quinta-feira, maio 24, 2012

Misturar-se à ponte

Ecos por un grito (1937) - David Alfaro Siqueiros 
Ponte – debaixo da ponte: 

frio – noite fria, escura, deserta; 

uma paisagem, ausência de paisagem.


Entre eu e eu, na brecha que dá pra avenida,

rua fechada, um beco, sem número, sem rumo:

Indistinto. Ambarino. Gris.

Irreversivelmente sem saída.


Os habitantes do meu corpo – os piolhos – dançam

no couro cabeludo: cabeça, tronco e membros,

a fazer cócegas, a ferir.


Noite: ferida noite, na ponte:

sem roupas, aos trapos,

sardas às costas,

debaixo da ponte: sem ponto, sem ponte.


Animal, roedor, de toga:

Inflige ao transgressor a sua transgressão.

Perdoa ao Homem da ponte: a Vítima

das vias nodosas da favela, do país.


Vê: outras formas se multiplicam,

vampiros com asas, um vermelho escuro

jorrando de parte nenhuma. Uma estrela?


Vicente Freitas

A Planta e a Prece


      Seu primeiro impulso foi de estender o braço e colher uma daquelas maravilhas. Sempre quisera ter em casa um pequeno recanto onde pudesse cultivar a bela planta, mas para sua frustração, mora em apartamento com pouco espaço, onde não pode curtir a beleza de um jardim. A rua está tranquila e as almejadas papoulas cor-de-rosa estão ali, a colorir o gramado bem cuidado daquela casa, como se fossem laços de fita. Os bons costumes a impedem de realizar o impetuoso desejo. “Tirar uma rosa do jardim alheio, de forma escondida, é roubo”, disse consigo mesma. Sente apertar o coração e uma espécie de saudade leva-a ao encontro de seus sete aninhos. Lembra-se do dia em que seus pais a levaram à casa dos avós maternos, em uma cidade praiana a 72 km da sua, a fim de passar um período de inverno.
  
     Localizada na praça principal, em frente à Igreja Matriz, era uma casa humilde, mas havia em seu interior tanto amor e compreensão, que causava bem-estar às pessoas que a visitavam. Duas lindas e frondosas mangueiras erguiam-se no terreiro, dando-lhe sombra e frescor. O quintal, atapetado de pedrinhas brancas, redondas e ovais, ficava ao sopé de um alto que começava quase na porta da cozinha. Havia algumas árvores frutíferas. Entre as árvores, um banheiro feito de varas e palhas de carnaúba, tinha por teto os galhos de uma laranjeira. Como era gostoso banhar-se ali, sentindo o perfume daquelas pequenas flores! Junto ao banheiro, em um cantinho reservado, estava o pé de papoulas rosadas, com suas pétalas dobradas, irradiando vida e beleza. Visto de longe, assemelhava-se a uma bela árvore de natal coberta de laços de fita, dessas que vemos nas lojas e residências, de outubro a dezembro.

     Divana aprendera amar aquela planta, dedicando-lhe todos os dias, alguns minutos do seu tempo, regando-a, cuidando-lhe da aparência. Ao amanhecer, colhia a flor mais viçosa e bela e depositava nos pés de Nossa Senhora das Graças, em um pequeno oratório de estilo antigo. Aquele gesto era a prece silenciosa que emanava de seu coração infantil.
Sua avó sempre lhe dizia, ao vê-la com a flor:

      – Uma rosa levando outra rosa...

      E ela completava:

      – Para a mais bela das rosas!

     Ao ofertar a delicada papoula, dizia:

     – Mãe do Céu, peço que arranje um emprego para o meu pai, lá na nossa cidade. Quero ver minha família reunida todos os dias.

     Sempre fora uma criança carente. Seu pai trabalhava como representante de tecidos, viajando para outros Estados. Sentia sua falta. Às vezes demorava dois ou três meses e ao voltar, passava uns dois ou três dias em casa. Sua mãe, atarefada com os afazeres domésticos, não dispunha de tempo para dedicar-lhe o carinho de que necessitava para ser uma criança feliz.  

     Chegara maio. Nesse mês, tudo fica legre e a natureza se veste dos mais variados matizes. A planta querida de Divana era um verdadeiro hino de amor, adornando com mais carinho, o altar da Santa. Colocava flores por toda parte: na mesinha que servia de altar,  nos quadros de santos pendurados na parede e no genuflexório onde, de joelhos, fazia sua prece silenciosa, olhar fito nos olhos da Virgem como para ter uma confirmação de que seu pedido não seria negado. Seu pai precisava arranjar esse emprego. Sua mãe assumia toda a responsabilidade do lar quando ele estava ausente. Era notável a preocupação com os filhos e com o numerário que ele mandava para o sustento da família. Sempre repetia contando as cédulas e moedas:

     Aqui é pesado, medido e contado! 

     Divana ouvia isso e pensava, com a mentalidade de criança inteligente: _

     – Não vai dar para comprar um vestido novo, nem um par de sapatos, nem uma boneca, nem...                                          
  
     Era necessário, encarecidamente, ganhar essa dádiva da Mãe de Deus.
     Um dia, teve um sonho: Tomava parte em um lindo cortejo de meninas vestidas de branco, com grinaldas da mesma cor em suas cabeças, desfilando em frente ao altar de Maria. Entoavam cantos e levavam flores. Surpresa ficou ao ver que suas papoulas aureolavam a fronte da Virgem. Compreendeu, assim, que suas preces haviam sido ouvidas e, como prova, recebe das mãos de Maria uma linda rosa dourada. Seus olhos brilhavam de contentamento, confundindo-se com o brilho áureo que irradiava daquele mimo celeste. Não tinha dúvida. Já ouvira o vigário falar na Igreja: – ”Tudo que as pessoas pedem aos santos, eles atendem”. E Maria, sendo mãe de Deus e Rainha dos céus, portanto tinha mais poder. A catequista também ensinava: – “A oração é a alavanca do espírito. Não sabia o significado disso, mas se ela ensinava, era coisa boa e certa”.

     Após o período de inverno, as águas já haviam baixado e as estradas de piçarra permitiam a passagem de carros, sem que houvesse atoleiros. Ao ir buscá-la de volta para casa, seu pai deu-lhe uma notícia promissora:

     – Minha filha, me inscrevi em um concurso para coletor federal em nossa cidade. Se for aprovado, vou poder ficar mais tempo com a nossa família. Sei que você sempre desejou que isso acontecesse. Não foi? Vamos ter vida nova, se Deu quiser. Vou-me esforçar bastante para que isso aconteça.  

     Ao receber a notícia, ficou um pouco triste, mas como a esperança é a última que morre e a sua fé bem viva, seu primeiro pensamento foi de gratidão pela oportunidade do concurso. Já era uma porta aberta para realizar o seu sonho! Correu aos pés de Nossa Senhora e depositou duas lindas papoulas cor-de-rosa. Abraçou seu pai, a avó, os tios, os primos e as amigas vizinhas. Queria que todos partilhassem de sua quase felicidade.
   
     Agora, após tantos anos, está ali a recordar uma das facetas mais bonitas de sua infância.  De repente, vem o jardineiro e vendo a ansiedade com que a jovem olha para o interior da casa, pergunta: Deseja alguma coisa, senhorita?

Maria de Jesus A. Carvalho.

segunda-feira, maio 14, 2012

As Sete Irmãs

Com os pés fincados no pó, avanço. 
Trago nas veias a genealogia das Sete Irmãs, 
as insígnias de um Adão esquecido
nas catacumbas de Santa Cruz.

No ângulo dos gestos, descrevo a origem
das Sete,
no tumulto dos nomes sem túmulos,
no rol dos pentavós.

O verbo:
a história explode, volta a pré,
o fóssil abre a boca,
arfa o enxofre da terra mãe
e sabe que cada membro
forma uma família, na Ribeira.

Sob as armações do silêncio,
o sangue dos pentavós, em páginas amarelecidas,
com capas e sobrecapas,
escorre pelo Acaracu.

Os cavadores do passado, em voz baixa,
trabalham para que a morte não acorde
os velhos patriarcas encostados no olvido.

Lá ao fundo, a sombra das Irmãs, as Sete,
acende-se, altiva, nas veias do genealogista –
com suas relíquias, lavadas a incenso.

Distorcidos esqueletos
vindos de longe, mulheres vestidas de pó
aproximam-se...
e erguendo os olhos para o espelho
incendeiam a linha cronológica
na esperança de que o patriarca se erga.

Vicente Freitas

sexta-feira, maio 11, 2012

Sem, saída


Sonhei com ela, voando.
Vi sua silhueta tapando parte da lua,
                                         [tal eclipse.

Aterrissou na minha janela:
– Você pode voar comigo?
– Já estou voando.
– Você pode apunhalar o seu coração
                                               [por mim? 

– Já apunhalei.
– Quer dizer, então, que você é capaz
                              [de morrer por mim?
– Já morri.

                              *   *   * 

Veja bem, quando o amor chega à sua porta,
                                                [não tem saída:

– Se correr ele te pega; se ficar ele te come.


Vicente Freitas