedução (1991) e A Próxima Leitura (2002), crítica literária; Curvas, Ladeiras - Bairro de Santa Teresa (1997) eVisibilidade (2000), ensaios. Traduziu a obra integral da poeta francesa Louise Labé no volume Amor e Loucura (1995). Diplomata, atualmente trabalha em Londres. Em 2005, publicou um novo livro de poemas, juntamente com os três anteriores, no volume Em Seu Lugar (Editora Francisco Alves). 
E-mail: felipefortuna@felipefortuna.com                                            

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