domingo, junho 26, 2011

Biblioteca Comunitária João Rodrigues de Matos

"Um País se faz com Homens e Livros" (Monteiro Lobato)  

Prof. Mattos e Totó Rios
Por muitos anos o Prof. Francisco Assis Mattos manteve seus livros como objeto de adoração, expostos em muitas estantes de sua biblioteca particular.

Confessa que tinha ciúmes da sua vasta coleção com cerca de 2.000 (dois mil) exemplares bem cuidada e protegida pelo meu ameaçador "não os tire do lugar".
Livros conservados como um tesouro intocável! 


A certa "altura do campeonato", começou a refletir sobre o motivo do desinteresse das pessoas pela leitura, em especial, os jovens. Então, por este motivo, tomou a feliz iniciativa e fundou a em 10 de junho de 2006 a Biblioteca Comunitária João Rodrigues de Mattos, em retribuição ao reconhecimento ao município de Itarema-Ce, que adotou-o como filho e cidadão honorário e libertou seu tesouro literário da "prisão" de suas estantes. Passou a emprestar seus livros a um, a outro, fez “marketing" das obras que lia e assim foi disseminando a cultura do prazer da leitura.

O Prof. Mattos foi homenageado pelo VI Belô Poético - Encontro Nacional de Poesia de Belo Horizonte, realizado em julho de 2010, por ter criado a Biblioteca Comunitária João Rodrigues de Mattos, pelo incentivo à leitura e difusor da cultura em meu município.






Informações 
Biblioteca Comunitária João Rodrigues de Mattos
Av. João Batista Rios, 2719
Fone: (88) 3667-1711
Itarema - Ce 
Fonte: Prof. Mattos

Escritores

Andrea Trompczynski
Eu ontem folheava um livro quando me flagrei num prazer quase sexual: eu tocava a capa, deslizava os dedos sobre a borda, cheirava as páginas, deliciando-me, não só com a voz do autor, mas com todas as sensações que eu podia extrair daquele contato. E percebi: tenho uma tara pela literatura. E pelos autores. É ainda pior, sejam homens ou mulheres, sou uma bissexual da literatura, tenho tara por todos eles. Quando gosto de um livro, fico obcecada por ele. Quero saber quem são todos os que trabalharam nele, o que fazem, quem diagramou o livro, e como, como foi feita a edição, quanto tempo demorou para ser escrito, curiosidades sobre o autor, e ontem, chamou minha atenção até mesmo o talento do autor da orelha.
Acima de tudo o que posso amar, acima mesmo dos livros, estão os escritores. Ah, os escritores povoam meus sonhos. São pessoas mais elaboradas do que as outras. Dizem frases escritas, dizem frases de livros. Já não posso mais ter amigos comuns, são tão boring! Só quero amigos escritores. Porque, uma conversa com um escritor é outros quinhentos, meus caros. Há um bom-humor afiado, quase cínico, de Oscar Wilde; há uma poesia triste, quase engraçada, de Augusto dos Anjos; a sexualidade, esta é de Henry Miller, e nunca, nunca, de Jane Fonda – como tem estado em voga com estes que cultivam o péssimo hábito de não ser escritor. Há risos, quando lembramos de Machado, uma dor inexplicável quando fumamos e falamos de Virgínia Woolf.
Já perdi a vergonha e hoje confesso publicamente: escritores, e todo o mundo que gira em volta deles, é, para mim, como eram antigamente, os Menudos, lembram? Tenho que me segurar para não pedir autógrafo ou arrancar o tecido da cadeira onde o tal autor se sentou para levar como souvenir. Decerto, as mulheres dirão que estou errada, pois os escritores são sempre feios. Ah, mulheres, de nada vocês sabem. Ficam procurando por corpos e roupas e carros. Se soubessem o que é um escritor! Aquele olhar lá longe, você quase pode ouvir o barulho das rodas das engrenagens do cérebro em funcionamento. E as sobrancelhas! Quando eles levantam aquelas sobrancelhas de profundo desprezo pelo resto da humanidade, preocupadíssima com o destino do PT, e eles, bah!, longe, longe, construindo uma personagem na antiga Londres, muito mais elegante e humana que qualquer um de nós. Podem matar Mrs. Darcy em três minutos. Têm todo o poder em suas mãos! São, pois, deuses.
Agora, serei coerente, de acordo com a inteligência emocional de alguém que cita Menudos, digo: fora, fora para sempre com quem não é escritor! Não falo mais com vocês, estou "de mal". Vocês olham para uma porta e vêem apenas uma porta. E não escrevem. Quem não escreve, definitivamente não pensa. Detesto pessoas que não pensam, acho um desperdício. Para vocês, direi sempre que não posso, não estou, já tenho que ir, pois está a passar um escritor. Vou contemplá-lo da janela, vou imaginar o que se passa na sua cabeça, imaginar o que ele pensa quando olha através de uma porta.


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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros.

quarta-feira, junho 22, 2011

Realizado I Encontro de Escritores do Vale do Acaraú

FOTO: Arquivo Vicente Freitas. Poeta Nicodemos Araújo, 
Dinorá Thomaz Ramos e Padre Antônio Thomaz
Poetas, memorialistas e pesquisadores naturais da região do Baixo Acaraú receberam na última quarta-feira (22 de junho) o Troféu Nicodemos Araújo, pelo reconhecimento aos relevantes serviços prestados à cultura da região no I Encontro de Escritores do Vale do Acaraú. O evento foi promovido pela Prefeitura Municipal de Acaraú, por meio da Secretaria de Cultura e Turismo. O grande homenageado da solenidade foi o poeta e historiador belacruzense Nicodemos Araújo (1905-1999), que dispõe de uma vasta obra: poesia, teatro, história e genealogia. Exposição com acervo bibliográfico, medalhas condecorativas e fotografias ficaram expostas nos corredores da Escola Estadual Marta Maria Giffoni, no bairro Mons. Edson Magalhães, em Acaraú.

Receberam o Troféu Nicodemos Araújo as seguintes personalidades: o professor e escritor Dimas Carvalho (neto de Nicodemos Araújo); o bispo de Limoeiro do Norte, Dom Edmilson da Cruz (natural de Aranaú, distrito de Acaraú); o pesquisador acarauense Lucivan Rios (Totó Rios); o cordelista, José de Fátima, natural de Itarema; o advogado e escritor acarauense, Francisco José Ferreira Gomes (filho de João Jaime Ferreira Gomes); o poeta e escritor belacruzense Vicente Freitas.

Ao receber o troféu, o escritor Dimas Carvalho, emocionado pela homenagem, defendeu a necessidade de “manter-se acesa a tocha que foi a produção de Nicodemos Araújo relativa à história, teatro e jornalismo para que os jovens das atuais gerações possam ter consciência da importância de meu avô para a história e a cultura do Vale do Acaraú”.

O poeta membro da Academia Sobralense de Letras e presidente da Academia Brasileira de Hageologia, professor José Luis Lira proferiu palestra intitulada “O papel do escritor nos dias de hoje”. Na sua apresentação, Lira definiu o escritor como “observador, historiador, capaz de disfarçar até mesmo sua dor, retratando seu espaço, como fez brilhantemente Nicodemos Araújo”. Citando pensamentos relativos ao tema de grandes nomes da Literatura, como Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Fernando Pessoa, entre outros, discorreu que o escritor, “enquanto partícipe de um estilo, de um pensamento, imprime sua marca em sua obra, fazendo com que gerações futuras usufruam do seu trabalho”.

Na solenidade, apresentaram-se a Banda de Música Municipal de Acaraú Maestro Milton Gomes e o quinteto da Banda Municipal de Cruz, que entoaram músicas clássicas, além do Hino de Acaraú (letra de Nicodemos Araújo). Entre os presentes, compareceram a sobrinha do poeta acarauense, Padre Antônio Thomaz, a Sra. Conceição Thomaz; o Prefeito de Acaraú, Pedro Fonteles, juntamente com a Primeira-dama do Município, Fátima Moraes; o professor João Ambrósio, da Universidade Estadual Vale do Acaraú, representando o homenageado Vicente Freitas; além de secretários municipais e o público em geral.


Postado por Vale do Acaraú Notícias

domingo, junho 19, 2011

O Benfeitor

Andrea Trompczynski
A primeira vez que li A Metamorfose, de Franz Kafka (deveria ser redundância ter que citar o nome do autor de obras como esta), eu tinha treze anos e, claro, em minha mente infantil o que chamou a atenção não era todo o drama psicológico, mas o fato de se transformar em barata. Um homem? Pensei: Kafka é um bobo. Quando começaram os anúncios desse novo reality show da ABC, lembrei daquele pensamento. Sentia uma espécie de horror e prazer ao ter a oportunidade de assistir, em cores e stereo sound à prova definitiva e gravada de que um ser humano pode sim transformar-se em algo tão repugnante como a barata do livro. Daquelas cascudas, gigantesca. E seu nome é Mark Cuban, o benfeitor.
Ele é um bilionário de 46 anos do Internet Business. Jeans e camiseta, bonitão, fortuna comparável à de Donald Trump antes dos problemas com os cassinos. Teve a idéia desta competição entre dezesseis coitados (impossível não sentir pena) por um milhão de dólares porque achou que "seria divertido". 
O jogo não tem regras pré-estabelecidas, ele parece procurar alguém com seus caracteres (deixando claro que isto é impossível, talvez um aprendiz), e desde a abertura até as histórias de sua vida, inseridas o tempo todo como exemplo de genialidade, todo o programa é ummonumento-a-ele-mesmo. Admira os bons manipuladores, os que traem relacionamentos pessoais por dinheiro e os aduladores discretos, mas diz isto em outras palavras.
show de horrores começou no primeiro programa, com a humilhação e eliminação de um participante que fez um infeliz -levíssimo- comentário contra Mark Cuban. E o ápice foi penúltimo programa: um teste em que times de quatro pessoas teriam três horas do valioso tempo de Cuban mais a chance de propor algo para que este tempo se tornasse interessante. Um dos grupos escolheu levar brinquedos para crianças em um hospital, para aquele tipo de propaganda típica da Lady Di, onde pobres ou doentes são estolas enfeitando seus pescoços para uma boa fotografia na People. Estes dez minutos de programa dariam um tratado. Enquanto gastaram pouquíssimo tempo com as crianças, o diretor do hospital tentava desesperadamente cativar o espírito solidário do "benfeitor". Foi angustiante, Cuban lançando olhares de desprezo e enfado enquanto o rosto do diretor suava em uma tentativa humilhante depuxa-saquismo. O homem não ficaria tão nervoso com a visita do Papa. E na saída, "o benfeitor" reclamava quase aos gritos de o quanto aquele tempo foi perdido. O quanto em dólares custavam aquelas três horas. E as pessoas do grupo tentando não parecer humanos e odiar Cuban, porque precisam concordar e sorrir com ar inteligente. Um milhão de dólares. Mas a maioria diz que é só pela competição.

Meu filho de seis anos teve uma idéia extraordinária hoje: que deveriam haver sacos de vômito como os dos aviões em todos os lugares. E que as pessoas deveriam andar com eles nos bolsos, como lenços de papel, para o caso de precisar em situações repugnantes. Adorei.

A Sabedoria de Dona Zeli
Dona Zeli mora no interior de São Mateus do Sul, numa chácara com o marido Sebastião. Plantam "o-quê-comer", criam umas galinhas e os filhos. Ela faz o melhor pão do mundo e é necessário que se coma com banha-de-porco e sal. Ela só tem a quarta série. É sábia. Um dezembro o Sebastião recebeu uma dinheiro a mais, a colheita foi melhor e deu para vender, alguém sugeriu que comprasse uma televisão, Sebastião gostou da idéia. Eu estava lá e ela me disse uma das coisas mais inteligentes que já ouvi em minha vida: "Até pensei em comprar, mas o seu Dito, meu vizinho, depois que comprou só fica sentado na frente daquilo, de manhã até à noite, nem vem mais aqui, nem em lugar nenhum. Falei para o Bastião deixar para lá e vamos é trocar a cerca, que está precisando."
Nem Tudo Está Perdido
A TV aberta brasileira é mais do que meu gosto pelo feio pode suportar. Às vezes ainda tento encontrar algum sinal de inteligência, em vão. Pessoas que nunca vi são artistas, assuntos como "Solange não-sei-o-quê alavancou sua carreira na banheira do Gugu" são debatidos com seriedade, e, com música de suspense uma médium diz que o filho dela (da Solange) não é do Vaguinho, que pela maneira como eles falam é também um artista famosíssimo. Vejo hoje nos jornais que o Roda-Viva, da TV Cultura, faz 18 anos. Um programa como esse na TV aberta e por tanto tempo é quase inacreditável. Nunca esquecerei de entrevistas antológicas, do tempo em que comecei a ler jornais e ouvir falar do programa onde pessoas que nunca estiveram na banheira do Gugu davam entrevistas (lembram Olivieri Toscani? O polêmico publicitário da Benetton? Um dos entrevistadores chegou a pular em seu pescoço gritando você não é publicitário coisa nenhuma!, e Toscani então por que é que sou eu que estou no meio da roda? Aquilo sim era "barraco bom"). Apesar do aniversário ser hoje, 27 de setembro, as comemorações serão adiadas para 18 de outubro. O site Cruzeironet informa que dos 900 entrevistados que já estiveram no programa, 560 já foram convidados e estarão presentes também todos os seis apresentadores que já passaram pelo Roda.
A Palhaçada do da Kine Café
Helicópteros, camburões e força especial da polícia. Primeira página de jornais durante dias. Pessoas detidas. O que é, o que é? Uma invasão em alguma cracolândia fortemente armada? Não. Meia dúzia de hippiescomprando maconha no Da Kine Cafe, na Commercial Street, em Vancouver. A maconha é droga ilegal, sim. Mas helicópteros? Enquanto a polícia norte-americana faz sua publicidade com imbecilidades como essa, recomendo às famílias investirem em muros eletrificados e casas blindadas. E aprendizado em casa para as crianças. O domínio do crackexpande-se rapidamente nas cidades do Canadá, do centro para os bairros, e a guerra pelo monopólio está começando. Recomendo economizar o combustível dos helicópteros agora.

Diário de um Cucaracha
Cheguei no Brasil semana passada e foi impossível não chorar. Tentei controlar uma crise de ufanismo lendo os jornais, mas no canal nove do rádio do avião estava tocando Caymmi, uma covardia. Em minha cidade (pequena, bem pequena mesmo) todos estão curiosos para saber notícias da civilização "como é, conte tudo, como é lá?". Dou a mesma resposta do Obelix quando voltou à aldeia após uma aventura na Helvécia: "chato". E continuo devorando meu javali assado. 
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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros.

domingo, junho 12, 2011

A Classe Média (ou: “A Culpa é do Cony”)

Andrea Trompczynski
Basicamente, existem três classes distintas de pessoas: os Pobres, os Ricos e a Classe Média. Para fins de estudo, desprezo os graus de variação existentes entre cada uma delas. Não, não são apenas classes econômicas. São classes de pessoas. Castas, como as indianas. E também não, a Classe Média não está extinta como foi anunciado no noticiário. Ela e seu Espírito Mediano reinarão para todo o sempre.

A Classe de Pessoas "Pobre" é de agradável convívio, no mínimo, divertida. São movidos pelas necessidades básicas e, a elas satisfazendo, alegram-se facilmente. A Classe de Pessoas "Rica" já não vive de necessidades, conhece-se mais e é a ponta da evolução: pode viver plenamente sua capacidade cerebral, já que os neurônios não precisam mais se concentrar na busca do alimento, moradia, vestes ou em se poderá pagar aquela viagem para a Itália em doze vezes no cartão. É onde todos devemos chegar um dia, após muitas vidas de sofrimento, para finalmente usufruir das delícias do espírito. Enquanto este dia feliz não chega, detenho-me no estudo da mais cômica e trágica etapa de nossa evolução: a Classe Média.

A Cultura da Classe Média
Toda a Cultura da Classe Média pode ser encontrada em alguns papéis-jornal: a Folha de São Paulo. Ela lê os autores que a Folha indica. Prestigia os espetáculos que a Folha diz que se deve prestigiar. Escolhe seus governantes, seus ídolos, seus livros, sua roupa, guiada pela Folha. Emociona-se com o Carlos Heitor Cony, que, da classe citada já não faz parte, mas entende os seus melindres e funcionamentos. Com isto, magistralmente, trabalha. Cony, em uma fórmula amada por eles, escreve conselhos que o finado pai lhe deu, intercala-os com fatos corriqueiros da vida, uma citação de um grande escritor e, "ditados" populares. Há variações na ordem dos fatores, no primeiro parágrafo o fato corriqueiro, no segundo a frase sábia do pai, etc. Esses detalhes são artifícios que fazem a Classe Média marejar os olhos lembrando de tempos passados mais difíceis. 

O modo-de-vida da Classe Média
Trabalham, diria Cony, como mouros. Nunca falam sobre dinheiro, não é de "bom-tom". Adquirem bens às custas de algo que chamam prestações, mas, parece-me que nem mesmo sob tortura confessariam tal vergonha: é preciso manter a imagem. Viajam nas férias, sempre. Trabalham para viajar nas férias. Não viajar nas férias é uma espécie de humilhação social impossível de ser aceita. Quase comparável a não possuir carro ou não ter lido o último livro do Diogo Mainardi. 

A Vida Social da Classe Média
Como citado antes, a imagem é algo essencial para a Classe Média e, os esforços despendidos para adquirir uma boa imagem surpreendem o mais apático estudioso da evolução humana: não admitirão sequer uma espécie de desânimo ou momento de auto-estima baixa. Indubitavelmente vencedores, seu momento de lágrimas será somente às escondidas ou durante a leitura da crônica saudosista do Cony, e em mais nenhuma ocasião. Secretamente ávidos por aceitação social e por um grande círculo de amizades, dirão que não se importam com o que os outros dizem ou pensam deles. Desesperados por um par afetivo, dizem-se muito felizes sozinhos.

A Ocupação Profissional da Classe Média
Esta, a mais difícil faceta da casta em estudo. Apesar de todos terem ocupações diversas, há modismos sobre o que eles afirmam realmente fazer. Alguns anos atrás, muitos eram executivos. Depois, publicitários e, houve aquele tempo em que todos eram webdesigners. Hoje, espero que até a publicação deste ainda seja, dizem-se escritores. Há milhares deles, é incrível. Creio que já não falam, e nem da fala mais necessitam. Escrevem. Todos. Desde a mocinha até o senhor casado, desde o menino até a senhora idosa e solteira. Se influência de sua fonte de conhecimento máxima, repleta de letras, a Folha, ou de Carlos Heitor Cony, não sei. Sei que eles escrevem.

Do Posto de Observação 
Ninguém vencerá o poder da Classe Média. Dela, faço parte, e resigno-me à provação. Dela, não espero muitas mudanças. Talvez uma, em breve: algum outro modismo que possa substituir o de se dizer escritor. Quem sabe, cartunista. Ou físico. Espero pacientemente a morte e a reencarnação, único meio de mudar de casta, e, que meus méritos por suportar sem matar-me as tristezas de ter nascido nesta classe de pessoas, possam permitir que Deus de mim se apiede e me faça nascer em outra na próxima existência. Na Rica, eu suplico. Mas, se não der, que seja a Pobre, que lá é permitido dizer a verdade: que não fui em tal lugar porque não tinha dinheiro, e não porque estava com "uma dor de cabeça lancinante". Lá não é preciso ler a Folha. Lá, pode-se gritar aos quatro ventos que se ama o Lúcio Jurandir e quem sem ele não se pode viver. E ninguém escreve, que isso é coisa de viado.


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Andrea Trompczynski – O livro é um prazer sensorial para mim. Capas antigas, o cheiro, anotações. Meu sonho de consumo é uma primeira edição de Finnegan's Wake, com anotações, nas margens, da Lígia Fagundes Telles. Não há arte maior que a literatura. Não há arte mais intensa e nem mais difícil. É a única e verdadeira arte. Escrever. Vou em teatro, ouço música, sim. Mas até a HQ para mim está acima da música. Não adianta. No princípio era o verbo. Os homens são minha forma favorita de design. Não a humanidade, os homens. Anti-feminista convicta, acredito que as super-mulheres perdem o que há de melhor nos homens. Passei por essas fases de queimar sutiã e hoje vejo que certa estava minha avó, não se deve lutar contra a natureza. Tenho uma estranha sensação de déjà-vu quando conheço coisas novas, é sempre como se já tivesse visto. Como se nada fosse muito novo. Por ter andado por muitos lugares e vivido tantas coisas sem sair do meu quarto, agora finalmente vendo "de verdade e se mexendo" o mundo, não me deslumbro, não me fascino. Prefiro os livros. 

quinta-feira, junho 02, 2011

Qintana e seus quintanares


PROJETO DE PREFÁCIO

Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

Mario Quintana

DO AMOROSO ESQUECIMENTO

Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Mario Quintana - Espelho Mágico

AH! OS RELÓGIOS

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...

Mario Quintana - A Cor do Invisível

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana - Espelho Mágico

POEMINHO DO CONTRA

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Mario Quintana

O SILÊNCIO
Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, n ão quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo

EU ESCREVI UM POEMA TRISTE

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
Mario Quintana - A Cor do Invisível

SINÔNIMOS

Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.
Mario Quintana (Caderno H)

CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.
Mario Quintana

POEMA

Mas por que datar um poema?
Os poetas que põem datas nos seus poemas
me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...
Mario Quintana (Caderno H)

RECORDO AINDA

Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

Mario Quintana

O TRÁGICO DILEMA
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
Mario Quintana (Caderno H)

BILHETE

Se tu me amas,
ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!

Se me queres,
enfim,

.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,

.....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.

Mario Quintana

OS POEMAS

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso 
nem porto; 
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes 
que o alimento deles já estava em ti... 

Mario Quintana - Esconderijos do Tempo

SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente ...

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Mario Quintana ( In: Esconderijo do tempo)
O amor é quando a gente mora um no outro.

Mario Quintana

SIMULTANEIDADE

- Eu amo o mundo!
Eu detesto o mundo!
Eu creio em Deus!
Deus é um absurdo!
Eu vou me matar!
Eu quero viver! 
- Você é louco? 
- Não, sou poeta.
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo (Poesia Completa, p. 535)

ESPELHO

Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...) 
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste...

Mario Quintana

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão 
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo

A RUA DOS CATAVENTOS

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Mario Quintana

CLAREIRAS

Se um autor faz você voltar atrás na leitura, seja de um período ou de uma simples frase, não o julgue profundo demais, não fique complexado: o inferior é ele.
A atual crise de expressão, que tanto vem alarmando a velha-guarda que morre mas não se entrega, não deve ser propriamente de expressão, mas de pensamento. Como é que pode escrever certo quem não sabe ao certo o que procura dizer?
Em meio à intrincada selva selvaggia de nossa literatura encontram-se às vezes, no entanto, repousantes clareiras. E clareira pertence à mesma família etimológica de clareza... Que o leitor me desculpe umas considerações tão óbvias. É que eu desejava agradecer, o quanto antes, o alerta repouso que me proporcionaram três livros que li na última semana: Rio 1900 de Brito Broca, Fronteira, de Moysés Vellinho e Alguns Estudos, de Carlos Dante de Moraes.
Porque, ao ler alguém que consegue expressar-se com toda a limpidez, nem sentimos que estamos lendo um livro: é como se o estivéssemos pensando.
E, como também estive a folhear o velho Pascall, na edição Globo, encontrei providencialmente em meu apoio estas palavras, à pág. 23 dos Pensamentos:
"Quando deparamos com o estilo natural, ficamos pasmados e encantados, como se esperássemos ver um autor e encontrássemos um homem".

Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo

PEQUENO ESCLARECIMENTO

Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.
Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo

POEMA DA GARE DE ASTAPOVO

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

Mario Quintana

I
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!

Mario Quintana - A Rua dos Cataventos

DO ESTILO

O estilo é uma dificuldade de expressão.
Mario Quintana (Caderno H)

OBSESSÃO DO MAR OCEANO

Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.

Mario Quintana - O Aprendiz de Feiticeiro

DA OBSERVAÇÃO

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Mario Quintana - Espelho Mágico

DOS MUNDOS

Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.

Mario Quintana - Espelho Mágico

DA DISCRIÇÃO

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...

Mario Quintana - Espelho Mágico

A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!

Mario Quintana - A verdadeira cor do invisível

O MAPA

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...

Mario Quintana - Apontamentos de História Sobrenatural

OS DEGRAUS

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma. 
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Mario Quintana - Baú de Espantos

DESTINO ATROZ

Um poeta sofre três vezes: 
primeiro quando ele os sente, 
depois quando ele os escreve
e, por último, quando declamam os seus versos.

Mario Quintana (Caderno H)

POEMINHA SENTIMENTAL

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

Mario Quintana - Preparativos de Viagem

SEMPRE QUE CHOVE

Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!

Mario Quintana - Preparativos de Viagem

INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"
Mario Quintana - A Cor do Invisível

O PIOR

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

Mario Quintana - Caderno H

EXAME DE CONSCIÊNCIA

Se eu amo o meu semelhante? 
Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

Mario Quintana - Caderno H

A GRANDE SURPRESA

Mas que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo...

Mario Quintana - Caderno H

EVOLUÇÃO

O que me impressiona, à vista de um macaco, 
não é que ele tenha sido nosso passado: 
é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.

Mario Quintana - Caderno H

MÚSICA

O que mais me comove em música
São estas notas soltas
- pobres notas únicas - 
Que do teclado arranca o afinador de pianos.

Mario Quintana

URBANÍSTICA

Como seriam belas as estátuas equestres se constassem apenas dos cavalos!

Mario Quintana

Canção do dia de sempre 

Tão bom viver dia a dia... 
A vida assim, jamais cansa... 

Viver tão só de momentos 
Como estas nuvens no céu... 

E só ganhar, toda a vida, 
Inexperiência... esperança... 

E a rosa louca dos ventos 
Presa à copa do chapéu. 

Nunca dês um nome a um rio: 
Sempre é outro rio a passar. 

Nada jamais continua, 
Tudo vai recomeçar! 

E sem nenhuma lembrança 
Das outras vezes perdidas, 
Atiro a rosa do sonho 
Nas tuas mãos distraídas... 

Mario Quintana

PRESENÇA

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

Mario Quintana

DA INQUIETA ESPERANÇA

Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.

Mario Quintana

DOS NOSSOS MALES

A nós bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...

Mario Quintana

TROVA

Coração que bate-bate...
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão passando sem sofrer.

Mario Quintana

DOS MILAGRES
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Mario Quintana

DAS ESCOLAS

Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.

Mario Quintana (Caderno H)

ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mario Quintana

CUIDADO

A poesia não se entrega a quem a define.

Mario Quintana (Caderno H)

SE EU FOSSE UM PADRE
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!

Mario Quintana

CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO

Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem.

Mario Quintana (Caderno H)

VERSO AVULSO

...O luar é a luz do sol que está dormindo...

Mario Quintana

(Mario Quintana - Poesia Completa 
Da Preguiça como Método de Trabalho 
Editora Nova Aguilar
p. 672)

A SAUDADE

A saudade é o que faz as coisas pararem
no Tempo.
Mario Quintana

(Mario Quintana - Poesia Completa 
Preparativos de Viagem
p. 773)

O BERÇO E O TERREMOTO

Os versos, em geral, são versos de embalar, 
como eu às vezes os tenho feito, 
não sei se por simples complacência... 
ou pura piedade.
Contudo, os verdadeiros versos não são para embalar
- mas para abalar.
Mesmo a mais simples canção, 
quando a canta um Camela Lorca, 
desperta-te a alma para um mundo de espanto.

Mario Quintana

(Mario Quintana - Poesia Completa
Caderno H
Editora Nova Aguilar
p. 334)

BIOGRAFIA

Era um grande nome — ora que dúvida! 
Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... 
E continuaram a pisar em cima dele.

Mario Quintana (Caderno H)

CANÇÃO DE BARCO E DE OLVIDO

Para Augusto Meyer

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

Mario Quintana (Canções)

ARTE POÉTICA

Esquece todos os poemas que fizeste. 
Que cada poema seja o número um.

Mario Quintana (Caderno H)

XII

Para Érico Veríssimo

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...

Mario Quintana (A Rua dos Cataventos)

A ARTE DE LER

O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. 
Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

Mario Quintana (Caderno H)

O AUTO-RETRATO

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

Mario Quintana (Apontamentos de História Sobrenatural)

A CARTA

Quando completei quinze anos, 
meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, 
muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! 
Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.

Mario Quintana (Caderno H)

O MORTO

Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!

Mario Quintana (Apontamentos de História Sobrenatural)

A COISA

A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... 
e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

Mario Quintana (Caderno H)

A CANÇÃO DA VIDA

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Mario Quintana (Esconderijos do Tempo)

AS INDAGAÇÕES

A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.

Mario Quintana (Caderno H)

OS ARROIOS

Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...

Mario Quintana (Baú de Espantos)

ARS LONGA

Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.

Mario Quintana (Caderno H)

EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo, 
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!

Mario Quintana (Quintana de Bolso)

A VOZ

Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.

Mario Quintana (Caderno H)

CARTA

Meu caro poeta,

Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos , aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade." E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos!
Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: "O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: "Eu não te largarei até que me abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Mario Quintana

MARIO QUINTANA POR MARIO QUINTANA 
( texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984 )
Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há ! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.
Nasci do rigor do inverno, temperatura : 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac Newton ! Excusez du peu.
Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso ! sou é caladão, instrospectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros ?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de fármacia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem ( ou souberam) , o que é a luta amorosa com as palavras.

Mario Quintana ( texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984 )